‘Nunca vi tanta travesti junta produzindo arte’, diz Bixarte sobre projeto ‘A Nova Era’

Décimo episódio de Da Ponte pra Cá celebrou a diversidade e convidou as travestis paraibanas Bixarte, a estilista e dj Dorot Ruane e a multiartista Hiura Fernandes para falar sobre representatividade, arte e novo álbum

Dorot Ruane, Hiura Fernandes e Bianca Manicongo, mais conhecida por Bixarte, construíram um projeto artístico sobre suas vivências como pessoas negras e travestis na Paraíba. A Nova Era chegou para falar sobre os corpos invisibilizados, celebrar a diversidade e transformar as narrativas pelas quais pessoas trans e travestis são colocadas diariamente. Para falar sobre a produção cultural, o Da Ponte pra Cá da última quinta-feira (24/6) recebeu as três artistas para uma conversa com a repórter da Ponte, Beatriz Drague Ramos. O décimo episódio da série de lives está disponível na íntegra no canal do Youtube da Ponte.

Rapper, poetisa e compositora, Bixarte faz da música sua resistência e se tornou uma das maiores cantoras paraibanas atualmente. Aos 18 anos, lançou o álbum Revolução, e aos 19, Faces, também em versão remixada. Durante a pandemia, a cantora continuou seu trabalho com o apoio da Lei Aldir Blanc de incentivo à cultura. A Nova Era foi dividida em quatro partes, das quais três músicas com videoclipes já foram lançadas: “Oxum”, “Travesti no comando da nação” e “Àrólé”.

O mais novo álbum é resultado de uma produção de diversos artistas LGBTQIA+ em que Bixarte fala sobre autoconhecimento, afetividade, espiritualidade e reparação histórica às travestis. A maquiadora, estilista e dj Dorot Ruane assina a direção criativa do projeto, além da produção musical de “Travesti no comando da nação”. Já a multiartista visual Hiura Fernandes, ganhadora do Prêmio Amelinha Theorga de Fotografia 2020 da Secretaria Estadual de Cultura da Paraíba, dirigiu os videoclipes.

“A gente está fazendo um trabalho extremamente diversificador e fortificador. Nunca vi um trabalho desse em João Pessoa, nunca vi tanta travesti junta produzindo arte e não romantizando a precariedade, e sim querendo acabar com a precariedade sobre nossos corpos”, pontua Bixarte sobre a importância do novo álbum na carreira dela.

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Ela ressalta que essa diversidade na produção cultural tem que ser naturalizada cada vez mais. “A gente acredita na potência que nós somos. O recado que eu deixo é que todos se acostumem”, afirma a cantora. Hiura conta que fazer A Nova Era foi um marco na sua vida pessoal e um desafio profissional como diretora: “estamos tomando o que sempre nos foi negado. Então, agora, não mais falaram por nós. Vamos falar por nós mesmas”. Cada detalhe do álbum foi pensado para marcar o que é ser uma pessoa trans e travesti, explicou Dorot Ruane, além de exigir respeito também.

Fé, arte e diversidade

A repórter da Ponte destaca, durante a conversa, as reverências aos orixás nas músicas e nos videoclipes de Bixarte. Para a cantora, a presença das religiões de matriz africana na vida dela sempre esteve ligada também com questões raciais e de falta de identidade. Ela propõe no trabalho, fazendo referência aos terreiros e às divindades, criar uma conexão da sua vivência como travesti negra e sua ancestralidade e crença.

“O próprio candomblé e a própria umbanda classista embranquecem os nossos orixás. Eles trazem Oxum uma mulher branca, eles trazem Oxóssi um homem hétero, cis, forte e retinto. Mas nós estamos na Paraíba, estamos no Brasil”, explica Bixarte. “A colonização é comercial hoje em dia e, por ser assim, os corpos pretos não retintos também passam por um racismo que é violento e que fazem os nossos corpos desistirem de ir a um terreiro e desistirem de sonhar e cultuar a nossa ancestralidade”, prossegue.

Trazer novas perspectivas, segundo a artista, permite que mais pessoas se identifiquem com a espiritualidade, como forma de respeitar a si mesmas e ao sagrado. Nesse sentido, a proposta da cantora é ressignificar as divindades e denunciar o racismo, mesmo com receio da repercussão por abordar as questões religiosas.

“Eu não tenho nada a perder. A minha conexão com o sagrado e com as minhas irmãs ninguém consegue destruir pois é uma relação ancestral. Meu trabalho é um trabalho político. A nossa arte é de sentimento, reconexão e que me assegura e me mostra que eu estou no caminho certo, mesmo com os dias sendo muito difíceis”, afirma Bixarte. Ela destaca que, apesar da discriminação com os corpos travestis, a sociedade tem avançado em algumas questões. A presença de três travestis em uma live para falar de arte e não de violência é um exemplo desta mudança para a cantora.

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Assim como na religião, há outros espaços em que as travestis não se enxergam nos ambientes por estes se apresentarem hétero-cis-normativos, e a moda é um deles, segundo Dorot Ruane. A estilista é mother da Casa da Baixa Costura na Paraíba, responsável por um espaço de acolhimento para artistas LGBTQIA+ e de toda criação feita por estas pessoas.

“Chamo de baixa costura como crítica social à alta moda. É quase impossível ter acesso, você como pessoa não branca e brasileira, pois é algo totalmente eurocêntrico e está longe da gente. Nós como travestis temos que desconstruir a ideia do que é uma moda, do que é uma coisa cultural”, ressalta Dorot sobre o trabalho da Casa da Baixa Costura.

A estilista conta que esse movimento é inspirado na cultura ballroom, que surgiu nos anos 80 em Nova York (EUA), através de uma iniciativa da comunidade negra e latina LGBTQIA+ de se encontrar em bailes como espaços de politização, troca de afeto e acolhimento a diversidade de gênero e raça. Dorot conta que seu projeto nasceu em 2016 tornando-se a primeira casa ballroom na Paraíba que segue uma lógica travestigenere.

Senhoras travestis

No bate-papo, a multiartista Hiura Fernandes pontuou que parte da sociedade ainda não reconhece as travestis como uma identidade de gênero e carregam preconceitos. Para ela, é importante as pessoas saberem diferenciar pessoas transexuais e pessoas travestis, sem que haja receio de referir às travestis. “Dentro do imaginário brasileiro, da construção que a gente fez com a palavra travesti e com a palavra trans, existe uma diferença total. Qual o medo de falar travesti?”, questiona Hiura.

“Travesti é uma identidade brasileira, latino-americana, que existe muito antes do LGBTQIA+. Travesti existe desde sempre. Qual o medo de falar a palavra travesti? Porque travesti é a pobre, é a preta. A trans ela é a branca que passou no crivo da ‘mulheridade’, sabe?”, prossegue a artista. Ao lembrar de Xica Manicongo, travesti africana escravizada que vivia em Salvador e foi morta pela Santa Inquisição, Hiura diz que é importante afirmar que travestis também são mulheres, estão nessa luta de reconhecimento do gênero feminino e devem ser tratadas como senhoras travestis.

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Bixarte também recorda que as travestis foram as primeiras a irem à luta pelos direitos. Os preconceitos são reproduzidos até mesmo dentro da própria comunidade LGBT, segundo a cantora, quando a palavra travesti é ligada à prostituição e não a uma identidade. “A questão com a palavra travesti é o racismo, porque a gente estereotipou o corpo travesti. A travesti é a barraqueira, é a que rouba, e é um corpo que não é branco. É importante pautarmos isso para entender que existe uma intersecção e é o racismo em nossas vidas. Se você pegar qualquer relatório da Antra [Associação Nacional de Travestis e Transexuais], você vai ver que existe uma discrepância enorme em ser uma travesti e ser uma mulher trans de classe média e vista no mundo como branca”, afirma Hiura sobre a aceitação e a resistência de travestis exercendo as mulheridades como elas são fisicamente, sem entrar em padrões femininos impostos pela sociedade.

Para Dorot, a saúde de pessoas travestis e a hormonização é uma questão que precisa ser tratada com atenção e respeito, principalmente quando travestis procuram consulta médica. “Onde travesti pisa, o solo é sagrado. A gente não quer ser homem ou mulher, essa dualidade binária é violenta para o meu corpo”, relata a estilista.

Bixarte adianta que, em um dos seus próximos trabalhos, ela fala sobre a população travesti não ser visibilizada em nenhum espectro político no Brasil. “Nem esquerda, nem na direita, [a medicina] fala sobre o meu corpo. Não é só sobre questão hormonal, mas principalmente em consultas diárias que somos destratadas. Isso faz com que muitas das nossas morram por diversos fatores, dentro de casa”, relata a cantora.

As três artistas enfatizam a relevância de abordar as diversas perspectivas da vida de travestis e não somente os casos de violência que ocorrem, e agradeceram o espaço dado pela Ponte. Denunciar a transfobia é um dos caminhos para mudar esta realidade, mas não o único. Nessa lógica, Bixarte acredita que é preciso “hackear” a mídia, ou seja, transformar esses espaços para que toda a diversidade e a produção cultural travesti também seja conhecida, para além do mês do Orgulho LGBT.

Ela conta que já se negou a dar entrevista a alguns portais de notícias quando sofreu violência, pois os mesmo veículos não deram visibilidade ao trabalho artístico da cantora. “Se quiserem falar sobre Bixarte, vão falar sobre A Nova Era e sobre a Casa da Baixa Costura e do trabalho que venho fazendo na Paraíba e não sobre minha dor”, esclareceu.

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A cantora viu que as redes sociais seriam um espaço pelo qual ela poderia explorar, contar suas próprias narrativas e divulgar o trabalho dela como artista independente. Mesmo sem o apoio da grande mídia, ela conta que tem conseguido ótimos retornos com os videoclipes de A Nova Era. “Vamos hackear muito mais, mas até o fim do ano temos uma sequência de lançamentos. Fomos aprovadas no edital da Casa Natura Musical e vamos fazer um álbum patrocinado”, celebra Bixarte. Hiura comenta que a estratégia de trazer as travestis negras para a cena audiovisual e toda a produção cultural é uma forma de provar que elas podem ocupar qualquer espaço. No fim da conversa, Dorot reforça que é preciso dar mais oportunidade de trabalho às travestis, além de reconhecer toda a criação artística já feita.

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