‘O Estado tirou o nosso direito de sorrir’, dizem Mães de Maio em lançamento em SP

    Com emoção, afeto e coragem, mães denunciam mais uma vez a violência de Estado que matou seus filhos; Débora Silva criticou ausência de movimentos sociais: ‘Cadê os que pregam o fim do genocídio?’

    Bandeiras dos movimentos das Mães de Maio durante evento de lançamento do novo livro | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    O local escolhido para lançar “Memorial dos Nossos Filhos Vivos – as vítimas invisíveis da de democracia”, organizado por Débora Maria da Silva, líder do Movimento Mães de Maio, foi o Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), no Largo São Francisco, região central da cidade. O livro traz depoimentos de mulheres que perderam seus filhos, mas, dessa vez, em vez de falar de luto, o olhar é focado na vida das vítimas dos crimes de maio de 2006.

    Na semana passada, a Ponte disponibilizou, em primeira mão, um dos capítulos, que conta a história da família de Vera Lucia Gonzaga, a Verinha, que morreu em maio do ano passado, sem ver justiça no caso da morte da filha Ana Paula, grávida de 9 meses de Bianca, e do genro Eddie Joey. Esse é o quarto livro que conta a história de luta das Mães de Maio, movimento que surgiu depois o assassinato de quase 600 pessoas em maio de 2006, em um revide das forças de segurança do Estado aos ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital). Vera foi homenageada ao longo do evento com gritos de “Vera, presente. Hoje e sempre”.

    Mães de Maio durante lançamento em SP | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    O lançamento contou com três rodadas de mesas de conversa. Nas duas primeiras, o público pode ouvir os relatos de mães que perderam seus filhos pelo braço armado do Estado, que lembraram, mais uma vez, a dor da ausência dos seus entes queridos. “As mães estão ficando doentes. É uma doença que o Estado colocou em nós”, lembra Maria Sônia Lins, mãe de Wagner Lins dos Santos, morto aos 22 anos, quando ele e um primo se dirigiam até a casa de uma tia para jogar videogame, em Santos, no litoral sul, paulista.

    Em uma fala emocionante durante a primeira mesa, Miriam Duarte, que teve dois filhos assassinados quando tinha 17 anos, relatou como foi a experiência de completar 18 anos da morte do seu filho mais velho. “O Estado tirou o nosso direito de sorrir. Eu tive uma experiência que foi muito doída, eu tive a mesma sensação de ter matado meu filho mais velho novamente. Foi uma sensação muito ruim quando você tem a morte acima da vida. Quando tem mais anos de morte do que de vida. Por isso eu falo para as mães se prepararem”, conta Miriam.

    Miriam Duarte também criticou o sistema prisional em sua fala. “Quem matou meus filhos primeiro foi a prisão e depois a bala. Porque você entrar no sistema prisional, eu tenho a sensação de estar entrando em uma catacumba, ver aquelas camas de cimento é a mesma coisa de ver onde se colocam os caixões. Eu vejo o sistema prisional um cemitério de vivos-mortos, que estão se preparando para, quando saírem, morrerem também”, salienta a mãe.

    Ainda na primeira mesa, Débora Silva criticou a ausência de movimentos sociais no evento. “Quando a gente faz as críticas, quando a gente fala dos movimentos, principalmente do movimento negro, porque quem tá preso é o preto, quem tá morrendo é o preto. Cadê os pretos defendendo as mães que perderam os filhos? Agora há uma revolta muito grande que a gente tem que começar a rever os convites que fazem para nós. Quando há atividades feitas pelas nossas mãos, pelos nossos pulsos, que a gente não pede ajuda de ninguém, a gente vê mazela, que é fruto do sistema para nos dividir e nos corroer aos poucos. Esse negócio de segurar as mãos, só seguram as mãos das mães quando eles tão no sufoco. O Estado só avançou por causa dessa divisão de ego, mas mãe não divide ego, mãe é de unir”, critica a líder das Mães de Maio.

    Na segunda mesa, Júnia Mariza Ferreira Silva, mãe de Otávio Felipe Silva Santos, falou pela primeira vez em público sobre o assassinato do filho, morto pela Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) dentro de casa, na zona norte de SP, em 2014 . “Meu nome é Júnia, eu sou da zona norte. Sou mãe do Otávio Felipe, que foi assassinado pela Rota dentro da minha casa. Eu quero agradecer primeiramente a Deus e ao André Caramante por fazer a ponte com a Débora, que foi essa pessoa maravilhosa que Deus colocou no meu caminho e me deu essa oportunidade no livro. Quero agradecer todos aqueles que estão envolvidos nesse livro. Quero agradecer de coração. Quero dizer a você, Débora, e te agradecer por fazer parte da minha vida”, disse Júnia muito emocionada.

    Já a terceira mesa, contou com nomes como Dina Alves, advogada e coordenadora do Departamento de Justiça e Segurança Pública do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Erica Malunguinho, deputada estadual pelo Psol, Eleonora Rangel Nacif, presidente do IBCCRIM, e Maria Teresa Cruz, repórter e editora da Ponte Jornalismo.

    A terceira mesa contou com Eleonora Rangel Nacif, do IBCCRIM, Maria Teresa Cruz, da Ponte, Erica Malunguinho, do Psol, e Dina Alves, do IBCCRIM (da esq. para dir.) | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    Quem abriu a terceira e última mesa do evento foi Maria Teresa Cruz, que falou do livro das Mães de Maio. “O livro tem uma característica singular, pois não tem interferência externa. São depoimentos, são o coração, são a alma dessas mães. Parece que a mãe está falando com a gente”, disse a jornalista.

    Coragem do movimento Mães de Maio também foi lembrado pela jornalista da Ponte. “As violências do Estado são muitas e acontecem todos os dias. É muito comum alguém que teve seu direito violado pelo Estado recuar e ter medo de falar. Por isso queria salientar que esse movimento tem muito coragem. Não é fácil dar a cara e enfrentar poderosos, colocar o dedo na ferida e dizer ‘ó, Estado, policial, você está em desvio de função, você está usando sua farda para ser matador, pra compor milícia e grupo de extermínio'”, que finaliza com uma autocritica ao jornalismo: “ele é covarde na construção da narrativa quando deixa de chamar as coisas pelo nome que elas têm. Então temos que chamar de genocídio, entender que não existe bala perdida, existe bala que acha corpos pretos, pobres e periféricos”, salienta Maria Teresa.

    Na sequência, Erica Malunguinho, deputada estadual pelo Psol-SP, defendeu que a luta deve caminhar para evitar os assassinatos de corpos pretos e periféricos. “Para além de uma oposição reativa, façamos uma oposição propositiva. Nós devemos pensar antes do sangue escorrer, devemos pensar antes da bala atravessar os nossos corpos. Pensar em como, para além do Estado, nós enquanto sociedade civil, vamos nos organizar para que mais corpos negros não sejam colocados nessa vala. Isso fala de responsabilidade e corresponsabilidade de um Estado que foi construído como foi”, argumenta Malunguinho.

    Dina Alves, advogada e coordenadora do departamento de Justiça e Segurança Pública do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), criticou a quantidade de pessoas no lançamento. “A esquerda está perdendo cada vez mais o bonde da história, está perdendo um momento ímpar no Brasil porque esse salão está vazio. Isso aqui era para estar lotado. Cadê o povo? Essa luta é legítima porque é uma luta contra o genocídio já denunciado a tanto tempo e, mais do que isso, mais do que mulheres gritando pelas praças, o Estado brasileiro já reconheceu que mata, que existe um genocídio no país. O movimento das Mães de Maio é um movimento feminista, é um movimento contra o genocídio, é um movimento anticapitalista, é um movimento anti-imperialista, que luta contra o encarceramento em massa, é um movimento muito potente que a esquerda está perdendo”, avalia Dina.

    Para encerrar a mesa, Débora Silva falou mais uma vez sobre a ausência dos movimentos sociais, contemplando a fala de Dina. “Onde tá essa militância? É vergonhoso, eu tenho vergonha do estado de São Paulo. Aqui se fala muito de fascismo, mas enquanto a gente não combater o fascismo que está do nosso lado, no nosso meio, a gente não avança. Fascista não é só o Bolsonaro. Se uma mãe no Rio de Janeiro fizer um evento, todo mundo cola com elas. Sabe porquê? Por que lá tem humanidade dos movimentos sociais. O que está faltando aqui é isso, sempre foi assim. Trazer mãe para fazer média em mesinha a gente tem que combater. A gente sabe por onde caminha o fascismos que se fala tanto”, reprova Débora.

    Depois do evento, um cortejo foi feito até a Secretaria de Segurança Pública, onde velas foram colocadas no meio fio para lembrar das vítimas dos crimes de Maio. “A gente era acostumada a chorar, só fazíamos eventos e mesas chorando. Chorar a morte dos nossos filhos foi uma tática da gente não mais chorar, mas sim de reviver eles vivos, contar quem eram eles, dizer que eles não eram suspeitos, que eles eram cidadãos de bem, que eles eram pais de família, que eles eram nossos filhos”, conta Débora à Ponte, durante cortejo.

    Débora também disse à Ponte que a luta das mães contra o presidente Jair Bolsonaro (PSL) vem de muito antes. “São 13 anos de luta. Nós enfrentamos esse governo quando ele ainda era deputado federal, nos corredores da sala verde, e vamos continuar enfrentando esse governo e enfrentando esse pacote fake [pacote anticrime do ministro de Justiça e Segurança Pública Sergio Moro], dizer que ele é um pacote da morte. Não podemos aceitar que existe um estado democrático de direito onde há um autoritarismo que a gente jamais vê em outros países e aqui a gente enfrenta essa situação”, defende a líder das Mães de Maio.

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