‘O feijão com arroz da democracia brasileira é essa violência estatal contra parcelas da população’

    Documentário “O Estado e a cena do crime”, da Universidade Federal de São Paulo, mostra que ciência pode mudar impunidade histórica do Brasil

    “O feijão com arroz da democracia brasileira é essa violência estatal disseminada contra parcelas específicas da população”, afirma Acácio Augusto, professor do campus de Osasco da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), na abertura do documentário “O Estado e a cena do crime”. O filme, que estreou esta semana na internet, faz parte de uma série que transita por diversos eixos temáticos e celebra os 25 anos da universidade.

    Por meio de entrevistas com pesquisadores das áreas da antropologia forense, sociologia e direitos humanos da Unifesp, o documentário de pouco mais de 15 minutos, disponível no YouTube, aborda casos como a Vala de Perus, onde em 1990 foram encontrados restos mortais de desaparecidos do período da ditadura; os Crimes de Maio de 2006, quando centenas de civis foram executados pela polícia e por grupos de extermínio; e a Chacina de Osasco e Barueri em 2015, a maior de São Paulo, com 23 mortes – o filme mostra que a munição é do mesmo tipo que a usada para matar a vereadora Marielle Franco (PSOL), em 2018.

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    No conjunto, o filme mostra que há tempos o Estado brasileiro vive em guerra contra uma parcela da população, com métodos particulares de atuação e um sistema institucional que a legitima.

    “Há uma permanência do modus operandi de violação e violência desde os tempos da ditadura militar até a democracia”, observa no filme a socióloga e pesquisadora do Centro de Arqueologia e Antropologia Forense (Caaf) e professora da Unifesp, Raiane Assumpção.

    Segundo a pesquisadora, não houve de fato uma justiça de transição. “Tivemos as comissões da verdade, que foram importantes, mas não conseguimos fazer uma análise dos casos e o julgamento das pessoas que cometeram os crimes da forma que outros países fizeram.”

    Conhecimento acadêmico e movimentos sociais

    Por um lado, o filme é desalentador. Afinal, mostra que violência e impunidade fazem parte da história do Brasil. Mas, observando por outro ângulo, o documentário passa a ser inspirador, pois ressalta como uma ciência engajada e comprometida com a sociedade pode ajudar a mudar essa realidade.

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    O objetivo do documentário, segundo Raiane, foi justamente esse: dar visibilidade a um conjunto de pesquisas realizadas pela universidade. “São estudos importantes tanto pelo tema como pela forma como são elaborados”. Em especial no Caaf, que tem se debruçado sobre a temática da violência de Estado, ela conta que foi desenvolvido uma metodologia que inclui no trabalho de investigação familiares e movimentos sociais.

    Essas pesquisas têm sido fundamentais na construção de argumentos e referências para processos no sistema jurídico em defesa das vítimas da violência de Estado, explica a pesquisadora.

    Meu filho foi uma das vítimas”

    “Em 15 de maio, o Estado parou para matar”, diz Débora Maria Silva, fundadora do Movimento das Mães de Maio, uma das entrevistadas no filme, sobre os Crimes de Maio de 2006. “Meu filho foi uma das vítimas”.

    Após revelação, por escutas telefônicas, de um plano de rebeliões que seria executado no Dia das Mães, a Secretaria de Administração Penitenciária transferiu centenas de presos para a penitenciária de segurança máxima 2 de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo. Em resposta, a facção criminosa PCC deu início a uma série de ataques a agentes de segurança pública, que deixou 59 mortes.

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    A retaliação da polícia veio em seguida, desproporcional e aleatória: 505 civis foram assassinados por forças policiais e grupos de extermínio, mesmo sem vínculo com facções criminosas. “Por meio de análises diversas, reconstruímos histórias de vidas das vítimas e consequências dessas mortes para as famílias”, conta Raiane.

    Segundo a socióloga, resultados mostram como o modo de operar do Estado por meio de agentes públicos, deixa várias vítimas, além da pessoa morta. “Utilizam da prerrogativa do uso legítimo da força para eliminar grupos que não consideram parte da sociedade.”

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    A pesquisa da Unifesp contribuiu para que o processo continue tramitando na Corte Interamericana de Direitos Humanos. “Nosso relatório tem sido usado como referência, porque dá uma base consistente para afirmar que não são casos isolados, mostra que é recorrente, há um modo padrão que se repete em todos os casos.”

    Todos os tres casos abordados no filme tem em comum estudos realizados pela Unifesp em parcerias com movimentos sociais e de familiares de vítimas. Além do Caaf, o filme entrevista pesquisadores do Laboratório de Estudos Arqueológicos (LEA) e do Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento (Lasintec).

    Personagens tiveram suas vidas marcadas de forma trágica

    O desafio de fazer um filme sobre divulgação científica é não se perder pelo academicismo e fazer algo hermético. Mas no caso da série da Unifesp, e especificamente do episódio “O Estado e a cena do crime”, a temática de enorme interesse público ajudou um bocado, afima Daniel Salaroli, da Peripécia Filmes, que assina roteiro, direção e edição do episódio. Nos outros documentarios da série da Unifesp, se alternaram nessas tarefas Caio Polesi e Chica San Martin.

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    “O filme atravessa a vida de parte da população por meio da história”, diz o diretor. “Alguns dos personagens tiveram suas vidas marcadas de forma trágica pelos fatos abordados”. Duas reportagens da Ponte aparecem no filme: “Justiça de SP: Brasil teve ‘suposta ditadura’ e Ustra não era torturador” e “‘Mães em Luta – Dez anos dos Crimes de Maio de 2006’ é lançado em SP”.

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