‘O manicômio está fora do manicômio. Os muros invisíveis segregam e matam’

    Para o psicanalista André Nader, a estrutura manicomial passa por controle social; momentos de perigo e incertezas fazem emergir o fascismo que há dentro de nós

    O psicanalista André Nader: “o manicômio es´ta fora do manicômio” | Foto: arquivo pessoal

    As estratégias manicomiais estão sendo atualizadas, defende o psicanalista André Nader, também mestre pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. É bem verdade que os mecanismos de violência no controle social e a repulsa ao outro, aquele que é diferente de você, sempre existiram na sociedade. Mas para Nader, autor do livro “O não ao manicômio: fronteiras, estratégias e perigos” (2019), o conceito de “manicomial” assumiu outras dimensões no atual momento em que vivemos.

    “Manicomial seria uma metáfora para pensar nos muros invisíveis, que têm se intensificado. Incluir as pessoas no social, na cidade, nos empregos são desafios, porque lutamos contra muros invisíveis. Nesse sentido, pensar em uma sociedade sem manicômios é pensar em uma sociedade com menos segregação”, pontua o psicanalista.

    Em entrevista à Ponte, André Nader fala dos avanços da reforma psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, lembrada nacionalmente nesta semana de 18 de maio, e destaca a série de retrocessos nessa área, que pode ser testemunhada de maneira mais clara a partir do governo de Dilma Rousseff, com criação de políticas de exclusão, atualizadas pelo ex-presidente Michel Temer e consolidadas por Jair Bolsonaro.

    Nader também fala dos desafios de trabalhar com saúde mental durante o isolamento social imposto pela pandemia e os riscos dos silenciamentos, em cenários repletos de extremismos. “A matéria-prima do trabalho com saúde mental é a proximidade. A gente está tentando emular a proximidade por meio do vídeo, mas muita gente não tem acesso devido a questões econômicas ou de organização psíquica ou de idade”, avalia.

    Confira a entrevista:

    Ponte – Em seu livro, você defende a amplitude do termo manicomial. Afirma que não diz respeito à saúde mental, necessariamente. Tem a ver com o quê?

    André Nader – A luta contra os manicômios não visa somente as instituições, os muros e as paredes. O [Franco] Basaglia, psiquiatra italiano que embasou a reforma psiquiátrica na Itália, e é grande influência no Brasil, falou disso há bastante tempo. A ideia é de que os muros que encarceram a loucura não são apenas reais e concretos, mas simbólicos. No livro, estou acompanhando essa ideia. A gente sabe que acabar com os manicômios não é suficiente, assim como abrir CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). Incluir as pessoas no social, na cidade, nos empregos são desafios, porque lutamos contra muros invisíveis.

    Ponte – Você fala do manicômio fora do manicômio. O que quer dizer com isso?

    André Nader – Não se trata mais do manicômio enquanto coisa, como um substantivo, mas [enquanto] atitudes e formas de enxergar. Isso está ligado ao que acontece no Brasil hoje em dia. Manicomial seria uma metáfora para pensar nos muros invisíveis, que têm se intensificado. Digo que têm se intensificado, pois não acho que eles deixaram de existir com a redemocratização, no fim da década de 1980. Avançamos com ela, mas a segregação sempre existiu e talvez a ditadura não tenha acabado para uma grande parcela da população. Aproximo a reflexão sobre [a inclusão das] minorias em nossa democracia da reflexão sobre a inclusão da loucura com o objetivo de repensar nossas relações sociais e a própria democracia. Nesse sentido, pensar em uma sociedade sem manicômios é pensar em uma sociedade com menos segregação, independentemente de quem a sofre (loucos ou não) e da qualidade dos muros (concretos ou virtuais).

    Ponte – Você tem exemplos do que seria o conceito de manicomial para além da saúde mental?

    André Nader – Podemos pensar em alguns efeitos. Uma das pautas do momento é o acesso às universidades a partir da diminuição do investimento nelas. De alguma maneira, desinvestir na educação pública é uma maneira simbólica de construir muros e determinar quem tem acesso e quem fica de fora. Assim como as tentativas de mudar as demarcações de terras indígenas, excluindo [os índios], eliminando direitos. Toda essa ideia do governo Bolsonaro de que o índio é igual ao homem branco – repetida várias vezes – é uma violência. Só que muito mais sutil, porque não significa pegar o índio e colocá-lo dentro de uma prisão, mas excluí-lo enquanto existência, de uma maneira não tão visível quanto os muros de uma instituição, mas microscópica. [Isso ocorre] tirando seu direito à terra, a se relacionar com a terra de uma maneira que tem a ver com sua cultura. É muito mais complexo, porque faz parecer que está tudo bem, que não é uma maldade – é “só” dar os mesmos direitos que o homem branco tem. É uma espécie de modernização das técnicas de controle, que avançaram. Não é um manicômio enquanto instituição. Acontece impedindo formas de ser, criando barreiras, transformando a cultura. Outra ideia de muro simbólico é esse quase fetiche por acabar com a discussão de gênero nas escolas. Não falar sobre opções sexuais é criar um muro que empareda quem não é heterossexual. É impedir que tenham nomes, sejam vistos e possam existir entre nós. Eles não estão trancados em uma prisão, mas são deixados de fora.

    Ponte – Já é possível mensurar desafios específicos à luta antimanicomial no contexto da pandemia de coronavírus e do isolamento social?

    André Nader – O máximo que está dando para fazer por enquanto é amparar, pensar junto. E concordar que é uma situação muito difícil. A matéria-prima do trabalho com saúde mental é a proximidade. A gente está tentando emular a proximidade por meio do vídeo, mas muita gente não tem acesso devido a questões econômicas ou de organização psíquica ou de idade. É um jeito de estar perto que tem muitas limitações. Os profissionais dos serviços públicos estão disponibilizando informações, dando água, sabão, acompanhando in loco ou por telefone quando é possível. Mas é uma situação muito angustiante, ainda não é possível ir além disso.

    Ponte – Sua pesquisa começa antes de o país chegar ao momento de hoje, mas você acha que conversa com o presente?

    André Nader – Comecei a escrever o livro antes da eleição do Bolsonaro e do impeachment da Dilma. Segui pós impeachment até o começo do governo Temer. [O livro] toca mais na questão desse controle microscópico, de que o inimigo não é mais o mesmo. Os perigos estão entre todos nós. É deles que a gente precisa cuidar.

    Leia também: Governo Bolsonaro quer trazer de volta os manicômios no Brasil

    Ponte – O que o fez perceber que o inimigo havia mudado?

    André Nader – Minha prática no serviço de saúde mental. Atuei em serviços abertos, que não aprisionavam ninguém, eram territoriais – ou seja, respeitavam o local de vida das pessoas, propunham-se a garantir que as pessoas em sofrimento mental não perdessem os laços com a família e os amigos. Era um programa oposto ao dos manicômios e, ainda assim, não conseguia acabar com os muros totalmente. No cotidiano, fui percebendo como é difícil criar um [campo] comum com a loucura, sustentar a tamanha diferença que é o enlouquecimento. A gente, que é profissional, muitas vezes cria um muro em torno da gente. Era uma luta diária. Primeiro, olhava para esses muros nas pessoas e ficava enraivecido, mas, aos poucos, fui percebendo que o mais absurdo é que eu também criava os meus. Voltando ao macro, me parece que é esse o desafio da própria democracia. Como a gente vive com o outro? Com a diferença? Como a gente vive a nossa vida sem esquecer de que nossas escolhas afetam outras vidas? Viver em sociedade é isso, não criar tantos muros em torno de si.

    Ponte – Você usou a palavra “totalmente” para afirmar que, mesmo no serviço aberto de saúde mental, não era possível cuidar totalmente das pessoas. Qual é o ideal de tratamento se o totalmente não é possível?

    André Nader – Para ser rigoroso com o que escrevi, diria que totalmente e ideal são utopias. Por um lado, podem nos ajudar quando servem de horizonte para o qual nunca deixamos de olhar, mas podem atrapalhar se viram um imperativo, se passam a indicar insuficiência no que fazemos. É análogo ao que entendo por democracia: não podemos parar de trabalhar para construir novas formas de viver todos juntos, ocupando-nos uns dos outros. Viver com o outro é sempre difícil. Na loucura, mais difícil ainda. O importante é romper com o totalmente, com a ideia de que haveria um lugar de chegada, onde tudo estaria resolvido. Fazemos isso inventando continuamente respostas aos novos problemas que surgem, apostando que as coisas podem mudar, com o cuidado de isso também não virar um novo ideal.

    Ponte – Gostaria que falasse sobre Belo Monte, porque a expulsão da população ribeirinha ocorreu durante um governo mais à esquerda e você acompanhou uma série de muros sendo construídos naquela realidade.

    André Nader – Talvez Belo Monte seja mais um exemplo do manicomial como adjetivo. De fato, o que se vê lá é que a barragem é um grande muro barrando vidas minoritárias. Para quem faz política, o número de ribeirinhos é irrisório, não importa – o que é um absurdo. Vi uma série de vidas sem seus laços de amizade, seus modos de subsistência, sua cultura. Os ribeirinhos viviam em ilhas por onde passava o [rio] Xingu, no qual pescavam e tinham as vidas organizadas pelas transformações do rio. A barragem significou a violência de destruir. Casas foram queimadas, eles foram brutalmente retirados e obrigados a viver na cidade, em casas que não respeitavam nada, em bairros distantes, sem transporte público, com contas de luz altíssimas. Se os corpos não foram assassinados, as formas de vida foram, e isso produz sofrimento, adoecimento mental e físico. É uma obra que foi decidida e implementada durante um governo de esquerda. É terrível.

    Ponte – Você também aborda outro ponto no seu livro, a ideia de que perigo e fascismo estão em nós, independentemente dos governos. É isso?

    André Nader – A ideia do livro, que vem de [Michel] Foucault, é deixar de pensar no fascismo como algo macropolítico, mas [como algo] das relações. Então, pode estar nos lugares menos prováveis, inclusive em nós mesmos. A gente pode ser progressista e ter cuidados com o outro no dia a dia, mas, em algum momento, desejar ou recorrer a uma medida totalitária para resolver determinada situação.

    Ponte – Seria um retrocesso disfarçado de avanço?

    André Nader – Tem sido importante discutir se vivemos um retrocesso. Por exemplo, na política isso significa dizer que estamos voltando à ditadura; na saúde mental, aos manicômios. [Esse raciocínio] pode levar a pensar que, para lutar contra isso, a gente precisa usar as armas que usamos no passado. Mas fui entendendo que os perigos são diferentes e as armas, portanto, precisam ser outras. Nesse sentido, ainda que exista um risco de ver cenas como as dos manicômios nas comunidades terapêuticas, por exemplo, interessa chamar o que estamos presenciando de avanços, para que nos coloquemos o desafio de seguir construindo novas formas de luta.

    Ponte – Na política de saúde mental hoje, vale abrir os olhos para as comunidades terapêuticas e para a inclusão dos hospitais psiquiátricos na RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), do Ministério da Saúde?

    André Nader – Essas duas mudanças são o que há de mais claro, mais parecido com o que já conhecemos como perigo, mas não é só por esse motivo. Com a inclusão dos hospitais [psiquiátricos] na RAPS, há mais verba conforme o uso dos leitos, o que é preocupante, pois induz os hospitais a manter seus leitos sempre cheios. Mas, por enquanto, segue valendo a diretriz da reforma [psiquiátrica] de que as pessoas não podem ficar mais de 90 dias no hospital. Com isso, as pessoas não ficam mais internadas por décadas, o que autoriza a dizer que o hospital é um aliado da reforma. Só que agora, com o aumento do investimento nos hospitais e o repasse sendo feito por leito ocupado, outra lógica se instituirá: no lugar de uma mesma pessoa internada por décadas, haverá pessoas indo e voltando da internação. Se não há mais condições tão degradantes, com pessoas andando nuas e adoecidas fisicamente, não significa que não haverá outras violências, menos claras.

    Para Nader, “Bicho de Sete Cabeças” é uma alegoria que deu visibilidade à loucura e ao horror dos manicômios | Foto: divulgação

    Ponte – Essas duas mudanças aconteceram ainda no governo Temer. Temos novidades sob Bolsonaro?

    André Nader – A primeira mudança na direção oposta da reforma psiquiátrica ocorreu no governo Dilma, quando foi nomeado o Valencius Wurch para o cargo de coordenador de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, psiquiatra que foi diretor-técnico da Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi – na época, o maior manicômio da América Latina –, hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro fechado em 2012, após denúncias de violações de direitos. Na tentativa de assegurar apoio, no fim de 2015, Dilma foi ofertando ministérios e deu a Saúde para o PMDB. Desde então, as mudanças vêm acontecendo. O que o governo Bolsonaro fez foi agrupar todas as portarias editadas [pelo Ministério da Saúde, no governo Temer] na nota técnica nº 11/2019. Além disso, nas políticas para drogas, o atual governo tem se colocado contra a política de redução de danos e aprovou uma lei que prevê a internação compulsória de usuários de álcool e outras drogas.

    Ponte – Dizer “trabalho com a loucura” pode gerar uma certa repulsa. Quais os principais desafios entre os profissionais?

    André Nader – Às vezes, é tão difícil lidar com o incerto e o contraditório que desejamos algo que dê conta de tudo, que traga todas as respostas. Ou seja, uma resposta totalitária. Aí vale uma teoria, uma instituição ou, no limite, um governo que vá meter bala, colocar todo mundo na cadeia, resolver todos os problemas da economia. Tudo isso é uma mentira que a gente conta pra gente mesmo e serve pra nos proteger. Só que, ao nos proteger, produz violência para uma grande parcela da população. Por exemplo, para aquele paciente internado, que vive um eterno presente, sem laços, hipermedicado, maltratado. Quem paga é o corpo do outro, o corpo escondido, periférico, negro, trans, da mulher. Vamos criando maneiras para fingir que nem está lá, que não é um problema.

    Ponte – Fala-se muito em risco à democracia, mas o fato é que Bolsonaro chegou ao poder pelo voto. Como a gente inclui isso que é democrático, mas ameaça uma série de outras coisas?

    André Nader – É um dos novos desafios a enfrentar. O atual governo é paradoxal. Sim, [Bolsonaro] foi eleito democraticamente, a partir das regras da democracia, do voto e tudo mais. Por outro lado, pensar a democracia só a partir da escolha do representante é pouco. Ele foi eleito democraticamente, mas não governa de maneira democrática.

    Ponte – Por que em seu livro optou por falar sobre o filme “Bicho de Sete Cabeças”? Não existe também um fetiche em torno desse filme?

    André Nader – É uma alegoria. Junto com o filme aconteceram uma série de outras ações socioculturais que deram visibilidade à loucura e ao horror dos manicômios. O roteiro todo é a construção da ideia da instituição contra um jovem comum, que poderia ser qualquer um de nós. Ele acaba aprisionado no manicômio e enlouquecido pelo manicômio.

    Ponte – E ele chega lá pelo uso de drogas…

    André Nader – Pelo uso de maconha, mas não é só isso. Era um menino rebelde, que não obedecia aos pais. O pai era retrógrado e preconceituoso. O filme vai se utilizando do melodrama para deixar claro quem eram os mocinhos e os bandidos, de modo que o espectador tenha a certeza de que o pai é um conservador, os médicos e enfermeiros, monstros, e correto é quem luta contra isso. Culturalmente, é ótimo, porque, no Brasil e no mundo, ao longo dos séculos, a loucura tem sido vista como algo perigoso, que vai fazer mal, e o mais certo e lógico é que esteja presa. Esse perigo associado à loucura não é verdadeiro. Socialmente, o filme ajuda a romper esse estigma. Foi uma ótima estratégia, mas tem seus limites. Muitas vezes, a loucura fora do manicômio não é o Rodrigo Santoro [ator que protagonizou o filme]. Ela pode ser feia, fedida, bizarra. O filme não é suficiente para pensar em como lidar com isso. Ele não foi feito para isso. A questão é que precisamos seguir em frente com outras estratégias e táticas de luta, pensando em como se relacionar com a loucura, evitando sua exclusão.

    Ponte – Gostaria que você comentasse sobre o risco de “pregar para convertidos”, para os que pensam igual. Como seu livro se relaciona com isso?

    André Nader – Entendo a crítica de que é pregar para convertidos, mas o livro e meus últimos textos publicados, inclusive na Ponte, são voltados para convertidos. Justamente porque não são textos preocupados em mudar a percepção de quem acha a loucura violenta ou quer aprisioná-la. O ponto é que fui sentindo, no meu trabalho e na militância na saúde mental, que nós, os convertidos, precisamos aprimorar nossas técnicas, nosso modo de pensar e nosso discurso para avançar com os ideais da reforma psiquiátrica. É um livro pensado como uma conversa e uma convocação às pessoas que já estão deste lado da luta. O melhor que poderia desejar para este livro, no mundo, é ajudar os convertidos a criar maneiras potentes de seguir e, talvez, aí sim, tocar os não convertidos.

    (*)Anna Carolina Lementy é psicanalista e jornalista.

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