O que é e como funciona o auxílio-reclusão

Ponte desmente informações e explica os critérios de acesso ao auxílio-reclusão, que corresponde a 0,05% dos benefícios pagos pelo INSS e atinge pequena fração da população carcerária do país

Presídio do Complexo da Papuda, no DF | Foto: Gláucio Dettmar/CNJ

“Bolsa cadeia” ou “bolsa bandido” são expressões pejorativas usadas para se referir ao auxílio-reclusão. Mentiras costumam circular nas redes sociais quando há alguma mudança relacionada ao benefício ou quando a pauta é sobre o sistema penitenciário brasileiro. A mais recente foi propagada nesta semana por um veículo jornalístico que teria justamente a obrigação de desmentir notícias falsas e teve que se retratar depois por conta do erro.

O programa Linha de Frente, do Grupo Jovem Pan, resolveu comentar a portaria interministerial nº 26, assinada em 10 de janeiro pelos ministros Carlos Lupi, da Previdência Social, e Fernando Haddad, da Fazenda, a respeito do reajuste dos valores dos benefícios pagos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que é ligado ao Ministério do Trabalho e Previdência.

Tanto a chamada quanto os comentários dos apresentadores e convidados estavam errados a respeito do texto ao divulgar que o valor do auxílio-reclusão teria aumentado para R$ 1.754,18 e que isso representaria um acréscimo de R$ 500, já que o salário mínimo em 2022 era de R$ 1.212. Dentre as falas, estava a indignação de que o preso ou familiares dele receberiam mais do que um trabalhador comum que está fora das grades, já que o salário mínimo vigente é de R$ 1.302, que o preso deveria trabalhar ao invés de receber o benefício e que o sistema prisional deveria dar condições para isso. Além disso, ninguém explica os critérios para conseguir o auxílio. A retratação do programa diante desses equívocos foi feita no dia seguinte, com todas as explicações que deveriam ter sido checadas antes.

Para evitar que mais desinformação se alastre e para facilitar o acesso a quem precisa, a Ponte explica em detalhes o que é esse benefício, como funciona e os requisitos de acesso a partir de informações prestadas pelo INSS e entrevistas feitas com especialistas, como Fernanda Hahn, defensora pública federal e Coordenadora da Câmara de Coordenação e Revisão Previdenciária da Defensoria Pública da União (DPU), e a presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP) Adriane Bramante.

Quem criou o auxílio-reclusão?

Algumas notícias falsas têm atrelado a criação do auxílio ao presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT), o que não é verdade. O benefício foi instituído de forma geral já na criação da Lei Orgânica da Previdência Social (Lei nº 3.807/1960), durante o governo Juscelino Kubitschek, embora, por exemplo, integrantes da Marinha já tivessem esse direito antes, em 1933, com o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos, que previa o auxílio a seus dependentes se o marítimo fosse preso, demitido ou condenado, além de outras profissões que tinham institutos próprios, conforme explica o artigo Auxílio-reclusão: o instituto mal(mau)dito das políticas sociais com as políticas penais.

Com isso, a Lei Orgânica foi a primeira política de previdência de responsabilidade do Estado em que o benefício não se restringia a categoria profissional, explica Adriane Bramante, e que foi mantido na Constituição Federal de 1988. O aprofundamento dos critérios para a concessão, que está vigente até hoje, passou a existir durante o governo do presidente Fernando Collor, por meio da Lei nº 8.213/1991, que dispõe sobre os planos de benefícios da Previdência Social, e que foi alterada em 2019 por meio da Reforma da Previdência (Lei nº 13.846/2019), que entrou em vigor no governo Jair Bolsonaro.

Quem tem direito ao auxílio-reclusão?

Com a reforma da Previdência que alterou a lei de 1991, foram instituídas algumas mudanças nos critérios de concessão. Mas desde que foi instituído, o auxílio é pago mensalmente e se destina aos dependentes da pessoa que está presa, ou seja, podem ser pais, cônjuge, filhos e afins desde que comprovem a relação. O dinheiro não é destinado ao detento em si e nem chega nas mãos dele.

O entendimento é de que a família não tem como sobreviver na ausência da pessoa que foi encarcerada justamente por depender dela financeiramente. “É um benefício importante porque a gente tem ainda muita desigualdade e não se pode passar a pena para a família do criminoso. A pena é personalíssima, é só para a pessoa que cometeu o crime, então o benefício é necessário”, prossegue a presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBPD).

Adriane Bramante avalia que a reforma deixou a liberação do auxílio “mais rígida”, o que fica evidente quando buscamos as estatísticas disponíveis no site do Ministério do Trabalho e Previdência e vemos uma queda de concessões do benefício no decorrer dos anos. Em 2017, foram 23.073 novos benefícios autorizados; em 2021, que é o ano mais recente com dados disponíveis, foram 7.171. Isso representou uma redução de 68,9% no período.

Esse número não representa necessariamente todos os detentos que se encaixam nos requisitos. “Ainda tem muita família que não sabe que tem direito e não requisita”, afirma Adriane Bramante, do IBDP.

Em 2021, 35.616 auxílios-reclusão para dependentes de pessoas presas estavam ativos, o que representou uma queda de 42,4% em relação a 2017, quando havia 61.842 beneficiários, segundo os dados mais recentes disponíveis pelo Ministério do Trabalho e Previdência. A Ponte questionou o INSS sobre quantos presos se adequam nas atuais regras para o auxílio-reclusão e quantos benefícios foram pagos em 2022, mas não houve retorno.

Além disso, não é qualquer preso cuja família pode ser amparada. Antes, a previsão era de que detentos dos regimes fechado (provisório ou condenado) e semiaberto (condenado) que tivessem feito qualquer contribuição ao INSS (um mês, um ano, dois anos etc) e comprovassem ser de baixa renda nos últimos 12 meses anteriores à prisão eram requisitos para que os dependentes pudessem requerer o auxílio. O preso também não poderia estar recebendo remuneração nem outros benefícios do INSS, como auxílio por incapacidade temporária, pensão por morte, salário-maternidade, aposentadoria ou abono de permanência em serviço.

Em 2019, a reforma mudou dois pontos: passou a valer apenas para detentos de regime fechado e que tenham feito, no mínimo, 24 contribuições à Previdência (também chamada de carência) antes de ser preso.

Contudo, no caso dos detentos do regime semiaberto cujos dependentes recebiam o auxílio antes da reforma, foi estipulada a permanência de concessão aos dependentes daqueles que tenham sido presos até 17/1/2019, como explica nota do próprio INSS e é previsto na instrução normativa 128/2022. Depois dessa data, vale apenas para dependentes de presos que estiverem no regime fechado. “Como o fato gerador do benefício é o momento da prisão, vigora a lei existente no dia da prisão”, sinaliza a defensora pública federal Fernanda Hahn.

A instrução normativa também prevê que se o detento se casou ou constituiu união estável após a prisão, “o auxílio-reclusão não será devido, considerando que a condição de dependente foi estabelecida após o fato gerador”. O benefício só é concedido se for comprovado o vínculo anterior à prisão, mesmo que a união estável ou casamento tenha ocorrido depois.

Para comprovar que o preso é de baixa renda, é levado em consideração o rendimento mensal que ele tinha nos últimos 12 meses antes de ser preso. É esse valor que foi alvo de informações mentirosas pela Jovem Pan, já que os R$ 1.754,18 é a remuneração máxima que o preso poderia ganhar de salário enquanto estivesse trabalhando e contribuindo com a previdência antes de entrar no sistema carcerário para se enquadrar nos critérios do auxílio-reclusão. Ou seja, não é o valor que a família dele vai receber de auxílio.

Esse teto de rendimento para ser considerado baixa renda é atualizado todos os anos pelo Regime Geral de Previdência Social (RGPS). “Antes, na portaria interministerial de 2022, o valor era de R$ 1.655 que foi atualizado nessa nova portaria para R$ 1.754″, explica Adriane Bramante. “Se a remuneração do preso antes de ser recluso não for de baixa de renda, seus dependentes não têm direito ao auxílio-reclusão”, prossegue.

De acordo com dados de 2021 do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), a população carcerária brasileira é de 833.176 pessoas. São 217.569 presos sem condenação, 331.620 em regime fechado, 169.883 em regime semiaberto, 102.819 em regime aberto, sem contar os que estão com a pena convertida em internação e em tratamento ambulatorial. Se considerarmos os 35.616 benefícios ativos em 2021, seria o equivalente a 6,4% só dos presos que estão sem condenação e dos condenados em regime fechado.

Qual é o valor do auxílio-reclusão?

A reforma da Previdência fixou o valor único de um salário mínimo para o auxílio a ser dividido entre todos os dependentes de um mesmo preso. Isso significa que se o preso tem, por exemplo, três dependentes (esposa e dois filhos pequenos), o montante vai ser rateado entre os três. Em 2023, o salário mínimo vigente é de R$ 1.302.

Por isso, o valor do benefício é reajustado conforme a atualização do salário mínimo. Antes de 2019, o pagamento era calculado com base na média dos 80% maiores salários de contribuição que o detento tinha antes de ser preso, sem considerar 13º salário nem férias, existentes desde julho de 1994.

Existem casos que um mesmo dependente pode acumular o benefício. Um exemplo é se o pai e a mãe de uma criança estiverem presos e atenderem as regras do auxílio-reclusão (contribuição previdenciária de 24 meses anteriores à prisão, estarem no regime fechado e comprovarem serem de baixa renda nos 12 meses anteriores à data da prisão). Como a criança depende financeiramente dos pais, ela pode receber dois salários mínimos.

Se os familiares do preso recebem pensão, aposentadoria ou remuneração, mas ainda assim dependem financeiramente dele têm direito a requisitar o auxílio-reclusão. Quem não pode estar recebendo é o próprio preso. O fato de o detento estar trabalhando enquanto está encarcerado também não retira o direito dos seus dependentes, conforme o parágrafo 7 do artigo 80 da Lei 8.213/1991 e a instrução normativa de 2022 do INSS.

Por quanto tempo o auxílio-reclusão é pago?

O tempo de pagamento não é igual ao período que o detento permanece em regime fechado. A lei 8.213/1991 estabelece esse prazo pela idade dos dependentes, seguindo os mesmos critérios da pensão por morte, conforme prevê o artigo 80:

  • Se o dependente tem menos de 21 anos, o pagamento será feito durante três anos;
  • Se o dependente tem entre 21 e 26 anos, o pagamento será feito durante seis anos;
  • Se o dependente tem entre 27 e 29 anos, o pagamento será feito durante 10 anos;
  • Se o dependente tem entre 30 e 40 anos, o pagamento será feito durante 15 anos;
  • Se o dependente tem entre 41 e 43 anos, o pagamento será feito durante 20 anos;
  • Se o dependente tem 44 anos ou mais, o pagamento é vitalício.

A presidente do IBDP Adriane Bramate aponta que essa limitação de idade na lei está desatualizada. “Aumentando a expectativa de sobrevida, a idade aumenta”, afirma. Segundo ela, uma portaria do antigo Ministério da Economia (hoje da Fazenda) de 2020 ampliou as idades em um ano, mas com o mesmo prazo de pagamento do auxílio. Então, “menos de 21 anos” ficou “menos de 22 anos”; “entre 21 e 26 anos” agora é “entre 22 e 27 anos” e assim por diante.

Contudo, algumas peculiaridades podem ampliar o período de concessão do auxílio, como se o dependente for considerado inválido, tiver deficiência intelectual, mental ou de natureza grave.

Como o INSS fiscaliza o auxílio-reclusão?

Assim como aposentados têm que fazer prova de vida para que continuem recebendo, o INSS também solicita uma comprovação de que o detento está encarcerado e em regime fechado (ou semiaberto para os que foram presos até 17/1/2019).

A instrução normativa 128/2022 do INSS estabelece que “deverá ser apresentado atestado ou declaração do estabelecimento prisional, ou ainda a certidão judicial” a cada 90 dias. “Hoje esse é o único meio de verificação da regularidade de manutenção do benefício. Caso a declaração ‘perca a validade’ o benefício deixa de ser pago até regularização da documentação”, explicou a assessoria do INSS à Ponte.

De acordo com o parágrafo 5º do artigo 80 da lei 8.213/1991, essas comprovações podem ser substituídas “pelo acesso à base de dados, por meio eletrônico, a ser disponibilizada pelo Conselho Nacional de Justiça, com dados cadastrais que assegurem a identificação plena do segurado e da sua condição de presidiário”.

Contudo, a defensora pública federal Fernanda Hahn disse que essa base de dados ainda não foi implementada. “Já instigamos ao INSS para que se efetive de forma plena o convênio para acesso a base de dados do CNJ, já que facilitaria muito os tramites de manutenção dos benefícios”, declarou.

O auxílio-reclusão pode ser encerrado?

Sim. Se o detento progredir do regime fechado para o semiaberto ou o aberto, recebendo liberdade, o auxílio é encerrado.

Também pode ser cortado em caso de morte do preso ou fuga da unidade prisional. A instrução normativa 128/2022 prevê que se o detento for recapturado, poderá ser feita a análise da concessão de um novo benefício.

Em caso de morte e havendo dependentes, a família pode ingressar com um pedido de pensão por morte ao INSS.

Se a declaração de situação prisional do detento não for encaminhada, o benefício também pode ser suspenso.

Quanto o INSS gasta com o auxílio-reclusão?

De acordo com os dados disponíveis pelo Ministério do Trabalho e Previdência, foram pagos R$ 29 milhões com o benefício em dezembro de 2021. No acumulado do ano, foram R$ 349 milhões. A reportagem solicitou dados de 2022, mas a assessoria do INSS não enviou.

No entanto, o instituto explicou que “considerando a emissão [pagamento] de dezembro de 2022, o auxílio-reclusão corresponde a 0,05% dos benefícios do INSS”.

Como o auxílio-reclusão pode ser pedido?

De acordo com o INSS, pode ser requerido pelo site ou aplicativo do instituto. São necessários os seguintes documentos:

  • Documentos de identificação do detento e dos dependentes, como CPF;
  • Declaração de Cárcere;
  • Procuração com documentos do procurador, no caso de representante;
  • Documentos que comprovem o tempo de contribuição, quando solicitado;
  • Documentos de comprovação dos dependentes.

Ajude a Ponte!

A defensora pública federal Fernanda Hahn conta que muitas famílias acabam recorrendo à Defensoria Pública da União (DPU) quando o benefício é negado. “A DPU atende pessoas dependentes de pessoas presas que estão com dificuldades de realizar o requerimento, mas principalmente aquelas que já tiveram o benefício indeferido por algum motivo”, explica. “A DPU então faz a análise da viabilidade jurídica da pretensão de quem nos procura, se é o caso de tentar resolver com o INSS administrativamente, se é o caso de entrar com ação judicial ou explicar para a pessoa requerente da assistência da DPU que realmente ela não tem direito.”

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