‘O que impera é a vingança pura’: a situação dos presos com deficiência nos cárceres

Em entrevista à Pastoral Carcerária, coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria de SP denuncia capacitismo do sistema prisional: “unidades prisionais não estão estruturadas fisicamente para receber essas pessoas”

Arte: Pastoral Carcerária

A Pastoral Carcerária Nacional recebeu no mês de junho a denúncia do caso de João (nome fictício), preso paraplégico e com feridas profundas, que necessitava de cuidados constantes. O caso dele foi divulgado em matéria da Ponte Jornalismo.

A prisão em que ele se encontrava não tinha estrutura ou profissionais preparados para cuidar dele; pelo contrário, sua mãe teme que ele morra atrás das grades, devido às condições torturantes da prisão, à falta de cuidados e à reiterada decisão do Judiciário de não conceder prisão domiciliar. “Tenho medo de me ligarem avisando para eu ir reconhecer o corpo dele”, disse sua mãe em entrevista à Ponte.

Infelizmente, a situação de João não é uma exceção. Segundo o Infopen, de julho a dezembro de 2021, há 7.198 pessoas presas em celas físicas com deficiências em todo país; apenas 50 pessoas com deficiências por todo país cumprem prisão domiciliar.

“Além de todas violações que as pessoas presas enfrentam, como racionamento de água, falta de alimentação adequada, falta de serviços básicos de saúde, o que percebemos são violações também por causa da deficiência. As unidades prisionais não estão estruturadas fisicamente para receber essas pessoas”, é o que afirma Leonardo Biagioni, Defensor Público e Coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do estado de São Paulo (Nesc), em entrevista à Pastoral Carcerária.

O defensor acredita que a melhor forma de respeitar a integridade dessa população é pelo desencarceramento. Infelizmente, o Judiciário brasileiro só reforça punições e vingança.

“Não se está preocupado em garantir direitos dessa população, se está preocupado em deixá-las excluídas, e a vingança a todo custo, até o final do cumprimento da pena”.

Confira abaixo a entrevista completa com Leonardo Biagioni sobre a situação das pessoas com deficiência no cárcere:

Pastoral Carcerária — Em linhas gerais, qual a situação das pessoas com deficiência no cárcere?

Leonardo Biagioni — No NESC fazemos inspeções rotineiramente nas unidades prisionais, é uma política sistemática desde 2014, são cerca de 270 inspeções que realizamos desde então.

Em relação à quantas pessoas com deficiência estão presas, a gente sempre tem esses dados quando fazemos várias inspeções na mesma unidade prisional. Acaba que não é um número muito grande, mas vemos que existe uma subnotificação.

Colocamos deficiências como visual, intelectual, física, diversas somatórias ali de pessoas com deficiência, e vemos que o presídio geralmente só coloca pessoas com deficiência física, que fazem utilização de cadeira de rodas. Pessoas que têm uma mobilidade reduzida, por exemplo, não são inclusas.

Então em regra os números que as secretarias e unidades prisionais passam são baixos, o que vemos de respostas nos nossos ofícios geralmente são 3, 5 presos, quando tem algum. Mas o importante é pontuar que há uma somatória, uma aglutinação de vulnerabilidades para essas pessoas.

Pastoral Carcerária — Que tipos de violações às pessoas com deficiência enfrentam?

Leonardo Biagioni — Além de todas as violações que as pessoas presas enfrentam, como racionamento de água, falta de alimentação adequada, falta de serviços básicos de saúde, o que percebemos são violações também por causa da deficiência.

As unidades prisionais não estão estruturadas fisicamente para receber essas pessoas. Não há elevadores, por exemplo; ainda que a pessoa esteja numa cela que é no térreo, e ainda que – o que é muito difícil – tenha uma rampa para a pessoa ingressar dentro dessa cela, o que seria o mínimo, até porque o interesse é do Estado de prendê-la, não há barras ali para que a pessoa possa se locomover e realizar as atividades físicas, se levantar, utilizar os banheiros, e utilizar outros espaços da unidade que não sejam a própria cela.

Pode até ser que a cela fique no térreo, mas pode ser que tenha uma sala de audiência virtual no segundo andar, e essa pessoa com deficiência física não vai poder ter acesso a essa sala, e aí é preciso fazer uma série de remediações, às vezes constrangedoras, como carregar a pessoa no colo até chegar no local, para tentar garantir esse direito.

É o que a gente percebe. Mas a regra é que nem as celas estão preparadas para isso. Em poucas unidades há celas em que se coloca apenas uma rampa, como se isso fosse o suficiente para garantir a estrutura física adequada para essas pessoas, é surreal. Em outras tem barras no banheiro, mas sem qualquer privacidade de uso pela própria pessoa sozinha.

Pastoral Carcerária — Que tipo de situações relacionadas às pessoas com deficiência você presenciou nas inspeções?

Leonardo Biagioni — Recentemente fizemos uma inspeção e havia uma cela adaptada que estava desocupada, e na cela ao lado havia uma pessoa com deficiência, em uma cadeira de rodas.

Questionei o diretor, e ele informou que não tinha como aquele preso utilizar a cela, porque teria que colocar outra pessoa para cuidar do preso com deficiência. Mas um outro preso não podia ficar naquela cela, porque ela só podia ser utilizada por pessoas com deficiência.

Também não há fornecimento de materiais. Vemos muitas pessoas com deficiência sem cadeira de rodas, sem muletas…a gente fez uma inspeção recente também em que um preso amarrou um chinelo, pano e camiseta em cima de um cabo de vassoura para usar como se fosse muleta. Isso é super comum.

Me recordo de uma inspeção no ano passado em Mogi das Cruzes, onde eles estão colocando chuveiros com água quente, de uma forma que não é a que pedimos ou que ficou determinada em juízo – estão colocando nos pátios e não dentro das celas, como devia ser.

Então tinha uma pessoa com deficiência e saúde debilitada que ficava na cela 8, a última do raio, que era a mais distante desses chuveiros. Ela não tinha cadeira de rodas, então para ela poder usar o chuveiro quente, ela tinha que ser carregada no colo por todo o raio. São situações graves como essas nas unidades prisionais.

Pastoral Carcerária — Além dessas violações, que outras questões afetam as pessoas com deficiência?

Leonardo Biagioni — Há a ausência total de lazer em 100% das unidades para essa população. Na maioria das unidades o lazer é o futebol ou exercícios físicos, o que impede a possibilidade de lazer para as pessoas com deficiência.

Também existe uma ausência de oficinas de trabalho. Praticamente todas as unidades em São Paulo não têm mais oficinas de trabalho dentro, são poucas onde ainda há, então em regra os trabalhos que existem são de conservação, limpeza, cozinha, que são os próprios da secretaria também.

E nenhum desses serviços é disponibilizado para pessoas com deficiência. Muitas vezes pela própria impossibilidade, mas quando há a possibilidade, essas pessoas não são escolhidas pela administração prisional, que faz essa escolha totalmente arbitrária.

Também há agressões devido à ausência de mobilidade. Em dezembro, fomos na penitenciária 2 de Guarulhos, depois de uma intervenção do Grupo de Intervenção Rápida (GIR) lá, onde teve denúncias de agressões, de uso de armamento menos letal na unidade, e de fato várias pessoas tinham sido agredidas; um relato bastante chocante, mas não incomum, eram o de pessoas com dificuldades de locomoção que foram agredidas.

Eles ordenaram a saída da cela, e claro, essas pessoas com dificuldade, somado à falta de estrutura da unidade prisional, acabavam saindo de forma mais lenta, e por isso foram agredidas. E as pessoas com deficiência, se estão em regime semiaberto, não cumprem a pena dessa forma. Impede-se a saída dessas pessoas para educação e trabalho, pois a população com deficiência sempre é preterida nessas escolhas.

Acredito que isso ocorre porque a secretaria acaba achando que seria um estorvo levar essa pessoa, que já não tem a cadeira de rodas, que não recebe muletas para realizar um trabalho externo, então o que a gente vê é que as pessoas com deficiência que estão num regime semiaberto não saem. E se o que diferencia um regime de outro são essas saídas, essas pessoas nunca usufruem desse direito, então ela nunca vai cumprir a pena em semiaberto, e isso é uma situação bem comum.

Todas essas questões se somam às outras que todos os presos sofrem. Nenhum direito é garantido à população prisional, e não se observa uma soltura desse público, em virtude da própria deficiência.

Pastoral Carcerária — No caso de João, houve relatos que os próprios presos ajudaram a cuidar dele nas celas. Por que não existem profissionais ou equipes de saúde dedicados a cuidar das pessoas com deficiência nas prisões?

Leonardo Biagioni — O ideal seria o desencarceramento dessa população, pois se o cárcere não é um local adequado para pessoas que não tem essa somatória de deficiências, imagine para quem tem.

Mas escolheu-se por essa política de encarceramento em massa e somatória de violações de direito. O mínimo seria ter equipes de saúde, inclusive tem a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), que prevê equipes mínimas de saúde para a população privada de liberdade, no entanto nenhuma das 179 unidades prisionais de São Paulo tem essa equipe.

E no caso de São Paulo, o Tribunal de Justiça reformou a decisão de uma ação civil do Ministério Público e Defensoria para que houvesse a instalação dessas equipes, dizendo que não havia provas – apesar dos diversos relatórios mostrando questões de saúde e a comprovação da ausência dessas equipes – de que era necessário que o Estado tivesse esses profissionais de saúde.

E com a ausência de profissionais, de equipes de saúde, é isso o que acontece, os próprios presos das celas é que cuidam, com poucos recursos ou quase nenhum. Às vezes não há nem curativos ali, para que haja a troca e reposição, e acabam acontecendo casos como esse que mencionei, do preso que não podia ficar na cela adaptada a ele, mostrando também que a prisão não tinha profissionais adequados, porque se tivesse, o preso podia ficar ali sozinho e o profissional cuidava dele.

Pastoral Carcerária — Por que o judiciário continua mandando essas pessoas para as prisões, não se pensa em outra medida?

Leonardo Biagioni — O Judiciário é muito reticente a qualquer ideia de desencarceramento, porque está muito arraigado na ideia de segurança pública. A gente vê muitas vezes o Judiciário atuando como se fosse um órgão de segurança pública.

Os argumentos que são expostos nas decisões fazem muito mais sentido se fossem um órgão dentro do Executivo, que está preocupado com a ordem social, e não do Estado Democrático de Direito – que deveria ser a função do Judiciário como um poder contramajoritário para a garantia de direitos.

Então essa função que o Judiciário muitas vezes tem, validando toda a política policialesca do Estado, acaba interferindo muito nisso. Essa postura de segurança pública permanece no cumprimento da pena. Como a pessoa praticou um ato tido como um crime, ela vai para a prisão, não importa a situação em que ela esteja.

Então ela vai ter que cumprir esse castigo, é essa a função retributiva da pena. E se esquece muito que a própria função retributiva da pena, utilizada muito hoje para estabelecer essa vingança penal, também traria uma função de proporcionalidade. Mas isso é deixado de lado, porque o que impera é a vingança pura.

Não se está preocupado em garantir direitos dessa população, se está preocupado em deixá-las excluídas, e a vingança a todo custo, até o final do cumprimento da pena.

Pastoral Carcerária — E após as inspeções, que procedimentos jurídicos são tomados em relação às pessoas com deficiência?

Leonardo Biagioni — O Nesc tem essa atuação mais coletiva: ações civis públicas, habeas corpus coletivos. A situação individual é feita pelos defensores públicos que atuam nos processos criminais.

O que a gente costuma fazer é o seguinte: depois de toda inspeção fazemos um relatório de todas as condições que a gente observou naquela unidade prisional, as violações de direitos relacionados à Lei de Execução Penal e outras normativas, e fazemos um pedido de providência geral, coletivo, pro juiz corregedor.

Então nas questões coletivas em relação à unidade pode estar o fato das pessoas com deficiências não serem incluídas, que as pessoas com deficiência são preteridas em relação ao estudo, trabalho e que não há adaptação nas unidades para essas pessoas.

Também fazemos um envio para o defensor público responsável pelo processo dessa pessoa, caso ela não tenha um advogado, para que ele avalie a situação jurídica daquela pessoa, junto ao estado de saúde, e possa ser realizada alguma medida judicial.

Caso haja alguma situação de saúde também a gente mesmo faz o pedido para o juiz corregedor da unidade prisional.

Publicado originalmente pela Pastoral Carcerária

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