ONG aponta indícios de que PM do Rio mascarou execuções no morro do Fallet

    Análise da Human Rights Watch encontrou sinais de negligência em autópsias e evidências de que PMs levaram ao hospital jovens que já estavam mortos

    Caveirão bloqueia rua durante reconstituição do crime, em 29/4/19 | Foto: Yasmin Restum/Ponte Jornalismo

    Felipe Guilherme Antunes tinha 21 anos quando seu corpo de jovem negro foi estraçalhado por disparos de policiais militares do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais), em 8 de fevereiro do ano passado, durante uma operação policial nos morros do Fallet, Fogueteiro e Prazeres, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Dos vários tiros que o atingiram, dois o acertaram na cabeça à queima-roupa. O crânio do jovem foi fraturado e os vasos sanguíneos do seu pescoço, destruídos. Coração, pulmão, diafragma, fígado, estômago e intestino de Felipe foram perfurados com balas. Um vídeo anexado ao inquérito policial mostra o rapaz com o tórax aberto e os intestinos para fora.

    Mesmo assim, a Polícia Militar do Rio afirma que Felipe estava vivo quando os PMs o levaram para o Hospital Municipal Souza Aguiar, no centro, assim como as outras 12 vítimas da mesma operação realizada pelo Bope, todas negras como Felipe.

    A descrição dos ferimentos de Felipe é um dos itens que chama a atenção de um relatório sobre o massacre de Fallet, Fogueteiros e Prazeres elaborado pela ONG internacional de direitos humanos Human Rights Watch, divulgado nesta segunda-feira (3/2), que apresenta uma análise pericial de autópsias de nove dos 13 mortos (leia na íntegra aqui e aqui, em inglês e em espanhol). O documento aponta indícios de que os policiais levaram ao hospital vítimas que já estavam mortas, para atrapalhar as investigações, e que houve negligência nas autópsias realizadas nos cadáveres.

    Os PMs alegaram que mataram os 13 jovens em legítima defesa, mas moradores afirmaram que houve execução e tortura, além de ameaças e invasão de residências na comunidade.

    De acordo com Maria Laura Canineu, diretora da HRW no Brasil, a perícia realizada pela Polícia Civil tem falhas “alarmantes”. “Em corpos com ferimentos tão graves e múltiplos, você não consegue realizar uma autópsia em 30, 40 minutos. Um dos laudos foi feito em 10 minutos pelo perito, sem raio-x para identificar outros projéteis”, destaca. “Isso é uma falha flagrante do que é previsto na legislação internacional e entendo que em qualquer norma brasileira que exista sobre isso, porque uma autópsia tem que ser feita de uma forma extremamente cuidadosa”.

    A ONG encaminhou as autópsias para serem analisadas por quatro peritos, sendo três do Conselho Internacional de Reabilitação para Vítimas de Tortura (IRCT, na sigla em inglês, com sedes na Bélgica e na Dinamarca), e um da Fundação de Antropologia Forense da Guatemala (FAFG, na sigla em espanhol). Eles constataram que as nove vítimas foram atingidas por tiros nos pulmões e oito tiveram ferimentos no coração, entre outras lesões.

    Como os PMs afirmaram que usaram fuzis na operação, o entendimento dos peritos estrangeiros é de que os nove homens, dentre eles um adolescente, teriam morrido instantaneamente por conta da intensidade do aparato, e que não havia possibilidade de terem sido levados ainda com vida ao hospital, como alegaram os policiais.

    Em um jovem de 18 anos, “o laudo [da Polícia Civil] primeiro diz não haver fraturas no crânio nem sangramento interno nos músculos temporais; mas depois afirma que a causa da morte foi tiros que atingiram o crânio, a pelve – não descrita na autópsia – e as costas”, segundo documento da HRW.

    Logo após as mortes, o governador Wilson Witzel declarou que a ação foi “legítima”. “Nossa PM agiu para defender o cidadão de bem. Não vamos admitir mais qualquer bandido usando arma de fogo de grosso calibre, fuzis, pistolas, granadas, atentando contra a nossa sociedade. Vamos continuar agindo com rigor”, justificou.

    Além disso, preservação de provas como as roupas das vítimas e realização de exames residuográficos, para identificar se havia pólvora nas mãos e vestimentas dos nove, não foram realizados. “Os peritos internacionais falam que esse tipo de prova é essencial para saber se houve suposto confronto”, aponta Maria Laura Canineu.

    Parede do local onde jovens foram assassinados no Morro do Fallet repleta de buracos de tiros | Foto: Natasha Néri

    Na época da reconstituição do crime, em abril de 2019, o ouvidor-geral da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Pedro Strozenberg, disse à Ponte que um laudo da Polícia Civil havia indicado pelo menos 120 tiros, dos quais 94 teriam sido disparados pelos boinas pretas, como são conhecidos os agentes do Bope. “Foi a maior chacina dos últimos 10 anos”, lamentou. O órgão já apontava preocupação sobre as investigações. “Vimos provas importantes para esclarecer o caso, como pertences das vítimas, os laudos pouco detalhados e a própria cena do crime desfeita, serem desperdiçadas”, declarou na época.

    A mãe de uma das vítimas chegou a fotografar policiais em cima da caçamba de uma caminhonete sentados no que seriam os corpos das vítimas embrulhados. Moradores denunciaram ameaças e invasão de casas na comunidade. “Esculacharam morador, tacaram bomba em cima da gente, chamou as meninas de piranha, xingando, falando que vão matar a gente. Não deixaram nenhum familiar entrar dentro das casas, tacaram bomba, tiro de borracha, esculacharam muito. Eles disseram que entraram para matar bandido e morador”, relatou à reportagem outra moradora, na ocasião.

    O objetivo da análise, segundo a diretora da Human Rights Watch, foi identificar se havia possibilidade de que os policiais militares prestaram “falsos socorros”, tema que a entidade pesquisa há pelo menos dez anos. “Esse é método mais comum de inviabilizar investigações, em que a polícia leva o suspeito para o hospital, mexe na cena do crime, dizendo que é uma tentativa de salvar, mas as pessoas já chegam mortas ao hospital. Esses ‘falsos socorros’ são muito comuns no Rio e em São Paulo”, alerta.

    Ela ainda aponta inconsistências no inquérito policial. “Um resumo no caso feito pela própria polícia diz que ‘os cadáveres foram socorridos para o Hospital Souza Aguiar’. A gente não sabe se foi um ato falho, mas basicamente estão assinando embaixo que as pessoas estavam mortas”, afirma.

    Em novembro do ano passado, a Polícia Civil encerrou as investigações chancelando a versão dos policiais de que a ação foi em legítima defesa e que não houve crime. Com isso, a HRW pretende encaminhar as análises ao Ministério Público Estadual do Rio, já que os promotores ainda não se manifestaram se farão denúncia ou pedirão arquivamento do caso.

    A entidade solicita que o governo do Estado estabeleça protocolos de realização de perícia necroscópica e de serviços de emergência, citando como exemplo resolução criada em São Paulo, em 2013, que estabelece que PMs não socorram vítimas de intervenção policial. “Quando há um acidente de carro, não é a polícia que leva para o hospital a menos que seja em circunstâncias muito excepcionais, mas quando é casos de supostos confrontos, a gente vê que a própria polícia faz esse trabalho de resgate”, destaca Maria Laura.

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    Para ela, o contingenciamento de recursos para a área tem sido usado como justificativa para a baixa qualidade das investigações. Em novembro, o governador Wilson Witzel anunciou em projeto orçamentário para 2020 que cortará 86% das verbas para a Polícia Técnica, braço da Polícia Civil. “Essa perícia mostra que os procedimentos mais básicos para investigação desses episódios não são seguidos, o que leva a crer que há pouca vontade política de investigar de forma adequada esse tipo de caso”, critica a diretora da HRW. “Isso não é uma situação de agora, mas é alarmante num estado em que a polícia matou mais de 1600 pessoas no ano passado, ou seja, um número que é recorde, que é histórico, e essas mortes têm que ser bem investigadas”.

    PM: operação visava a “preservação de vidas”

    Procurada pela Ponte, a assessoria de imprensa da PMERJ disse em nota que a operação “foi planejada para intervir numa guerra entre facções criminosas rivais, que disputam o controle de território naquela região, tendo como principal preocupação a preservação de vidas”.

    Moradora registrou PMs em viatura apoiando suas pernas no que seriam corpos de pessoas mortas no Morro do Fallet | Foto: Arquivo pessoal

    A pasta alega que houve confronto “iniciado por criminosos fortemente armados”. E que, ao final da ação, “11 criminosos foram presos e outros 15 foram encontrados feridos e socorridos para o Hospital Municipal Souza Aguiar. Entre os feridos, 13 vieram a óbito e dois ficaram internados. Durante a operação os policiais apreenderam quatro fuzis, 14 pistolas, seis granadas, três rádios comunicadores, além de carregadores e drogas”.

    A secretaria também aponta que instaurou Inquérito Policial Militar “que foi remetido ao Ministério Público com a conclusão de ausência de crime ou transgressão por parte dos policiais militares envolvidos no episódio”. Questionada sobre protocolos de resgate e sobre o relatório da HRW, não respondeu.

    Já o Ministério Público do Rio disse que o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública “instaurou procedimento investigatório criminal, para, de modo independente, colher provas sobre as mortes ocorridas” e que “vem acompanhando o trabalho desenvolvido pela DH-Capital”. A assessoria do órgão também declarou que “ainda há diligências a serem realizadas, a fim de melhor esclarecer os fatos” e que fez várias reuniões com a Defensoria Pública, “dando máxima atenção aos seus questionamentos”.

    A reportagem também procurou a assessoria de imprensa da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, que até agora não respondeu.

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