ONG de direitos humanos critica Bolsonaro, Trump e outros ‘líderes demagogos’

    Human Rights Watch destaca letalidade policial, violência doméstica e demonstra preocupação com novo presidente do Brasil; para ONG, decreto que facilitou acesso a armas de fogo deve aumentar número de mortes

    Bolsonaro na versão cangaceiro armado | Foto: Reprodução Instagram

    A ONG internacional Human Rights Watch apresentou nesta quinta-feira (17/1), em São Paulo, o Relatório Mundial 2019 em que mapeia e analisa as principais violações de direitos humanos ocorridas no mundo todo. O capítulo dedicado à avaliação do cenário no Brasil tem como ponto central Jair Bolsonaro. O texto começa definindo o novo presidente: “um membro do Congresso Nacional que endossou a prática da tortura e outros abusos, e fez declarações abertamente racistas, homofóbias, misóginas, venceu a eleição em outubro. Violência política e ameaças contra jornalistas marcaram as eleições”.

    José Miguel Vivanco, diretor para as Américas da HRW, destaca a preocupação com os crescentes governos “autocráticos e populistas” ao redor do mundo como um problema para o exercício pleno dos direitos humanos. “Seja de direita ou esquerda, são governos demagogos, que tentam manter-se no poder atacando os meios de comunicação independentes, desqualificando o trabalho da imprensa, a opinião pública, atacando a sociedade civil, tentando controlar o poder judiciário. São características típicas de um governo populista autocrata. Um exemplo importante é o [presidente dos EUA, Donald] Trump, que age como um déspota, que mente deliberadamente, que desinforma a opinião pública e ataca qualquer mecanismo de crítica a ele, bem como o poder judiciário. Mas há outros, como [o presidente da Rússia, Vladimir] Putin e [o presidente do Egito] General al-Sissi. Estamos vendo que o populismo cresce também na Europa, na África e na América Latina, com governos importantes como são México [Manuel Lopez Obrador] e Brasil [Jair Bolsonaro], com líderes que são opostos mas essencialmente populistas. Nos preocupa a retórica populista, o discurso anti direitos humanos. Essas figuras são personalistas, não creem nas instituições democráticas, embora tenham sido eleitos democraticamente. Não estamos aqui para analisar a campanha, o que nos interesse é a prática. Mas vemos que não é só retórica. Se analisarmos os discursos de líderes populistas pelo mundo, veremos que eles cumprem o que prometem”, aponta.

    José Miguel Vivanco, diretor para as Américas da HRW em coletiva com jornalistas em São Paulo | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte

    A letalidade policial, especialmente no Rio de Janeiro, que passou o ano passado sob intervenção federal e atingiu o maior índice de mortes de civis pela polícia dos últimos 20 anos, bem como os desafios para reduzir a violência contra a mulher, a manutenção da liberdade de imprensa e expressão, políticas migratórias e a falência do sistema prisional, foram os destaques do estudo.

    Vivanco demonstrou preocupação com os dois decretos assinados por Bolsonaro em duas semanas de governo: o que versa sobre o monitoramento de organizações não governamentais e o que amplia a posse de armas no Brasil. “Estivemos reunidos com o general Carlos Alberto dos Santos Cruz [ministro-chefe da Secretaria de Governo] e não está claro quais serão as regras para esse monitoramento. O decreto não discrimina ONGs financiadas com dinheiro público e privado. Então não conseguimos saber. É um erro em uma democracia aberta, moderna, tentar controlar, fiscalizar, organizações que por definição devem ser independentes e autônomas do estado”, critica o diretor.

    Ainda sobre a posse de armas, Vivanco destaca que o Brasil vive uma epidemia de violência e que o decreto tende a piorar o quadro. “As cifras de homicídios são as mais altas da história do Brasil. O destaque que faço é para o Rio de Janeiro, que atingiu índices altíssimos no ano passado de mortes especificamente de civis por agentes de estado. Policiais e militares, já que o estado estava sob intervenção. Foram 1.444 pessoas mortas aparentemente em confronto. As polícias defendem que foram legítima defesa e entendemos que até há casos de legítima defesa, mas muitos de execuções extrajudiciais”, aponta. “Podemos depreender que, desde março do ano passado, houve um aumento de 40% de mortes com relação ao ano anterior. Toda a experiência internacional mostra que ofertar acesso a arma de fogo aumenta violência”.

    O número de mais de 1.400 pessoas assassinadas é o maior desde que o Rio de Janeiro começou a fazer a contagem de civis mortos pela polícia, em 1998, quando ficou na faixa de 400. O gráfico apresentado pela HRW também mostra que, em 2007, houve um pico que superou os 1300 mortos. No ano seguinte, as UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) passaram a ser implementadas, política responsável pelas quedas sequenciais nos 6 anos seguintes. Contudo a curva voltou a subir em 2016, culminando no recorde de mortes pelo braço armado do Estado do ano passado.

    “Nós vimos a criação das UPPs como passo positivo. Fizemos o acompanhamento e quando foi criado um plano de metas focado na redução da criminalidade e não na chamada produtividade policial achamos adequado, porque não se está premiando número de pessoas mortas ou presas, mas sim redução de índice de criminalidade nas regiões”, aponta César Muñoz, pesquisador sênior da HRW. “Mas o programa falhou basicamente porque houve casos de abuso. A política da UPP pretendia estabelecer um pacto entre polícia e comunidade, uma relação de confiança. Soube na época que moradores passavam informações sobre criminosos para a PM. Mas, quando você tem policiais se envolvendo com corrupção, casos de abusos diversos, detenções arbitrárias, torturas e morte, como foi o caso de Amarildo, você quebra essa relação. A polícia ficou isolada e continuará sendo uma vez que não vemos punições sendo realizadas”, avalia.

    Maria Laura Canineu, José Miguel Vivanco e César Muñoz | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte

    A diretora da HRW no Brasil, Maria Laura Canineu, destacou os índices de violência doméstica. “Houve um enfraquecimento da rede de proteção da mulher e sabemos que a violência doméstica escala, ou seja, de uma ameaça, passa para um tapa até chegar a morte. E por isso é importante ampliar a rede de proteção e não reduzir. As discussões muitas vezes imputam na mulher uma responsabilidade maior. A redução do orçamento da secretaria nacional mostra evidente essa redução dos aparatos de proteção.” Maria Laura exibiu um gráfico de curva descendente com cifras de investimentos federais em 4 anos: em 2014, foram destinados R$ 73 milhões para políticas afirmativas para mulheres e construção de redes de proteção; em 2018, foram R$ 3,3 milhões.

    Uma tabela exibida pela equipe da HRW também mostra redução nos locais de atendimento de mulheres vítimas de violência. Em 2016, havia 97 abrigos para mulheres e crianças em situação vulnerável dentro de casa, 256 centros especializados de atendimento a mulher vítima de agressão e 504 delegacias especializadas, as chamadas DDMs (Delegacia da Mulher), em todo o país. Em 2017, houve redução nos três índices: 74, 241 e 497, respectivamente.

    Sobre o sistema prisional,  pesquisador sênior Cesar Muñoz definiu como uma instituição da Idade Média. “Os últimos dados que temos fornecidos pelo governo Temer dão conta de que o sistema já teria 840 mil pessoas, com uma média de duas pessoas por vaga, sendo que há prisões com uma média maior. O que avaliamos é que o Brasil precisa saber quem está sendo preso. Em muitas ocasiões, as pessoas erradas estão indo para o cárcere. No Pará, por exemplo, temos na massa carcerária apenas 4% de homicidas. E os outros casos? Onde estão esses homicidas? Muitas dos presos são acusados por crimes não violentos e ainda há o problema da prisão provisória, que chega a 40%. Apesar das audiências de custódia, existe uma projeção de que apenas metade de quem vai preso passa por esse mecanismo. A maioria não vê um juiz durante meses. Ao lotar os presídios você ajuda o crime organizado. Uma vez que os agentes não são capazes de dar segurança aos presos, essa segurança é dada pelas facções criminosas”, conclui.

    Houve destaque para o caso da Venezuela, considerado pela HRW o país em que representa hoje a maior ameaça para os direitos humanos. Tanto que a imagem da capa do relatório é justamente uma vigília em protesto à repressão do atual presidente contra os opositores do governo. O cenário impacta diretamente nas políticas do Brasil, já que o número de pedidos de refúgio cresceram consideravelmente nos últimos anos. “É um país que a gente tem monitorado, fiscalizado faz muitos anos. Desde o governo Hugo Chávez e durante a ditadura de Nicolás Maduro. São violações sistemáticas de direitos humanos e uma crise humanitária gravíssima, com falta de insumos, alimentos e remédios. Isso tem feito os venezuelanos saírem do país. São mais de 3 milhões de venezuelanos migrando e o país coleciona prisioneiros políticos. Em 2018, o Brasil registrou mais de 61 mil pedidos de refugio”, destaca José Miguel Vivanco.

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