Operação Castelinho, que matou 12 pessoas em emboscada, chega à Corte Interamericana de Direitos Humanos

Ação preparada pela PM em praça de pedágio em SP aconteceu em março de 2002 e segue até hoje sem punição e reparação aos familiares das vítimas

Operação Castelinho chega à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Imagem da sede da Organização dos Estados Americanos | Foto: OEA

Em 28 de maio deste ano a Operação Castelinho chegou à Corte Interamericana de Direitos Humanos. O episódio é conhecido pela impunidade de 50 policiais e dois detentos envolvidos diretamente em 12 homicídios de supostos integrantes da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital), em 2002. 

O caso teve início ainda em 2001, quando autoridades do Executivo e Judiciário do Estado de São Paulo  e policiais começaram a recrutar presos nas penitenciárias para atuar como agentes infiltrados em organizações criminosas. Em 5 de março de 2002, 12 supostos integrantes do PCC foram mortos em uma das ações deste grupo, em uma praça de pedágio da Rodovia José Ermírio de Moraes, conhecida como Castelinho, em São Paulo. 

Leia também: Justiça absolve PMs envolvidos na Operação Castelinho

Planejada e executada pelo Grupo de Repressão e Análise aos Delitos de Intolerância (Gradi), a ação instruiu os presos a enganarem o PCC sobre a existência de um avião com dinheiro que chegaria ao aeroporto de Sorocaba. Apesar disso, sem a presença de testemunhas que pudessem questionar a versão oficial, a Polícia Militar cercou o lugar com aproximadamente cem policiais e iniciou um tiroteio, justificado como um ato de resistência a um grupo que viajava em um ônibus. 

A ação começou em 25 de fevereiro de 2002, quando os dois PMs do Gradi disfarçados, dois detentos e alguns dos 12 homens reuniram-se na praça de alimentação do Shopping Tatuapé, zona leste de São Paulo. Na ocasião, detentos e PMs do Gradi convenceram o grupo a participar do roubo de R$ 28 milhões que, segundo o quarteto, estaria em um avião-pagador que pousaria no aeroporto de Sorocaba, interior de São Paulo.

Na manhã de 5 de março, um grupo de 14 pessoas saiu de Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo, com destino a Sorocaba, por volta das 5h30, separados em um ônibus, duas picapes e dois PMs do Gradi em uma Parati. Pouco tempo depois, às 6h30, a PM começou a seguir os 12 homens, com os dois PMs que estavam na Parati colaboranado na comunicação à corporação informando a movimentação do ônibus e das duas picapes.

Leia também: Magistrado que anulou júris do Carandiru também absolveu PMs condenados por tortura

Uma hora depois, na praça conhecida como Castelinho, a Parati passou à frente do ônibus e de um bloqueio montado por 100 policiais militares. Foi quando o ataque dos policiais começou e os 12 ocupantes dos três veículos morreram. Apesar de os responsáveis alegarem ter acontecido um tiroteio, nenhum PM envolvido na emboscada foi ferido.

Ao final, foram realizados mais de 700 disparos, um policial  foi ferido com lesões leves e morreram José Airton Honorato, José Maia Menezes, Aleksandro de Oliveira Araújo, Djalma Fernandes Andrade de Souza, Fabio Fernandes Andrade de Souza, Gerson Machado da Silva, Jeferson Leandro Andrade, José Cícero Pereira dos Santos, Laercio Antonio Luis, Luciano da Silva Barbosa, Sandro Rogerio da Silva e Silvio Bernardino do Carmo. 

Em novembro de 2014, o juiz Hélio Villaça Furukawa, da 2ª Vara Criminal de Itu, interior de São Paulo, decidiu que os 50 PMs acusados pelo Ministério Público Estadual não montaram uma farsa com o intuito de cometer os homicídios e alegou que “a enérgica reação foi necessária em razão da quantidade de criminosos envolvidos e do grande armamento transportado”.

Leia também: STJ anula anulação e condenação de PMs por massacre do Carandiru volta a valer

No total 53 PMs estão envolvidos na operação, mas o sargento Marcos Eduardo da Silveira e o soldado Laerte Barqueta morreram na fase processual, e o processo contra Maurício dos Santos foi desmembrado. Os dois presidiários responsáveis por repassar informações sobre os 12 supostos membros do PCC aos PMs, Gilmar Leite Siqueira e Marcos Massari, foram absolvidos sumariamente pela decisão. As retiradas dos detentos das prisões paulistas para ajudar o Gradi teve o aval dos juízes Maurício Lemos Porto Alves e Octávio Augusto Machado de Barros, do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Em 2007, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos aceitou o pedido de responsabilização do governo. E concluiu em seu Relatório de Mérito neste ano que o Estado brasileiro é responsável pela violação dos direitos estabelecidos nos artigos 4 (direito à vida), 5 (direito à integridade pessoal), 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Após as denúncias de irregularidades sobre suas ações, o Gradi foi extinto pela Polícia Militar de São Paulo.

A Comissão concluiu ainda que o Estado não demonstrou que a operação foi planejada “de modo adequado e de acordo com um arcabouço jurídico compatível com o uso da força”. Comprovou que os agentes que participaram da operação não estavam capacitados e treinados conforme os parâmetros exigidos pelo direito internacional. Além disso, analisou que os indícios que apontam para um uso desproporcional da força não foram contestados pelo Estado de forma suficiente, que não ofereceu uma justificação adequada.

Sobre os processos iniciados em virtude da operação, a Comissão alegou que desconhece o resultado dos processos administrativos. Quanto aos processos civis, observou que alguns estariam finalizados e outros ainda pendentes. 

À Ponte, a promotora Vania Maria Tuglio, responsável pela acusação contra os PMs, afirmou em 2014 que as ações do Gradi pretendiam tentar melhorar a imagem do governo do Estado de São Paulo com ações policiais de impacto. “Os crimes de morte foram levados a efeito em circunstâncias espetaculares e com o fim de sedimentar uma ‘imagem boa’ do Gradi e das unidades policiais articuladas para essa operação, numa demonstração equivocada, desnecessária, gratuita e macabra de força, configurando-se dessa maneira, a futilidade da motivação subjacentes aos delitos cometidos”.

Falhas na investigação

As imagens nas câmeras de segurança da praça de pedágio onde aconteceram as mortes supostamente não foram localizadas até hoje pelas polícias Civil e Militar de São Paulo. Conforme apurado pela Ponte, as imagens são oficialmente consideradas perdidas. Mas extra oficialmente, os registros em vídeo da ação “são usados como moeda de troca para pressionar autoridades da segurança pública” das gestões do PSDB à frente do Estado de São Paulo há mais de 20 anos. Essa barganha ocorre dentro das duas polícias e entre alguns membros do Ministério Público Estadual. 

O oficial da PM sempre negou ter recebido o material em vídeo, mas um funcionário da empresa ViaOeste, responsável pela administração da estrada onde a emboscada aconteceu, contesta afirmando que os vídeos foram entregues a um capitão da Polícia Militar Rodoviária, logo após as mortes. O promotor Saulo de Castro Abreu Filho, à época secretário da Segurança Pública de SP teve seu processo ligado ao caso arquivado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, assim como o ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB), que ocupava o cargo em 2002. 

Leia também: Em carta, informante da Rota denuncia ter sido agredido em presídio de SP

Denunciado pelo Ministério Público Estadual como participante das 12 mortes, o coronel Rui César Melo, então comandante-geral da PM durante a Operação Castelinho, teve a denúncia rejeitada pela 1ª Vara Criminal de Itu. A Promotoria recorreu, mas o Tribunal de Justiça não alterou a decisão.

Com relação aos dois juízes que teriam autorizado a transferência de prisioneiros para se infiltrarem e contra o Secretário de Segurança Pública, sob cuja administração ocorreram os fatos, a Comissão afirma que “observou que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo considerou desnecessário enviar o caso ao Ministério Público e o declarou arquivado”.

A CIDH criticou a investigação, dizendo que “o Estado não confirmou a realização de certas diligências essenciais para o esclarecimento dos fatos, conforme os parâmetros interamericanos e seguindo o Protocolo de Minnesota”, o que tornou a responsabilização penal impossibilitada. A Comissão concluiu que o Estado não conduziu uma investigação adequada à luz dos parâmetros do devido processo, nem esclareceu os fatos dentro de um prazo razoável, tampouco reparou os familiares das vítimas que tiveram sua integridade prejudicada, segundo o órgão.

Recomendações da CIDH

Com isso, a Comissão recomendou que o Estado repare integralmente as violações de direitos humanos cometidas contra as famílias tanto em seu aspecto “material como imaterial. O Estado deverá adotar as medidas de compensação econômica e satisfação”.

Em relação a investigação, o órgão determinou que seja realizada uma apuração “completa, imparcial e efetiva dos fatos por meio de órgãos independentes da polícia civil e militar”, com o objetivo de penalizar as autoridades e funcionários responsáveis pelos fatos e esclarecer plenamente os fatos que levaram à impunidade. Considerando a gravidade dos fatos e os parâmetros interamericanos, a Comissão ressalta que o Estado não pode invocar a prescrição para justificar o descumprimento desta recomendação.

Leia também: Crimes de Maio de 2006: o massacre que o Brasil ignora

As recomendações ainda incluem proporcionar as medidas de cuidados de saúde física e mental necessárias para a reabilitação dos familiares dos 12 mortos se assim o desejarem e com o seu consentimento. O relatório também recomenda que programas permanentes de educação em matéria de direitos humanos para os membros das Polícias sejam implementados, junto a capacitação e treinamento periódicos em todos os níveis hierárquicos, “com especial ênfase no uso legítimo da força”. 

Por fim, a CIDH propõe que medidas jurídicas, administrativas e de outra índole necessárias sejam adotadas pelo Estado para evitar que crimes como este voltem a se repetir. “Em especial, o Estado deve contar com um arcabouço jurídico sobre o uso da força que seja compatível com os parâmetros apresentados no relatório”, diz o texto

Outro lado

Por nota, o TJ-SP afirmou que “não se manifesta sobre questões jurisdicionais”, e também negou o pedido de entrevista com o juiz Hélio Villaça Furukawa, alegando que “os magistrados não podem se manifestar, pois são impedidos pela Lei Orgânica da Magistratura”.

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) e o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) para falar sobre o caso e aguarda retorno.

Absolvidos

Os 50 PMs beneficiados pela absolvição sumária do juiz Furukawa são: 1) Alex Nascimento Chagas, 2) Amarildo da Costa Ribeiro, 3) Antonio Marcos da Silva, 4) Antonio Targino da Silva, 5) Armando Correia de Assis Júnior, 6) Augusto Fernando da Silva, 7) Carlos Alberto dos Santos, 8) Dimas Mecca Sampaio, 9) Douglas Marque Braz, 10) Eduardo de Oliveira Rodrigues, 11) Eduardo Nelson Parra Marin, 12) Evando Marques de Souza, 13) Evaristo Aparecido Cordeiro, 14) Everaldo Borges de Souza, 15) Fábio Henrique Vieira, 16) Francisco Alexandre Filho, 17) Francisco Juciangelo da Silva Araújo, 18) Gilberto Martins, 19) Hamilton Oliveira de Morais, 20) Hélio Moraes, 21) Henguel Ricardo Pereira, 22) João Carlos Salatiel, 23) José Antonio Constantino, 24) José Bezerra Leite, 25) José Carlos da Silva, 26) José Fernandes Lima, 27) José Milton Marques de Carvalho, 28) José Roberto Martins Marques, 29) Larri Vieira, 30) Ledon Diniz da Silva, 31) Luis Carlos Pondé Cardoso, 32) Maércio Ananias Batista, 33) Miguel Lázaro de Almeida, 34) Nelson da Silva Meza, 35) Paulo César Valentim, 36) Paulo Roberto de Melo Lopez, 37) Paulo Sérgio de Oliveira, 38) Paulo Sérgio Schiavo, 39) Pedro Silva dos Santos, 40) Reinaldo da Silva Ribeiro de Campos, 41) Reinaldo Henrique de Oliveira, 42) Roberto Alves da Silva, 43) Roberto Mantovan, 44) Rodney Carmona, 45) Rogério Viana Andrade, 46) Romeu Takami Mizu, 47) Sérgio Antonio Soares Santana, 48) Valderi Nunes, 49) Valdir Adriano Kiritschenko e 50) Valmir Ferreira.

Reportagem atualizada às 19h20 do dia 11/6/2021 para informar posicionamento do TJ-SP.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude
1 Comentário
Mais antigo
Mais recente Mais votado
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários
trackback

[…] do segundo governo Alckmin, Saulo se envolveu em vários massacres. Foi o articulador do Massacre do Castelinho, de execução de 12 pessoas. Era o Secretário de Segurança no massacre de maio de 2006 – mais de 800 pessoas executadas […]

mais lidas