Opinião: O enganoso sucesso do sistema carcerário capixaba

    Sistema de “supermax” implantado no Espírito Santo viola os direitos dos presos, afirma advogado da Pastoral Carcerária

    Quando se fala de sistema carcerário, parece haver uma predominância da estética sobre a ética: uma prisão poderá ser chamada “masmorra” se for sombria, fétida, superlotada, sendo frequentemente apontada como imprópria para albergar pessoas alcançadas pelo sistema criminal de justiça; enquanto outra, desde que apareça bem na foto e tenha algum nível de assepsia, poderá ser encarada com enorme tolerância (até modelar!), pouco importando a integridade do ser que nela habita.

    A história do encarceramento no estado do Espírito Santo, se for tratada com a atenção que ela merece e se houver honestidade intelectual no debate a seu respeito, pode indicar um caminho que não merece ser seguido, desde que o indivíduo preso seja considerado como elemento importante no processo de análise.

    Vejamos…

    Por aqui, no Espírito Santo, tivemos a carceragem do Departamento de Polícia Judiciária (DPJ de Vila Velha), desativada em 2010, que ficou marcada pela sua superlotação carcerária, em ambiente abusivamente insalubre: chegou a albergar 320 homens onde se dizia caber 35.

    Quem conheceu por dentro a Casa de Custódia de Viana viu alguma inspiração para uma imagem do inferno: além de uma insuportável superlotação, aqueles homens encarcerados eram tratados quase como porcos. Em 2010, esta unidade prisional também foi desativada e demolida.

    Houve os contêineres. Nossa tão falada vocação portuária parece ter inspirado a administração pública — se contêineres acomodam produtos para o comércio, que acomodem pobres, pretos e putas… (seriam contêineres negreiros? Ora, os dados de hoje apontam um índice de 78% de negros — pretos e pardos — nos cárceres capixabas). Em 2011, após muitas denúncias de horrores e maus tratos, a pior carceragem construída com celas metálicas — a carceragem do presídio de Novo Horizonte, no município de Serra — foi desativada.

    Em 2002, no território capixaba havia 2.920 presos. Em 2005, eram 4.632 presos encarcerados em 15 unidades prisionais. Em 2016, especificamente no mês de novembro, havia 35 unidades prisionais e a população carcerária já alcançava a cifra de 19.781 presos!

    Ou seja: em 14 anos a população carcerária do Espírito Santo cresceu perto de 600%. E a quantidade de unidades prisionais passou de 15 para 35.

    O caminho escolhido pelas autoridades capixabas para dar alguma resposta pela tragédia do sistema carcerário (um tipo de tragédia típica daqueles anos: que podia ser fotografada) foi a construção de presídios. A inspiração foram os modelos “supermax” americanos: unidades prisionais cujo objetivo é garantir a máxima segurança.

    (É importante anotar que, naqueles dias terríveis, a tragédia gerada pela superlotação carcerária era tão grande que muitas entidades da sociedade civil, sem a devida cautela na análise do problema, fizeram coro exigindo que mais vagas no sistema carcerário fossem criadas para que o problema fosse enfrentado. A Lei de Execução Penal — Lei 7.210/84 — já prescrevia muitos direitos para o preso, mas o que mais incomodava era a violação percebida pelos olhos, mesmo a certa distância. Optaram, então, por pedir novas unidades prisionais, embora tenham recusado desde sempre os contêineres.)

    Recentemente, após a dezenas de mortes de homens presos em Manaus e Roraima, o sistema carcerário capixaba ocupou significativo espaço em meios de comunicação, quase todos apontando-o como modelar, a ser copiado…

    Não é raro que as análises feitas do sistema carcerário capixaba optem por desconsiderar, como sujeitos de direitos, o homem e a mulher encarcerados. Tanto a Constituição Federal quanto a Lei de Execução Penal (LEP) prescrevem que o indivíduo preso conserva os direitos não alcançados pela sentença penal condenatória (ou pela medida cautelar). Assim, qualquer que seja o fato delituoso cometido, pelo qual responda em processo ou pelo qual tenha sido condenado, o indivíduo deve ser tratado com a dignidade que o ordenamento jurídico lhe confere. Deve ser tratado como alguém em condição especial, que não possui os meios de autotutela típicos de uma pessoa em liberdade — está, portanto, sob uma especial tutela do Estado.

    Não é raro que as direções das unidades prisionais capixabas, ao prestarem informações quando inquiridas nas inspeções feitas por entidades de defesa dos direitos humanos, informem um resultado de sucesso, ainda que estejam (e não negam!) trabalhando com número insuficiente de agentes penitenciários. Mas o sucesso é só porque na avaliação final a pessoa presa não é considerada. Vou repetir: o preso não é levado em consideração na análise do resultado, pelo menos não é levado integralmente em consideração. O sucesso é à custa do preso, à custa dos seus direitos. Vi muito isto: a diretora diz que faltam agentes penitenciários, então, embora a LEP garanta ao preso 01 hora diária de “banho de sol”, dá-lhe menos que isto – e nem é diário. E já que não há meios adequados para que a visita de familiares seja de 01 hora a cada semana, 20 minutinhos bastam.

    Os modelos “supermax” são um sucesso, bradam aqui e alhures. Até ministros do STF por aqui passaram: olharam mas não viram.

    Ora, o contato com os advogados é mediado pelos interfones, violando lei federal e embaraçando o importante contato entre advogado e cliente para que haja uma boa defesa. Também, nos Centros de Detenção Provisória (CDP), pessoas ainda juridicamente inocentes são encarceradas em regime próprio, nada podendo ser comparado aos regimes típicos de condenados: fechado, semi-aberto e aberto. Estas unidades prisionais têm matado dia a dia mulheres e homens presos, embora não se vejam corpos caídos, mas encurvados, psicologicamente afetados. Albergam pessoas presas cujas famílias foram pelo cárcere dilaceradas — basta ver como se dá o contato entre cônjuges, pais e filhos: o parlatório não permite sequer um aperto de mão, em frontal descumprimento à LEP.

    (Ainda não esqueço do indivíduo que permaneceu preso num dos CDPs capixabas, por três anos: segundo o diretor, saiu após sentença de absolvição…)

    O CDP é local de altíssima ociosidade, portanto, local de produção de loucura, com mais intensidade do que a loucura já típica do encarceramento.

    A situação de quem está preso num Centro de Detenção Provisória é tão dura que, em 2011, as presas de uma unidade prisional feminina do Município de Cariacica realizaram uma rebelião, recusando a transferência delas para um CDP do Complexo Prisional de Xuri, em Vila Velha. Veja-se afirmação do subsecretário de Justiça daquele ano:

    As propagandas são espetaculares. Quem vê os impressos ou o sítio da Secretaria de Justiça fica maravilhado: querem fazer crer que no Espírito Santo presos e presas trabalham e estudam, quando na verdade o percentual dos que têm acesso a isto é muito pequeno.

    Até mesmo a superlotação carcerária, que dizem ter ficado para trás, marca do “antigo” sistema, é uma realidade: 19.781 pessoas habitam um conjunto de unidades prisionais onde cabem 13.869 pessoas.

    Mas tem havido um coro (dos contentes) que precisa ser desafinado. Tem-se proclamado Brasil afora que o sistema carcerário capixaba há muito tempo não experimenta uma rebelião. Mas não se fala dos meios empregados para tal resultado: o excessivo controle dos passos do preso, a excessiva disciplina, a excessiva permanência ociosa nas celas, o afastamento dos familiares, a falta de contato com o mundo exterior, o controle ilegal das correspondências encaminhadas e recebidas — com a violação dos seu conteúdo, etc. O quesito segurança tem sido invocado para garantir certa ordem dentro do cárcere capixaba, não importando se ao custo dos direitos do encarcerado, revelando um serviço público à margem da lei, vocacionado para a violação de direitos básicos do condenado ou do preso provisório.

    No cárcere capixaba, o principal objetivo a ser alcançado é a contenção e neutralização do encarcerado — a Secretaria de Justiça do Estado do Espírito Santo, com participação ativa e omissiva de parte do Judiciário e do Ministério Público, tem subtraído vários direitos do preso (afrontando a Lei de Execução Penal) para que o resultado seja um “sucesso”.

    Recentemente, em curso de formação para os companheiros e companheiras da Pastoral Carcerária, falei sobre isto: funciona como aquela conhecida cirurgia: “foi um sucesso, mas o paciente morreu”! No Espírito Santo, se morrem poucos corpos, matam-se os SUJEITOS DE DIREITO. Temos cárceres cheios de indivíduos JURIDICAMENTE MORTOS!

    Um alerta.

    Parece ser possível afirmar que a população carcerária tem uma relação direta com as vagas disponíveis para o aprisionamento, sempre havendo um percentual significativo de superlotação carcerária. Assim, a população carcerária, longe de possuir alguma relação com a criminalidade — a não ser fomentando-a —, verificando o caso do estado do Espírito Santo, aumentou muito e, se continuarem as construções de presídios, tende a aumentar mais ainda.

    A superlotação carcerária é, sim, um problema a ser enfrentado. E tem sido muito comum tratá-lo lançando-se mão da construção de novas unidades prisionais. Ora, mas não há no sistema de justiça criminal alternativas para a diminuição do número de presos e presas, sem construir mais vagas em presídios? Certamente que sim: mutirões carcerários para liberar os que já cumpriram sua pena; ampliação, nos decretos de indulto e comutação da Presidência da República, das possibilidades de extinção da pena; menos utilização da prisão como medida cautelar no processo criminal; ampliação dos postos de trabalho e vagas de estudo para atividades do preso e, consequentemente, maior fruição da remição da pena, etc.

    Outro alerta.

    Faltam recursos financeiros aos estados para a construção de novas unidades prisionais. E isso é uma escassez boa que muito raramente acontece. Mas é preciso recusar a entrada da iniciativa privada nesse ramo de atividade típica do Estado. Até mesmo o modelo conhecido como PPP (ironia!) — Parceria Público-Privada — precisa ser contido… até porque parece haver uma sanha de atuação fora da lei onde esse modelo foi introduzido (e falo porque já participei de inspeção em unidade prisional deste modelo, na cidade de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais, com os bravos colegas advogados da hoje extinta Coordenação de Acompanhamento do Sistema Carcerário, do Conselho Federal da OAB).

    Tentando concluir, ressalto que o modelo de sistema carcerário do Espírito Santo, embora de boa ESTÉTICA, não merece ser copiado nem seguido, pois tropeça na ÉTICA.

    (*) Gilvan Vitorino é advogado voluntário da Pastoral Carcerária e mestre em ciências sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

    Leia a resposta do secretário de Segurança do Espírito Santo:

    A reconstrução do sistema prisional capixaba

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