Os crimes dos presos soltos pela Covid: controvérsia opõe juízes e promotores em MG

    Ministério Público aponta registros de casos envolvendo pessoas beneficiadas por progressão de pena que foram para prisão domiciliar; para professora, levantamento “é muito problemático e está errado”

    Segundo Tribunal de Justiça de MG, 12.341 presos foram para regime domiciliar na pandemia | Foto: Marcelo Albert/TJ-MG

    Um levantamento feito pelo MP-MG (Ministério Público de Minas Gerais), com apoio da Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública), aponta para possíveis impactos causados pela liberação de pessoas presas como medida para impedir a propagação do coronavírus no sistema carcerário do Estado. 

    O levantamento aponta que, entre os dias 16 de março e 31 de dezembro do ano passado, 12.385 pessoas presas em regimes aberto e semiaberto progrediram de pena e saíram dos presídios para cumprirem pena em regime domiciliar, graças à Portaria Conjunta nº 19/2020, que estabeleceu medidas de prevenção e controle da Covid-19. 

    Segundo o Ministério Público, com essa progressão de pena, “foram identificadas 11.082 ocorrências policiais envolvendo os presos liberados; 4.167 presos foram responsáveis pela totalidade dos registros, o que indica que 33,65 % dos presos liberados se envolveram em novos crimes”. Ainda segundo o MP-MG, desse total, 55,54% dos presos em regime domiciliar se envolveram em mais de uma ocorrência.

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    Conforme os dados, o crime supostamente mais praticado por presos liberados na pandemia foi o tráfico de drogas, com 845 registros. Em seguida, aparecem furto (791 registros), ameaças (536), roubos (396), lesões corporais (331) e homicídios (200 — sendo 123 consumados e 77 tentados). 

    Aline Passos, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, doutoranda em Sociologia pela UFS (Universidade Federal de Sergipe) e professora na Fapide (Faculdade Pio X de Canindé do São Francisco), explica que os dados representam as ocorrências policiais, e é importante deixar isso claro “porque as ocorrências policiais são classificadas de acordo com tipos penais dentro dos limites do que é um inquérito policial”. E por isso, segundo ela, os promotores não deveriam usá-los para basear esse tipo de estudo, já que é o Ministério Público quem deve avaliar para saber se vai seguir a sugestão policial ou se vai indicar algum direcionamento diferente. 

    Aline ainda chama atenção que o relatório aponta para “ocorrências”, e isso pode indicar que o estudo foi feito apenas com base em boletins de ocorrências — e não em inquéritos policiais concluídos. “A única certeza é que nada disso [que está no relatório] foi julgado. “Ou seja, nenhuma dessas capitulações foi produzida com a defesa, devido processo legal, nada disso. Só o delegado achou que era, com base nos indícios e nas investigações, mas não tem nenhuma prova técnica, nada disso”. 

    Por meio de nota, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais informou que “os números oficiais são os seguintes: 12.341 pessoas que estavam privadas de liberdade, em regime semiaberto, foram beneficiadas com a prisão domiciliar como medida de prevenção a propagação/transmissão da Covid-19 no ambiente prisional. Dentre elas, 1.463 retornaram ao cárcere por prática de novo crime”. Portanto, destaca que “na verdade, 11,8% dos beneficiados retornaram ao cárcere por reiteração delituosa e não os 33%, como equivocadamente informado”. 

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    Mesmo com as correções em números feitos pelo TJ-MG, a professora Aline ressalta que o gráfico é “muito problemático e está errado”, porque, entre um dos motivos, trata uma investigação policial como algo determinante, tratando, inclusive, suspeitos como culpados.

    Para a advogada Nana Oliveira, da Assessoria Popular Maria Felipa e que atua na questão do desencarceramento no Estado, o levantamento do Ministério Público é “leviano e superficial”. Na avaliação dela, o MP-MG “quer passar que não é necessário soltar” e disponibiliza informações imprecisas para apontar possíveis crimes cometidos por presos beneficiados. “Por exemplo, nos dados de homicídios, são registros de ocorrências e não condenações”. 

    A advogada ainda aponta para possíveis omissões de dados sobre o coronavírus no sistema carcerário de Minas Gerais. Nana afirma que “não foi feito quase nada” durante a pandemia para evitar a contaminação nos presídios. “A única medida foi a suspensão das visitas, mas as transferências continuam sem cessar. Efetivamente, o governo conta com a sorte, a ocultação de informações e a vontade das pessoas viverem”, e por isso seria prejudicial a retirada dos direitos de progressão de pena dos presos que foram para regime domiciliar. 

    A nota do Tribunal de Justiça do Estado também destaca que Minas Gerais apresenta o menor número de casos de coronavírus no sistema carcerário, apesar de ter a segunda maior população prisional do país, mas não indica sobre a quantidade de testes feitos. Para o TJ-MG, “as medidas adotadas evitaram a contaminação em massa no sistema penitenciário e a consequente sobrecarga das unidades de saúde de nosso estado”. 

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    Nana, no entanto, acredita que o baixo número de pessoas identificadas com a doença é por causa da falta de testagem. “Sem teste não tem contaminados”.

    Já a professora Aline aponta que o próprio levantamento do MP-MG traz um dado que merece mais destaque, que é o de presos vítimas de homicídios. “Esses são os únicos dados que fazem sentido no levantamento, porque eles não precisam de nenhuma acusação, o que aconteceu foi a liberação de um preso e ele foi morto. É certeza que morreu, mas não se sabe quem matou”.

    Conforme o estudo do Ministério Público, houve 123 homicídios consumados envolvendo presos em regime domiciliar. Desses, em 76 casos os presos foram vítima e nos outros 47 foram apontados como autores, embora ainda sejam suspeitos na investigação policial.

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    Além disso, um levantamento feito pela Pastoral Carcerária (entidade da Igreja Católica de evangelização e defesa dos direitos humanos dos detentos), que estudou 90 denúncias de tortura e violações de direitos em unidades prisionais de todo o país, recebidas entre 15 de março e 31 de outubro de 2020, aponta que Minas Gerais é o segundo Estado com mais casos denunciados.

    São Paulo, que tem a maior população carcerária do país, foi a que mais teve registros de torturas e violações de direito: foram 18 casos, seis a mais do que no sistema prisional mineiro.

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