‘Os governadores não comandam as suas polícias’, afirma antropólogo

Para Luiz Eduardo Soares, projeto de lei que visa retirar o controle das tropas das mãos dos executivos estaduais com “eleição interna” só formalizaria algo que já existe na prática

Braçadeira de sargento da Polícia Militar do Rio de Janeiro | Foto: Reprodução / PMERJ

Não é de hoje que o presidente Jair Bolsonaro (PL) e sua base parlamentar tentam, de algum forma, tirar dos governadores do estados o poder de controlar as polícias. Esta semana o assunto voltou à tona, com a tentativa de fazer passar na Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados o projeto de lei PL 164/2019 que tiraria dos chefes dos executivos estaduais o poder de escolher os comandantes das polícias militares.

A ideia é que ocorram eleições internas que definiriam uma lista tríplice que seria entregue para a escolha do governador. O texto ainda diz que o orçamento destinado às polícias seriam gerido pela própria corporação. A bancada da bala, principal interessada na aprovação do projeto, queria que o documento fosse votado nesta terça-feira (2/8), porém o presidente da comissão, Aluísio Mendes (Podemos-MA), adiou o pleito e afirmou que só voltará a colocar o projeto em discussão após as eleições de outubro.

Para o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, autor, entre outros, de Elite da Tropa (Objetiva, 2006) e Desmilitarizar (Boitempo, 2019), a intenção desse PL é apenas formalizar algo que já existe. Segundo ele, nenhum governador do país comanda as suas polícias e isso se deve a falhas na formulação da Constituição Federal de 1988, que deixou que questões de segurança pública não fossem alteradas e permanecessem da mesma forma como era na época da ditadura militar.

“No caso da segurança pública, o modelo policial organizado pela ditadura foi, portanto, preservado na Constituição de 88. Isso foi uma imposição dos militares e acabou sendo aceita por uma série de equívocos”, afirma Soares em entrevista exclusiva à Ponte, reproduzida abaixo na íntegra.

O antropólogo Luiz Eduardo Soares | Foto: Artur Renzo/Boitempo

Ponte — Não passou ainda na Câmara dos Deputados a proposta de lei que quer desvincular o comando da Polícia Militar dos governos estaduais. Em seu livro Desmilitarização o senhor já apontava que os comandantes das PMs já são subordinados ao comando do Exército. Queria que o senhor explicasse como isso se dá.

Luiz Eduardo Soares — Essa me parece a questão decisiva para quem está pensando o futuro da democracia no Brasil e tomando a problemática da segurança pública como o campo central para a conquista efetiva da democracia. O que tivemos antes de Bolsonaro desde a Constituinte foi parcial e insuficiente, por várias razões. Algumas contradições importantes já estavam na Constituição e acabaram resultando em tragédias. Eu diria que não é à toa que os bolsonaristas e aqueles que resistem a qualquer mudança democrática na segurança pública e nas instituições policiais estejam se envolvendo nesse debate e propondo o que estão propondo. Eles estão sendo cirúrgicos e muito inteligentes do ponto de vista de sua estratégia conservadora e protofascista. E por que isso? Na Constituição, os representantes da ditadura ainda eram ativos em função da correlação de forças. Naquele momento, ainda exerciam influência e eles não tinham poder na época para ditar os rumos do processo de transição para impor uma agenda, mas tinham influência suficiente e capacidade de pressão para limitar os avanços. Um ponto crucial para esses militares egressos da ditadura foi impedir qualquer mudança nas instituições de segurança pública e nas Forças Armadas e, por isso, eles bloquearam os artigos 142 e 144 como se fossem uma espécie de grande reserva política. E impuseram uma blindagem nessas duas áreas. O que resultou disso foi o congelamento e a fixação das estruturas forjadas na ditadura.

No caso da segurança pública, o modelo policial organizado pela ditadura foi, portanto, preservado na Constituição de 88. Isso foi uma imposição dos militares e acabou sendo aceita por uma série de equívocos. Não importa as razões que levaram a isso, poderia ter havido resistência. Apesar da correlação de forças não ser tão positiva para a democracia, teria sido possível. Não houve propriamente transição política na segurança, mas uma continuidade. Aquela cultura corporativa, que provém sobretudo dos porões da ditadura, continuou prevalecendo no período democrático. Isso acabou gerando um enclave institucional, que significa uma espécie de arquipélago blindado. O arquipélago permaneceu refratário à Constituição, aos direitos humanos, aos valores democráticos e, sobretudo, à autoridade política civil republicana, e aqui chegamos a um ponto em função dos vínculos, sobretudo da Polícia Militar, com o Exército e em função da manutenção dessa cultura corporativa.

Nós tivemos ao longo de todo esse tempo polícias que não se compreendiam como instrumentos da Constituição para a realização da democracia e da cidadania, mas como instrumentos a serviço de um projeto que nada tinha a ver com a democracia. Os exemplos estão aí no genocídio de jovens negros e pobres, na brutalidade policial, racista e classista. Do ponto de vista dos discursos, fica até muito claro quando, há não muito tempo atrás, um coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que exercia inclusive uma função importante, declarou à imprensa que o papel da polícia era de inseticida social. Quando você se choca com uma definição assim, evidentemente racista, classista, absurda, percebe que está aí a continuidade de uma visão que não foi inventada pela ditadura, porque, infelizmente, isso remete à escravidão e à história do Brasil, mas que na ditadura foi consagrada, sublinhada e intensificada. Isso significa que entre a maioria dos profissionais de polícia (há, evidentemente, muita pluralidade), o que predominou foi exatamente essa visão do inseticida social, que significa que a polícia existiria supostamente para defender os “homens de bem” contra aqueles que personificam o mal. Esses que personificam o mal devem ser liquidados. E aí a cultura militar se aplica perfeitamente, porque eles não são cidadãos suspeitos, são inimigos a serem executados extrajudicialmente.

Essa visão que confronta a Constituição só foi possível porque não houve processo de transição democrática nas polícias. Em primeiro lugar, por conta da manutenção dessas estruturas organizacionais que trouxe consigo a cultura corporativa anterior e também porque o Ministério Público foi omisso e cúmplice da formação desse enclave. O Ministério Público não cumpriu, ao longo dessas décadas, sua missão constitucional de exercer o controle externo à atividade policial, e o Judiciário abençoou essa situação. Os políticos, em boa medida, e os segmentos conservadores, sobretudo, aplaudiram e mantiveram esse quadro. Setores da população aplaudiam porque confundem justiça com vingança. Nós tivemos, então, apesar dos avanços democráticos indiscutíveis, com todos os seus limites, ao longo dessas mais de três décadas, o avesso da democracia, que tem sido as práticas da justiça criminal, particularmente das polícias. Esse é um quadro gravíssimo, que está na base do nosso problema. Foram ao longo dessas décadas, com variações regionais e temporais, mas [as polícias] foram basicamente refratárias ao controle civil, à autoridade civil política republicana.

Eles querem sancionar e consagrar, cristalizar essa autonomia que tem caracterizado essa área. Porque nós tínhamos uma manutenção da estrutura organizacional, da cultura corporativa e uma ambiguidade muito grande que definia as polícias, a Polícia Militar em particular, como sendo sujeita a dois senhores, os governadores e o comando do Exército. Essa ambiguidade estava presente na nossa legislação até agora e isso foi colocado para baixo do tapete. Ninguém quis tocar nessa questão. E com essa nova legislação, o passaria a preponderar daqui em diante é de um lado, essa autonomia inconstitucional, a reprodução do enclave com a promessa de brutalização crescente e de continuidade do genocídio e, por outro lado, a subordinação ao outro senhor. Porque se o senhor governador tem o seu poder diminuído, o outro pólo é que se torna ainda mais determinante, que é o pólo do Exército. Se isso for aprovado, nós estaríamos no pior dos mundos.

https://ponte.org/luiz-eduardo-soares-as-instituicoes-estao-sendo-corroidas-pelo-fascismo/

Ponte — Desde janeiro do ano passado o presidente vem insinuando tirar o poder dos governadores sobre a polícia. A gente está vendo esse PL tramitando a dois meses da eleição. A gente sabe que o presidente está atrás nas pesquisas, mas tem uma alta aprovação entre os quadros da Polícia Militar. Juntando isso aos CACs [caçadores, atiradores, colecionadores de armas], que estão cada vez mais armados e toda essa instigação de golpe que o próprio Bolsonaro dá, quais são os reais riscos para a democracia nos próximos meses?

Luiz Eduardo Soares — Eu não vejo o risco imediato, porque a situação grave nós já temos. A autoridade dos governadores, na prática, já não tem sido implementada pelas razões já expostas. O grande risco é o fato de nós termos convivido com esse Leviatã ao longo dessas décadas, que esse é dragão que está sentado no meio da sala de visitas e nós fingimos que que não há nada ali. O que esse dragão é? São corporações com centenas de milhares de profissionais armados que se orientam por valores não constitucionais, que são herdeiros da ditadura e convictos dos valores que provêm dessa época e que estão exercendo as suas práticas com essa autonomia típica do enclave. Eles já não obedecem a governador nenhum, isso desde o início do processo de democratização. Os governadores não comandam as suas polícias. Isso não vai ser alterado. É uma aposta no futuro para manter essa sua absurda autonomia para o futuro governo Lula (PT), para os governos progressistas que porventura venham a ser eleitos.

Ponte — Os autores dessa PL argumentam que, com essa nova diretriz, diminuiria a interferência política dentro das polícias. Só que, ao mesmo tempo, eles colocam que teriam eleição para uma lista tríplice para ser escolhida pelo governador. E a gente sabe que na polícia não existem eleições, mas processos hierárquicos. Como você vê esse discurso de diminuir a politização, abrindo o espaço embates eleitorais dentro da própria corporação?

Luiz Eduardo Soares — É pura hipocrisia, porque a política tem de estar presente na polícia. Mas a grande política com P maiúsculo, que é a orientação e controle externo exercido pela sociedade sob os olhos do povo. É o grande exercício, portanto, de condução democrática, pois vem da sociedade por meio das eleições livres. E o governador é, portanto, titular da vontade soberana popular para imprimir orientações, sempre respeitando os parâmetros constitucionais. Essa é a grande política que tem que estar presente no Estado e ela não pode, portanto, se confundir com política de governo no sentido trivial a manipulação com a indicação de coronéis ou de delegados por interesses partidários ou interesses fisiológicos.

Pelo novo formato o que vai ser impedido é o exercício da vontade popular. A partir dos termos funcionais, isso vai ser bloqueado ainda mais. É essa autonomia que hoje existe e vai continuar existindo, com as piores consequências. A indicação dos três nomes vão depender de uma agitação política interna ou ultra corporativista, o que significa que essa política da pior qualidade, fisiológica e corporativista, vai estar sendo animada e alimentada com mais dinamismo ainda do que é feita hoje. Se já não existe controle externo, e esse é o grande problema, agora o cofre vai ser fechado e a chave vai ser jogada ao mar.

https://ponte.org/para-os-neoliberais-e-muito-importante-normalizar-o-fascista-diz-ex-secretario-nacional-de-seguranca-publica/

Ponte — Qual o risco prático de ter uma polícia autônoma em relação aos governos estaduais?

Luiz Eduardo Soares — É isso que nós temos hoje. Por que nós temos uma polícia que viola direitos humanos, cuja brutalidade letal é campeã mundial, que tem exercido esse tipo de poder? Porque isso vem acontecendo e não há nenhum controle social sobre as práticas da polícia. Se reproduz por dinâmicas próprias, autônomas, não há intervenção. Os governadores fazem a mímica, o teatro do controle, do comando, mas efetivamente não comandam. Eles procuram minimizar essa sua impotência, convocando alguns, indicando comandantes gerais e também os delegados gerais, chefe de Polícia Civil e assim fazendo alguma aliança com eles, minimizando essa sua impotência. Mas isso é limitadíssimo. Eles são incapazes de controlar as suas polícias efetivamente. Esse é o quadro que nós temos agora.

Imagina agora com esse projeto de lei sendo sancionado? Eu acho que o que a população tem que entender é que nenhum governador comanda suas polícias. O que há é um grande teatro. Por que não comandam as polícias? Os que tentaram, pagaram um preço muito alto e tiveram de recuar. Isso é um escândalo, um absurdo. Nenhum governador pode confessá-lo, porque isso constituiria crime de responsabilidade, evidentemente. Porque se o governador percebe que não está exercendo comando, tem de denunciar. Eles não têm coragem para fazer isso, porque o preço a pagar é maior do que eles. O que essa proposta está fazendo? Está tentando consagrar legalmente uma realidade absurda, cuja consequência é o nosso dia a dia de brutalidade policial e ineficácia policial.

Ponte — Qual seria o caminho para  quebrar a redoma em que vivem as polícias militares no Brasil?

Luiz Eduardo Soares — Nós temos que andar no sentido contrário desse projeto. Eu não estou dizendo que nós tenhamos essa capacidade hoje. Estamos resistindo contra o fascismo, então estamos acuados na defensiva e, infelizmente, a correlação de forças nessa área é muito negativa, porque a gente pode evitar o pior e reduzir danos, impedir, por exemplo, que isso seja aprovado, lutar com todas as forças contra isso. Depois, para dar o próximo passo, nós vamos ter de avaliar qual é a conjuntura e qual é a correlação de forças até onde nós podemos ir. Agora, o caminho tem de ser recomeçar, refundar as polícias como se nós estivéssemos agora em 1988. 

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Se trata de enfrentar agora os desafios de um país nas condições em que está o nosso. E aí nós vamos ter que enfrentar isso nas Forças Armadas e nas ações que modificam o modelo policial, fazendo com que haja um controle externo, social, efetivo, como peças indispensáveis, além da desmilitarização. Eu tenho escrito e muita gente tem falado sobre isso há décadas. É uma questão de técnica e de grande debate que não se resolve facilmente. Mas nós temos que refundar as polícias constitucionalmente.

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