‘Pacote anticrime transforma morte em instrumento de segurança pública’

    Cristiano Maronna, presidente da Plataforma Nacional de Políticas de Drogas, afirma que proposta de Sérgio Moro é ‘retrocesso lamentável’ e vai tornar execução penal mais dura e impacta no encarceramento em massa

    Cristiano Maronna em evento em agosto do ano passado | Foto: Alice Vergueiro/Ibccrim

    As 10 medidas contra a corrupção com outra roupagem. É assim que o presidente da Plataforma Nacional de Política de Drogas e integrante do Ibccrim (instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Cristiano Maronna, define o pacote anticrime apresentado pelo ministro da Segurança Pública e Justiça, Sérgio Moro. “Eles deram lá uma tentativa de modernização mas a essência é a mesma. O pacote é muito ruim em vários aspectos, essa coisa de aumentar pena, de suprimir garantias. O mais grave para mim é a sinalização, o simbolismo que o governo promove em relação a letalidade policial. Nós temos hoje provavelmente a polícia que mais mata, mas também a que mais morre. Essa sinalização é muito preocupante na medida que a gente precisaria do oposto. Nós precisaríamos de políticas públicas que fossem capazes de conter a letalidade policial, que pudessem colocar senso de responsabilidade no uso da arma por parte dos policiais garantindo a preservação da vida. Da maneira como o governo está apresentando esse projeto, há uma banalização da letalidade policial e uma transformação da morte num instrumento de segurança pública”, pontua Maronna à Ponte.

    A análise aconteceu durante conversa realizada na Casa da Democracia, em São Paulo, que teve a participação da Ponte, sobre a atual política de drogas e os resultados do 3º Levantamento Nacional Domiciliar sobre o Uso de Drogas, feito pela Fiocruz em 2016, e nunca divulgado. O Instituto Casa da Democracia e o The Intercept revelaram com exclusividade os resultados do levantamento na semana passada. “A pesquisa aponta, por exemplo, que 0,9% da população usou crack alguma vez na vida, 0,3% fez uso no último ano e apenas 0,1% nos últimos 30 dias. No mesmo período, maconha, a droga ilícita mais consumida, foi usada por 1,5%, e cocaína, por 0,3% dos brasileiros”, diz o texto.

    Para Maronna, os números desfazem o mito de que existe uma epidemia de drogas – em especial o crack – no Brasil, o que justificaria o conceito de guerra às drogas e do aparato repressor que está implicado nesse processo. “O discurso de guerra às drogas promove corrupção, violência, encarceramento em massa e ao mesmo tempo representa para o sistema de justiça um ativo, porque de fato quanto mais perigoso, demonizado for o inimigo a ser combatido, mais importância você vai ter nessa guerra. Se a gente tiver um modelo regulatório onde não há guerra às drogas, certamente o sistema de justiça vai perder muito. A guerra às drogas justifica, por exemplo, que o sistema de justiça seja tão caro e tenha tanto poder”, avalia o presidente da Plataforma Nacional de Políticas de Drogas.

    Maronna destaca que não há, nas propostas do pacote anticrime de Moro, uma previsão específica sobre alteração da política de drogas, mas há mudanças que vão impactar, de alguma forma, a lei de drogas. “Todas as previsões a respeito de restrições na execução penal, que são previsões que tornam o cumprimento das penas mais demorados, o acesso aos benefícios como livramento condicional ou progressão de regime, vão impactar a lei de drogas, porque o crime de tráfico de drogas é hoje equiparado aos crimes hediondos. Nós temos a lei dos crimes hediondos, que prevê, além do tráfico de drogas, o terrorismo, o homicídio qualificado, a tortura, o envenenamento de água potável, extorsão mediante sequestro, enfim uma série de crimes graves que são tratados de forma mais rigorosa”, avalia.

    Confira os principais trechos da conversa promovida pela Casa da Democracia com Cristiano Maronna sobre a atual política de drogas e o pacote anticrime:

    O pacote anticrime

    “O pacote ele é muito ruim em vários aspectos, essa coisa de aumentar pena, de suprimir garantias, esse pacote do Moro ele é, na verdade, as dez medidas do MPF (Ministério Público Federal) contra a corrupção com outra roupagem. O mais grave para mim é a sinalização, o simbolismo que o governo promove em relação a letalidade policial. O governo já tinha flexibilizado o acesso à posse de arma de fogo e é uma medida que vai armar os mais ricos. Por exemplo, os latifundiários, os grandes proprietários de terra, que vão usar as armas para repelir eventuais invasões. De cara é uma medida que vai beneficiar os mais ricos e atingir como vítimas os mais pobres. Outro aspecto são as regras que vão ampliar a incidência da legítima defesa para as forças policiais, em um país que já tem as forças policiais com maior letalidade do mundo. Nós temos hoje provavelmente a polícia que mais mata, mas também a que mais morre. Essa sinalização é muito preocupante na medida que a gente precisaria do oposto. Precisamos de políticas públicas que fossem capazes de conter a letalidade policial, que pudessem colocar um senso de responsabilidade no uso da arma por parte dos policiais, garantindo a preservação da vida. Da maneira como o governo está apresentando esse projeto, há uma banalização da letalidade policial, inclusive uma transformação da morte num instrumento de segurança pública. Quando um governo fala no uso de snipers para abater pessoas que estejam usando um fuzil, ainda que não estejam na iminência de praticar um ato lesivo, o que estamos é aceitando a morte como instrumento de garantia da segurança pública. É a legitimação da necropolítica criminal, que vai exterminar as pessoas. E não é qualquer pessoa: são os negros, pobres e periféricos, são os que estão marcados para morrer. Um dos relatores da ONU para direitos humanos [Philip Alston, entrevistado à época pela Ponte] esteve no Brasil uns anos atrás e propôs a extinção (leia o relatório aqui) da Polícia Militar como forma de combater o que ele chamou de execuções extrajudiciais, que nada mais é do que esse genocídio nas periferias das grandes cidades. Com essas propostas, a situação tende a se agravar o que é um retrocesso lamentável.”

    Moro e as drogas

    “Não há uma previsão específica que toque na questão da lei de drogas. No entanto, todas as previsões a respeito de restrições na execução penal, que são previsões que tornam o cumprimento das penas mais demorados, o acesso aos benefícios como livramento condicional ou progressão de regime, vão impactar a lei de drogas, porque o crime de tráfico de drogas é equiparado aos crimes hediondos. Nós temos a lei dos crimes hediondos, que prevê, além do tráfico de drogas, o terrorismo, o homicídio qualificado, a tortura, o envenenamento de água potável, extorsão mediante sequestro, enfim, uma série de crimes graves que são tratados de forma mais rigorosa. Então o projeto, ao tornar a execução penal mais grave, mais dura, vai ter um impacto também aos condenados por tráfico de drogas, que vão ter muita dificuldade para obter progressão de regime, livramento condicional, etc.”

    Mito da epidemia

    “A pesquisa não foi divulgada porque ela não confirma um mito de que o Brasil vive uma epidemia de drogas, em especial com relação ao crack. A pesquisa mostra que há números significativos de uso de droga no país, mas isso está muito longe de ser uma epidemia de dependência ou uso problemático. Quando analisamos os números, o principal problema de uso de drogas no Brasil é a questão do álcool. As chamadas festas open bar que nada mais são do que um incentivo a uma intoxicação de álcool, a propaganda de bebidas alcoólicas são permitidas e isso também serve de estímulo. São 25 milhões de brasileiros em situação que pode ser enquadrada como uso problemático de álcool. E há o problema na juventude, quando o consumo de bebida alcoólica é aceito socialmente, muitos pais iniciam seus filhos e isso não é percebido como uso de droga. Para construir uma política de drogas eficiente é preciso conhecer o padrão de consumo do brasileiro. O próprio STF reconhece isso. Nesse sentido, é um alento ter provas científicas sobre o tema com a divulgação desse levantamento. Ainda mais em um momento em que há um desprezo pelas evidências científicas, quando elas não confirmam o dogma pessoal de alguém. Por isso, inclusive, que a gente tem esses extremismos, o ataque a quem pensa de maneira diferente.”

    Crack: a droga suja

    “É preciso desmistificar e enxergar a realidade como ela é. O professor Carl Hart esteve no brasil e visitou a região da Luz, no centro de São Paulo, e ele dizia que chamar aquela região de ‘Cracolândia’ é invisibilizar o real problema. Porque quando você fala Cracolândia, você está atribuindo o problema a uma substância, o crack. E o fato é que a plataforma fez uma pesquisa sobre o De Braços Abertos que mostrou que a maioria das pessoas que estava na região da Luz e tinha aderido ao programa da prefeitura [feito na gestão de Fernando Haddad] já tinham passado pelo sistema prisional ou pelo socioeducativo. O crack é muito mais uma consequência do que uma causa. Para a pessoa chegar ali, ela já perdeu o vínculo com tudo: trabalho, casa, família. E o Carl Hart também comentava da utilidade do crack. Quem não tem casa, tem no crack um alento, porque você não sente frio, não sente fome, não sente nada. O programa ‘Crack é possível vencer’ que se iniciou em 2011 no governo Dilma Rousseff não deu certo porque ele focava na droga. É preciso compreender que situações como a que ocorre na Luz não serão resolvidas por uma abordagem que foque na substância, mas por uma abordagem que promova inclusão social. Não adianta focar o crack, precisa focar a exclusão e criar medidas que combatam isso. Nesse sentido, o extinto DBA cumpria essa função: focava em proporcionar condições de vida minimamente dignas para essas pessoas, por meio de renda, trabalho, moradia e alimentação. Então me parece que esse é um caminho a ser seguido quando a gente pensa na questão das drogas.”

    Confira o vídeo produzido pela Ponte durante a visita de Carl Hart no Brasil: 

    Guerra declarada

    “O que introduziu a violência na relação de drogas foi a opção de guerra às drogas, que tem pouco mais de 100 anos. O uso de substâncias entorpecentes faz parte da história da humanidade. A evidência científica tem sido demonizada. Tem uma frase do Lênio Streck que gosto muito que é: ‘o Brasil depois de sediar a Copa do Mundo em 2014, a Olimpíada em 2016, agora está sediando a Idade Média’. Droga é o que o outro usa. Outra questão importante de se observar é que a maioria dos brasileiros se informa pela TV e, mesmo agora com a febre do Whatsapp, continua a mesma lógica, porque no Whatsapp o sujeito vai receber o trechinho daquele programa sensacionalista que trata do tema de forma enviesada e mostra o policial invadindo a favela e prendendo uma pessoa com pequena quantidade de drogas e dizendo que aquela pessoa é perigosa. Esse tipo de programa de TV reforça o estereótipo que foge muito da realidade. Hoje nós temos uma lei de drogas que diferencia usuário e traficante. Na teoria é fácil: o traficante obtém lucro, o usuário só está com a droga que consome. Mas, na prática, a gente percebe que essa diferença é difícil de ser realizada, porque não há um critério objetivo de quantidade. A mesma quantidade acaba redundando em tráfico e no outro em uso pessoal. E na experiência percebemos que o critério sócio-econômico e da cor da pele é fundamental para decidir por um ou outro. A mesma quantidade de droga com jovem negro na favela que cai no tráfico de drogas, para o branco de um bairro rico será usuário.”

    Encarceramento

    “A forma com que o sistema de justiça aplica a lei de drogas é uma forma muito injusta. E isso tudo vai desembocar no fortalecimento do crime organizado, das facções. Me preocupa quando olhamos o pacote anticrime de Sérgio Moro em relação as drogas a questão dos impactos na execução penal. Vai tornar execução penal das pessoas condenadas por tráfico ainda mais dura. Nós já temos uma tendência de super encarceramento tendo a lei de drogas como um dos principais vetores e nós vamos ter uma maior dificuldade que essas pessoas saiam da prisão ou obtenham benefícios no curso de execução da pena. Nós só vamos romper esse ciclo quando diminuirmos o encarceramento. Lançamos no ano de 2017 as 16 medidas contra o encarceramento em massa, entre as quais a descriminalização da posse para uso e também a aplicação de penas alternativas para aqueles que não estão ligados ao crime organizado. O discurso de guerra às drogas promove corrupção, violência, encarceramento em massa e representa para o sistema de justiça um ativo, porque de fato quanto mais perigoso, demonizado for o inimigo a ser combatido, mais importância você vai ter nessa guerra. Se a gente tiver um modelo regulatório onde não há guerra as drogas, certamente o sistema de justiça vai perder muito poder, orçamento. Hoje a magistratura e o MP fazem parte do 1% mais rico do brasil. A guerra as drogas justifica que o sistema de justiça seja tão caro e tenha tão poder.

    Ao mesmo tempo, é um mecanismo de criminalização dos pobres, porque ela ataca certas pessoas. Nós comparamos o caso do helicoca [helicóptero de empresa da família do ex-senador Zezé Perrela apreendido com quase meia tonelada de pasta base de cocaína em 2013] com o caso de pessoas vulneráveis e como o resultado é diferente dependendo do extrato social a que você pertence e a cor da pele. É preciso também denunciar esse discurso falso de que o usuário é o responsável pela violência. Quem produz a violência é a guerra às drogas, a ideia de que o traficante é um inimigo a ser combatido. Anualmente a ONU (Organização das Nações Unidas) lança um relatório mundial sobre drogas que mostra uma certa estabilidade. A maioria das pessoas que faz uso de drogas não desenvolve um uso problemático. A maioria das pessoas tem suas vidas mais ou menos estruturadas, com emprego, relações e tudo mais. Você cria no usuário um estigma de que ele é um criminoso. E a gente tem no discurso do atual governo algo que vai na contramão dessas evidências científicas comprovadas em estudo e pesquisa, e que aposta da meta da abstinência. Não dá pra você definir a politica de drogas apenas com a abstinência. A redução de danos é uma ferramenta importante como modelo de cuidado.”

    Comunidades terapêuticas

    “As comunidades terapêuticas surgiram nas reformas psiquiátricas, que vieram na esteira do movimento antimanicomial, que queria garantir o respeito aos direitos humanos. Só que da forma como se desenvolveram, elas hoje representam um risco. O MNCPT [Mecanismo Nacional de Combate à Tortura] soltou no ano passado um relatório com uma série de violações de direitos humanos nessas comunidades. A gente tem os setores mais conservadores vinculados a essas comunidades. O exemplo maior dessa aliança é que agora o ministério da cidadania assinou um convênio de mais de R$ 100 milhões para financiar leitos em comunidades terapêuticas para pessoas que fazem uso problemático de drogas. Há uma teocracia terapêutica em que o proselitismo religioso se disfarça de tratamento para uso problemático de drogas com baixíssima eficácia. O próprio CNJ [Conselho Nacional de Justiça] tem uma determinação de que não pode haver internação forçada nessas comunidades, mas isso na prática acontece. Existe uma ideologização das drogas, em que diversos segmentos políticos estão comprometidos com um modelo de negócio focado na abstinência e no modelo das comunidades terapêuticas. Perceba que nossa política de drogas opta pelo confinamento: seja nos presídios ou nas comunidades terapêuticas.”

    Soluções possíveis

    “Eu revogaria o artigo 33 que prevê o tráfico de drogas. Na minha opinião, o tráfico deveria ser considerado uma conduta lícita. Assim como você pode chegar no bar e pegar uma bebida, acho que poderíamos entrar num dispensário e escolher a droga que eu quiser, claro que dentro de parâmetros pré-estabelecidos. Quando perguntam para mim sobre se eu defendo descriminalizar ou legalizar, ressalto que descriminalizar é tornar a posse um ato não criminal. Aqui na América Latina, só Brasil e as Guianas ainda não descriminalizaram. Não há um modelo pronto e acabado. O que a gente sabe é que a superação do proibicionismo é imperativa. Esse modelo não funciona mais. Nós precisamos caminhar para um modelo regulatório em que o acesso seja possível para qualquer um. Descriminalizar não vai aumentar uso ou violência. No entanto, só descriminalizar o uso não vai resolver a questão do tráfico, por isso precisava ter um modelo regulatório para toda a cadeia produtiva.”

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