Padre defensor de moradores de rua é ameaçado; Igreja pede providências

    Julio Lancellotti, que trabalha há mais de 30 anos com a população marginalizada de SP, foi atacado com mensagens de ‘morte ao padreco’ e ‘mandem esse padre para o inferno’

    Lancelotti diz que não tem medo das ameaças: ‘quem sofre é quem está na rua’ | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Há cerca de três semanas, internautas começaram a propagar ofensas e ameaças, inclusive de morte, ao Padre Julio Lancellotti em comunidades, grupos e na página do Facebook do religioso. Em uma delas, o agressor, um advogado, segundo o padre, diz “morte ao padreco”. Um outro comentarista diz “Tem que começar mandando esse padre pro inferno, e depois seus seguidores…”, sendo saudado com aplausos virtuais.

    Lancellotti tem 69 anos, dos quais quase 34 dedicados à causa dos moradores de rua e outros grupos marginalizados. Pároco da Igreja de São Miguel Arcanjo, na Mooca, região central e vigário episcopal para a população de rua da Arquidiocese de São Paulo, ele atribuiu as ameaças ao tipo de trabalho que desenvolve e à crescente onda de intolerância dos dias atuais. “O discurso de ódio sempre existiu. Mas esses intolerantes, antes, ficavam restritos, não se impunham. Nesse momento que estamos vivendo, sinto que essas pessoas se sentem livres, não tem mais o menor pudor e se sentem legitimadas para falar o que bem entenderem”, afirma o padre.

    Para ele, o fato de trabalhar com população de rua é um dos grandes causadores desse ódio. “Os moradores de rua aumentaram, isso é fato. E são diversas causas, como o desemprego, a inadimplência, essas coisas. Tem muita gente na rua e em condições de rua e a intolerância, que sempre existiu, fica mais evidente por causa dessa convivência em todo lugar: parques, áreas públicas, ruas”, analisa.

    Ameaças

    Lancellotti, com a orientação das advogadas Valdênia Paulino Lanfranchi e Juliana Hashimoto Bertin, enviou um ofício nesta segunda-feira (19/3) ao procurador-geral do Ministério Público de São Paulo,  Walter Paulo Sabella, e ao subprocurador de Políticas Criminais e Institucionais, Mário Luiz Sarrubbo, informando a respeito das ameaças e ofensas e solicitando providências. O documento traz uma explicação sobre quem é Padre Julio e detalha as atividades pastorais realizadas por ele, destacando o aumento expressivo da população de rua e a importância da luta dele para pressionar o poder público para que olhe e assista adequadamente esse grupo vulnerável. O  último censo, de 2015, fala em 16 mil pessoas, mas entidades que lidam com a causa afirmam que já chega a 25 mil. Além disso, traz prints das ameaças que vêm sofrendo. Além dos ataques diretos, há outros que o acusam de uso de drogas e alguns que sugerem que o padre “pegue os pedintes e coloque para morar na igreja” ou na casa dele.

    Assinam o ofício o arcebispo metropolitano de São Paulo, D. Odilo Scherer, o bispo auxiliar de São Paulo, D. Luiz Carlos Dias e mais de 200 outras entidades ligadas a direitos humanos e pessoas físicas que repudiam os ataques que Lancellotti vem sofrendo.

    O pároco está acostumado com pressões, especialmente da administração municipal, que lida de maneira mais direta com a situação. Em maio de 2015, ainda na gestão de Fernando Haddad (PT), Lancellotti denunciou repressão e processo de “higienização social em decorrência da especulação imobiliária”. Em setembro do ano passado, já na gestão de João Doria (PSDB), Lancellotti voltou a denunciar a truculência com que a GCM (Guarda Civil Metropolitana) e PM estavam lidando com a população de rua na região da Sé, retirando pertences e promovendo agressões com spray de pimenta. No mês seguinte, Lancellotti voltou a criticar o prefeito tucano por causa da farinata, uma espécie de farinha com sobras de alimentos, anunciada às pressas e sem qualquer planejamento, como demonstrou a reportagem da Ponte.

    Para Lancellotti, os ataques são motivados pelo ódio ao pobre e à população em situação de rua e conta com uma articulação que envolve a PM, GCM, os Conselhos Municipais de Segurança, associações de bairro e até subprefeituras. Questionado se tem medo das ameaças, que, por enquanto, estão apenas na esfera virtual, o padre diz que se sente triste. “Me causa muita tristeza o que fazem com os moradores de rua. Eles estão usando os moradores para me atingir. Eles falam cada coisa, eles xingam, eles têm muito ódio. Ainda ontem soube que  moradores de uma região aqui do centro foram agredidos de madrugada por guardas e policiais que diziam ‘você é amigo do padre, então? cadê ele?’. Eu imagino que eles não vão vir até mim. No final das contas, quem sofre é quem está na rua. São forças neoconservadoras, forças raivosas que acabam surgindo como uma onda”, analisa.

    No domingo (25/3), haverá uma passeata na região da Mooca em defesa ao padre. São grupos, entidades e pessoas que estão repudiando os ataques ao religioso. No texto de chamada para o protesto, os organizadores definem Lancellotti como uma pessoa “que dedica a vida à defesa dos mais pobres, pois sabe que os direitos humanos devem ser garantidos a todos os seres humanos, não só aos ricos” e pede: “não vamos permitir que sua trajetória de lutas e de amor seja desrespeitada”.

    Outro lado

    A Ponte procurou a prefeitura de São Paulo, bem como a Polícia Militar de São Paulo para saber qual a visão sobre as ameaças contra Lancellotti, mas até agora não se pronunciaram. O Ministério Público* afirma que recebeu a representação e abriu investigação sobre o caso.

    *Atualizado no dia 21/3, às 23h53

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