‘Palavras Cruzadas’ discute lugar de fala, empatia e resistência

    Visitantes da instalação artística são convidados a explorar uma arena virtual com depoimentos de 12 representantes de lutas diversas na área dos direitos humanos

    Da esq. para dir.: Dexter, Lourdes Barreto, Amara Moira, Carmen Silva, David Karai, Débora Silva, Edinho, Marcela Jesus, Juliana Borges, Jéssica Tauane, Shambuyi Wetu e TC Silva | Foto: Divulgação Sesc Vila Mariana

    Tudo escuro. De repente, surgem figuras projetadas nas paredes de pano uma arena criada cuidadosamente com 12 faces. Há dois bancos no centro e um lugar para quem optar por ficar em pé. Palavras vão surgindo e ecoando nesse espaço. Ao se posicionar no centro, as vozes se cruzam, vez ou outra você identifica palavras que se repetem “a gente se organiza”, “foi assim que surgiu o movimento”, “representatividade”, “luta”, “resistência”. Aos poucos você vai identificando quem são aquelas 12 pessoas a contar, cada uma, a sua história. Quando o visitante se aproxima e fica frente a frente com a projeção, em tamanho real, é que a gravação do depoimento é acionada.

    Esse é o clima da videoinstalação “Palavras Cruzadas – lugares de fala contemporâneos”, inaugurada nesta quinta-feira (21/9), no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. A obra ficará exposta para visitação até 23 de dezembro deste ano e a entrada é gratuita. Cada um dos depoimentos tem duração de aproximadamente 8 minutos e são exibidos simultaneamente. Em entrevista à Ponte, o idealizador e diretor do projeto Daniel Lima explica que nas gravações foi necessário usar um artifício técnico para chegar ao efeito desejado de que o entrevistado olhasse para o espectador. “O desafio era fazer os entrevistados olharem para a câmera o tempo todo então não poderia haver nenhum ponto de distração. Colocamos duas cabines. O entrevistado ficava sozinho dentro de uma dessas cabines, totalmente escura, e olhava só para a câmera”, explicou Daniel.

    Os participantes do projeto são: o rapper Dexter, Débora Silva, fundadora das Mães de Maio, Carmen Silva, do MSTC (Movimento Sem Teto do Centro), Marcela Jesus, do movimento secundarista, a socióloga Juliana Borges, o poeta surdo Edinho Santos, Lourdes Barreto, da Rede Brasileira de Prostitutas (RBP), a travesti Amara Moira, a youtuber Jéssica Tauane, criadora do primeiro canal de questões LGBT, o artista congolês Shambuyi Wetu, um dos articuladores do MNU (Movimento Negro Unificado), TC Silva, e David Karai, líder na Terra Indígena do Jaraguá.

    As projeções de Carmen Silva, do MSTC, e de David Karai, líder indígena do Jaraguá | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    Daniel explica que o trabalho “Palavras Cruzadas”, de certa forma, é um amadurecimento de um processo que começou com as intervenções da Frente 3 de Fevereiro (grupo que pesquisa e debate questões raciais e sociais) em prédios, estádios e outros locais públicos com a colocação de faixas com frases como Zumbi somos nós e Onde estão os negrxs?. “Por exemplo, a luta quilombola historicamente sempre juntou diferentes lutas. Ela não era exclusiva dos negros. A gente vê a herança de povos indígenas junto com negros e com brancos que não se encaixavam no sistema colonial. Então se a gente atualizar esse conceito de associações de luta, podemos começar a perceber que não são individualizadas e é essa intersecção entre elas que pode construir uma nova ideia de mundo”, explica Daniel, que dedicou o trabalho à mãe dele, a poeta Maurinete Lima, que faleceu no início do ano.

    Além de Daniel, assinam o trabalho Élida Lima e Felipe Teixeira, mas o diretor ressalta que a obra tem mãos e cabeça de muita gente. Ele ressalta que é preciso pensar a transformação social a partir da perspectiva do devir negro, que carrega a ideia de resistência, e que quando vemos essas diferentes lutas estamos olhando para grupos marginalizados que estão, para além das bandeiras, lutando para sobreviver. “Resistência no sentido de reexistir, de encontrar um espaço, uma brecha na sociedade a partir da perspectiva de como você precisa existir no mundo. E aí chegamos ao ponto de ver que a luta de classes não dá conta, por exemplo, de pensar o universo trans, o que é essa ideia de ruptura do gênero, de atravessar essa linha de cisgênero e ir para uma linha que é tão questionadora que não a toa nossa sociedade é a que mais mata trans no mundo”, provoca.

     

    Projeção de Débora Silva, fundadora das Mães de Maio | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    Daniel Lima também explica que escolheu Débora Silva, do Movimento Mães de Maio, para ficar no centro da imagem de divulgação de “Palavras Cruzadas” não por acaso. Segundo ele, Débora representa a luta de toda uma sociedade para garantir o direito básico à vida. “Ao não combater o genocídio da população negra, a gente permite um desrespeito e uma cumplicidade da polícia e do judiciário: você mata, eu não investigo e continuamos assim. As Mães de Maio denunciam justamente isso. Procuradores fizerem uma carta [após os crimes de maio dde 2006] informando que não iam investigar as centenas de mortes nas periferias de todo o estado de São Paulo. Não é mais a luta de classe, não vamos trabalhar a partir do acesso da classe C, D ao consumo. É trabalhar a partir de uma urgência muito particular que é a sobrevivência do jovem negro. E aí a gente revoluciona todo o sistema”, afirma.

    Em entrevista à Ponte, Débora Silva conta que ficou muito emocionada ao ver o resultado da instalação. “É o reconhecimento da nossa luta vindo por essa molecada. Dá orgulho a gente inspirar tanta força nessa galera jovem. É muito orgulho fazer um trabalho desse não por indicação, mas por respeito à luta. A gente não foi indicada, a gente foi respeitada. São lutas que se entrelaçam”, afirma. Para ela, a escolha do lugar também faz diferença. “Vamos lembrar que estamos dentro de um espaço que fica em um bairro de classe media alta [Vila Mariana, na zona sul de São Paulo]. Ter a voz dos silenciados exposta para todo mundo ouvir é muito lindo, muito digno. Ali estamos tratando das mais diversas violações ao ser humano. Não é direitos humanos. É direitos dos seres humanos, de todos que estamos sendo violados por esse país, principalmente pelos de terno e gravata”, critica Débora.

    Na mesma linha de raciocínio de Débora, outra participante do projeto, a travesti Amara Moira, afirma que é importante que os assuntos dessas militâncias retratadas na instalação ocupem novos espaços. “Quando a gente fala em ‘lugar de fala’ não se trata só desses grupos marginalizados falarem, mas também do outro se dar conta de que essa fala é crucial para entender a própria sociedade. Lugar de fala não é dar a voz, como se fosse um gesto altruísta. Não! É também se permitir escutar uma outra fala que ajuda a compreender todo o sistema”, pondera.

    Para Amara, apesar do recrudescimento dos discursos de ódio, cada vez mais evidenciados por causa do período eleitoral, o cenário suscita comemorações. “Acho que isso acontece por causa dos espaços que a gente vem ocupando. Quanto mais fica impossível negar nossa existência, a existência trans, o movimento contrário emerge. A gente nunca teve tanto espaço e isso eu falo para todos esses movimentos aqui representados. Por mais que a gente veja que existe um estado de coisas catastrófico, o aumento de forças reacionárias, vamos pensar que um tempo atrás não precisavam se preocupar, porque não estávamos incomodando”.

    Lourdes Barreto, uma das fundadoras da Rede Brasileira de Prostitutas, que também participa do projeto, é um pouco mais pessimista. “Eu vivi a ditadura, participei das Diretas Já, do impeachment do Collor, lutei contra o impeachment de Dilma mas estamos vivendo um dos piores retrocessos da nossa historia. A questão da violência está generalizada, o ódio, o desmonte da cultura. Nesse sentido, uma exposição como essa, que mexe com a relação de valores, concepção de sociedade, tem um sentido político muito importante”, conclui Lourdes.

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