Parada Preta: um espaço para acolhimento, emancipação e também jogação

    Evento no centro de SP reuniu negros e negras para discutir suas demandas dentro da comunidade LGBT+: ‘um corpo negro vivo é o maior ato de resistência’

    Mediador Félix Pimenta ente Erica Malunguinho (à esq.) e Aretha Sadick | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    As cadeiras enfileiradas estavam vazias e as pessoas curtiam a música que tocava. Uns dançavam, davam close e algumas ainda tímidas jogações. Era a prévia da Parada Preta. O espaço mudou quando Aretha Sadich e Erica Malunguinho se aproximaram. Debatedoras, elas não simplesmente chegaram, como esperado por todos. Ocuparam o espaço. Não só fisicamente, mas também com representatividade, resistência e mensagens – ao mesmo tempo acolhedoras e de incentivo.

    O dia, quinta-feira (20/6), é de uma semana em que se exalta a diversidade. Feriado de Corpus Christis, a data dá início às marchas da população LGBT+, sejam gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros e as diferentes identidades de gênero. Mas faltava um momento em que a negritude olhasse para si, discutisse as suas conquistas, avanços, conquistas, necessidades e demandas. Se fortalecessem com quem vivencia, entende e discute as mesmas questões históricas. Potencializadas pela questão de raça e, também, de gênero. Faltava a Parada Preta.

    Apresentadas com música e uma pequena performance, Erica e Aretha passaram para o debate. O nome da mesa, “Lutas, Conquistas e Demandas da Comunidade Negra LGBT+” , soa burocrático quando dito. A sensação muda quando as duas falam, quando a prática começa. Não há o tom de aula, de um fala e os outros apenas escutam. Há um tom de conversa rotineira, de diálogo. Embasado pelo mais alto nível de intelectualidade, reconhecimento histórico, percepção social. E, especialmente, lugar de fala.

    “Um corpo negro vivo é o maior ato de resistência. Aprendemos um milhão de coisas para estar vivos”, analisa Erica, primeira deputada transexual negra eleita no Brasil e no mundo. Integrante da Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo), levou à política a discussão sobre a população LGBT+. Criou uma Frente Parlamentar que discute e analisa as demandas discutidas naquele espaço.

    A questão ali, na Parada Preta, vista a partir negritude. “Olhar a partir de raça não é recorte, é fundamento”, posiciona-se Malunguinho, entre um gole e outro de cerveja. “São momentos tão raros, preciso aproveitar”, disso ao público. Ela soltava um e outro comentário descontraído em meio à análise. As quebras levavam leveza ao discurso. Afinal, pesado são as barreiras postas na rotina de quem estava na Parada. São pretos e pretas que passam por todo racismo institucional, potencializado pela mais cruel LGBTfobia.

    “Celebramos em junho pelo Stonewall, mesmo época em que outros movimentos ocorriam, como pelos direitos civis da negritude. Este tipo de movimento, puxado pelos brancos, só foi possível porque tinha gente preta sedimentando isso”, explica Malunguinho. “A luta negra fala por si só, sobre si, mas é uma emancipação coletiva. Em nós habita toda diversidade humana. Temos potencial para tudo”, comenta, em um discurso empoderador de autorreconhecimento para o público.

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    Aretha Sadich passou por um processo de se autoconhecer ao deixar Duque de Caxias, cidade na Baixada Fluminense. Naquele lugar, não era possível se enxergar como era, uma mulher transexual. O que foi possível apenas em São Paulo. Um processo que passou pelo entendimento da forma que era afetada pela corpolatria, um entendimento de beleza física com padrões pré-estabelecidos. “E padrão branco, no máximo moreno, de bombadões como gogo Boys, e até drags. Todos brancos. Não me via daquela forma”, relembra.

    Pensar na travestilidade ocorreu ao ter contato com a diversidade que São Paulo tem. Saiu daquele processo de construção de uma imagem que não a incorporava para ser quem é, de fato. “Esse lugar de construir a imagem, até onde nos representa? Quantos de nós estão ali? Aqui é um lugar de encontro, de pensar para além das siglas, pensar na imagem. Também estamos falando de colorismo”, cita. Negra retinta, Aretha fala sobre os tons que a Parada Preta abarca como lugar para uma reconstrução desta imagem. Feita por quem se abraça, se conforta, se ajuda na luta. Um acolhimento completo.

    “Nossas humanidades são inegociáveis”, diz Malunguinho, ciente de que não serão leis as respostas suficientes para acabar com perseguições, ameaças e mortes que ocorrem. “Comemoro que agora a homotransfobia é crime por entender que é um processo. Sou antipunitivista, mas vivemos em uma sociedade que só consegue entender as coias por meio das leis. Onde é possível colocarmos como normal precisarmos ter leis para garantir a vida? Deveria ser algo intrínseco”, prossegue a deputada.

    O momento de acolher estava plenamente contemplado. Com Erica e Aretha, o público trocou vivências entre si para seguir adiante. Provocações para gerar não apenas respostas, mas perguntas. Perguntas que contribuem para novas respostas e ações afirmativas. Encerrado o abraço fortificante, veio a jogação. Saíram as cadeiras para o espaço ser tomado por dança, conversas, lacração e ainda mais alegria.

    Rico Dalasam tomou o espaço para um pocket show. A representante do queer rap levou ainda mais representatividade e reconstrução da imagem, como dito pelas palestrantes. Levou a galera ao delírio, bem como a performance da drag Danny Cowlt e os DJs Luana Hansen, EVEHIVE, Kiara e Ana Gisele.

    Assim foi a segunda edição da Parada Preta, organizada pelo Coletivo Amem. Mais do que comemoração do que se conquistou, um espaço para também se fortalecer para o que está aí e o que virá.

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