Pioneiro, FPSP-PE propõe segurança pública popular sem aceitação da violência

    O Fórum Popular de Segurança Pública de Pernambuco foi o primeiro do gênero a surgir no país, fomentou iniciativas semelhantes em estados vizinhos e segue com a missão de tornar a defesa dos direitos humanos uma prática cotidiana

    Fórum de Pernambuco foi o primeiro a realizar encontros nos territórios para discutir segurança pública a partir de uma perspectiva popular | Foto: Gutemberg Santana/FPSP-PE/Divulgação

    Quem chegava à entrada do cemitério Santo Amaro, em Recife, naquele Dia de Finados de 2022 recebia das mãos de um grupo no local um “santinho” ilustrado com uma das chagas de Jesus Cristo crucificado. O folheto trazia uma passagem do livro bíblico de Hebreus sobre a necessidade de ter compaixão com os aprisionados e questionava o leitor: “Jesus foi preso injustamente e torturado. E os que estão presos pagando por seus crimes, também não merecem a compaixão divina?”.

    O panfleto, semelhante aos que fiéis oferecem nas calçadas para tentar cativar novos devotos às suas igrejas, não trazia, no entanto, a marca de nenhuma denominação religiosa. No rodapé, estava impressa uma chamada para as redes sociais do Fórum Popular de Segurança Pública de Pernambuco (FPSP-PE), grupo que reúne diversos movimentos sociais.

    A adesão aos santinhos típicos cristãos era uma ação do FPSP-PE para honrar sua missão que já dura quase oito anos: popularizar o debate sobre segurança pública. “A gente sempre entendeu que a discussão sobre segurança pública não pode se dar só em um ambiente técnico, militarizado, institucional, excludente. Ela precisa ser ampliada”, diz Edna Jatobá, coordenadora-executiva do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), umas das entidades fundadoras do fórum pernambucano. “A nossa primeira pegada foi juntar o povo para discutir o assunto e mostrar que é possível fazer isso de uma maneira popular.”

    Frente e verso de “santinho” distribuído pelo FPSP-PE em ação realizada durante um Dia de Finados | Foto: Reprodução

    Discutir segurança nas comunidades

    O FPSP-PE foi o primeiro do gênero a surgir no país, meses antes de uma iniciativa parecida no Ceará — hoje existem diversos deles espalhados em diferentes estados, conforme a Ponte está mostrando nesta série de reportagens em parceria com a Fundação Friedrich Ebert Stiftung – Brasil (FES).

    A experiência pernambucana surgiu em 2017, quando o estado perdeu 5.427 pessoas em decorrência de mortes violentas. Ainda naquele ano, no dia 12 de maio, movimentos sociais ligados ao campo da segurança pública e à defesa dos direitos humanos foram barrados em uma reunião sobre o assunto na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe).

    Realizaram então, do lado de fora, uma audiência própria que inaugurou o fórum. A partir daí, o FPSP-PE tomou gosto por levar o assunto para fora dos salões oficiais, realizando o que chama de pré-conferências. “A gente fez pré-conferência em universidade, no meio da rua, na calçada, em associação de bairro, em praça, nas ONGs, em igreja. Inúmeras duraram um dia inteiro, com vários momentos, divididas por eixos temáticos, para tratar de segurança pública para crianças e adolescentes, por exemplo, ou para mulheres e idosos”, conta Gerlane Simões, secretária-executiva do fórum.

    Nesse processo, as comunidades tiveram especial atenção. Foi o caso de Peixinhos, na divisa entre Recife e Olinda, onde atua o Mães da Saudade, grupo que presta apoio às mulheres da região que perderam seus filhos pela violência policial e pela ação de grupos de extermínio.

    “A participação delas é muito impactante na articulação do fórum, para discutir a violência dentro das comunidades. É dentro das comunidades que os meninos estão morrendo, que existe o tráfico pesado. Levar essas mães das comunidades para o fórum torna o debate mais real, porque uma coisa é a gente falar de violência, e outra é vivenciar ela”, diz Elisângela Maranhão, articuladora do Mães da Saudade.

    “As pessoas que militam em direitos humanos precisam estar dentro das comunidades para entender a complexidade da violência, entender como ela se enraiza nas comunidades. A gente tem os dados, claro, mas só vivenciando a comunidade é que conseguimos transformar essa realidade”, afirma Elisângela.

    O FPSP-PE publicizou dados sobre letalidade policial e cobrou as autoridades por uma política de segurança pública com respeito aos direitos humanos | Foto: FPSP-PE/Divulgação

    Da articulação local para a regional

    Além dos encontros, o grupo avançou ao longo dos anos na publicização dos dados sobre letalidade violenta e na cobrança de autoridades. “O fórum conseguiu pressionar o Estado a retomar o Conselho Estadual de Segurança Pública e Defesa Social, imprensá-lo para que mudasse a metodologia de divulgação dos dados e criasse um indicador sobre mortes praticadas pela polícia, o que antes não tinha, garantir a participação da sociedade civil no plano Juntos Pela Segurança, da [governadora] Raquel Lyra, embora a gente ache que não tenha surtido tanto efeito esse plano”, afirma Edna, do Gajop.

    Uma das maiores conquistas foi ainda ampliar o debate: hoje cada estado nordestino tem um fórum para chamar de seu. Quase todos eles compõem uma iniciativa maior, o Fórum Popular de Segurança Pública do Nordeste (FPSP-NE), a única frente regional deste tipo no país, gestada a partir de uma conferência feita em 2019, em Recife — o fórum de Sergipe é o único da região que não faz parte do grupo. Em 2023, um segundo grande encontro foi feito no Piauí.

    Tanto no fórum nordestino quanto no pernambucano, há um núcleo duro de entidades que tomam a frente da coordenação. No FPSP-PE, são oito que têm essa atribuição, mas mais de 50 costumam se juntar às pré-conferências no estado e conferências regionais.

    A iniciativa de Pernambuco se reúne ao menos uma vez por mês e em situações de crise, como quando é exigida mobilização frente a algum caso de violação de direitos humanos. Além disso, o fórum ainda partilha hoje de objetivos comuns aos do FPSP-NE: os integrantes do grupo que agrega toda a região estão dedicados atualmente a formular um plano de incidência política e outro de comunicação.

    “O desafio hoje é saber se comunicar, e não só para o Fórum, porque estamos em uma guerra de comunicação. A extrema-direita tem tudo o que quer, porque consegue alcançar o mundo. Então, a gente tem de pensar em estratégias para chegar a toda a sociedade civil”, diz Gerlane.

    Integrantes do FPSP-NE fazem encontro em Pernambuco para discutir plano de comunicação e de incidência política | Foto: Divulgação

    Incidir sobre a vida das pessoas

    Edna diz que a ação com os “santinhos” na porta do cemitério de Recife se inseriu neste contexto: o fórum tenta disputar, com diferentes estratégias de comunicação, um debate monopolizado pela extrema-direita nos últimos anos, que se valeu do fundamentalismo religioso para vender um discurso punitivista e armamentista até entre cristãos, cujos preceitos biblícos são de perdão e amor ao próximo.

    “Há ainda muitos resquícios dessa política armamentista do governo anterior [Jair Bolsonaro], dessa aceitação da violência como modus operandi. Temos então uma dificuldade maior porque esse fundamentalismo religioso está impregnado nas camadas mais pobres da população. E é justamente nesse espaço em que queremos disputar a narrativa, discutir segurança popular”, afirma Edna.

    “A cada vez que a violência aumenta, fica mais difícil discutir alternativas e soluções no campo da segurança pública alinhadas ao Estado Democrático de Direito, porque as pessoas vão assimilando essa coisa da extrema-direita de querer fazer justiça com as próprias mãos, de querer dar carta branca para os policiais fazerem o que quiserem. Então, é um desafio grande fazer essa disputa de narrativa.”

    Para Elisângela, do Mães da Saudade, o desafio da comunicação se soma à necessidade de formar novos quadros: “Precisamos comungar mais da educação popular dentro das comunidades, para fortalecer a base, ter também uma base política. Precisamos trazer a juventude para ter um vereador, um deputado. A maioria das pessoas que participam do fórum são mais maduras, de mais de 40 anos. Precisamos ter mais juventude, porque os jovens que são vitimados pela violência letal”.

    Ela diz ainda que o FPSP-PE não pode perder de vista sua primeira vocação: ser popular. “Muitas vezes o fórum fica em uma discussão com os equipamentos sociais, o pessoal da lei, o Ministério Público, mas acho que precisamos levá-lo para fora disso, trazer a juventude”, reforça Elisângela.

    “Direitos humanos é prática. Não adianta a gente ficar na teoria, não. Os dados são importantes, mas é mais importante fazermos a diferença na vida das pessoas naquele momento.”

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