PM aponta arma e enquadra advogado negro: ‘foi a cor da minha pele’

Alexandre Marcondes sofreu racismo policial em bairro de classe média alta da capital paulista e diz que os vizinhos o pressionaram a não denunciar a ação ilegal

Alexandre Marcondes, 45 anos, colocou uma touca para se resguardar do frio e uma máscara para se proteger do coronavírus e saiu de casa para ir à padaria na manhã do último domingo (2/10). Atravessou o portão, deu alguns passos. E teve uma arma apontada contra o seu rosto por um policial militar do estado de São Paulo.

Negro, o advogado não tem dúvidas que o motivo da abordagem truculenta do agente público contra ele foi motivada por racismo. Segundo o Censo de 2010, a região onde fica o bairro do Alto da Lapa, onde Alexandre mora, é a quarta com o menor número de habitantes negros da capital paulista, com apenas 15,4% de pretos e pardos em seu território. 

Imagens de câmeras de segurança do local mostram que um rapaz passa na frente de um casal, enquanto o advogado caminha a passos lentos quando uma viatura da Polícia Militar passa por ele. Alexandre garante que nesse momento chegou a cumprimentar o PM que dirigia o veículo. O vídeo mostra que segundos depois o policial que estava no banco do carona desce com a arma apontada para ele.

“Coloquei as mãos na cabeça e ele fez uma revista completa e verificou que eu não estava armado. Eu questionei a motivação daquele abordagem e ele disse que eu estava em atitude suspeita. Só que ele não parou o casal na minha frente, apenas eu. Falei que a atitude suspeita era a cor da minha pele”, relembra Alexandre Marcondes.

“Não é comum no bairro que eu moro pessoas negras andarem pelas ruas, ainda mais sendo moradores. Grande parte das pessoas negras que passam por aqui são trabalhadores ou prestadores de serviço. As pessoas daqui não estão acostumadas a verem uma pessoa negra vestida como elas e fazendo a mesma coisa que elas.”

Até aquele momento, o homem abordado pelos policiais ainda não tinha se identificado como advogado. Após mostrar a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ele relata que o tom do policial mudou e que o agente sugeriu uma conversa “de homem para homem”. O PM chegou a afirmar a Alexandre que era melhor ele ter a arma de um policial apontada para ele do que a de um bandido. “Eu não quero nenhuma arma apontada contra mim, seja ela de quem for. As duas atiram da mesma maneira”, afirma.

Vizinhos contra denúncia

Após o episódio do último domingo, Alexandre, que mora há sete anos no bairro e comprou a casa que mora atualmente em 2020, está sendo acusado pelos vizinhos por uma suposta diminuição das rondas feitas pela PM na região. O advogado e sua esposa, que também é advogada, fizeram uma denúncia na Corregedoria da Polícia Militar, além de solicitar apoio da OAB.

“Aqui é uma região que as pessoas andam muito de carro e pouco caminham pelas ruas, então poucas pessoas se conhecem pessoalmente”, comenta Alexandre. “No grupo do WhatsApp da vizinhança disseram que eu estava me vitimizando e pediram para eu não fazer denúncia na Corregedoria, pois isso iria diminuir o policiamento na região”.

O advogado Alexandre Marcondes | Foto: Arquivo pessoal

“Um dia depois, o vídeo da abordagem surgiu no grupo e um dos primeiros comentários que fizeram era se homem que foi enquadrado pela polícia era bandido mesmo ou só um negro em trajes esportivos. Confesso que não estou impressionado com a reação dos meus vizinhos.”

O advogado deixou de participar do grupo de mensagens e diz que a sua esposa, que é branca, ainda tenta argumentar com as outras pessoas da comunidade que ele foi e está sendo vítima de racismo. “Aqui nesse bairro, somos como alienígenas”, lamenta.

Quando mais jovem, o corintiano Alexandre costumava assistir os jogos do seu time no estádio e era alvo da constante truculência da PM paulista contra torcedores. Também já sofreu com olhares enviesados de policiais que se se deparavam com um homem negro dirigindo um bom carro nas abordagens de trânsito. Porém, essa foi a única vez que teve uma arma apontada contra si.

“A gente é ensinado desde cedo a se portar nessas situações. Eu sempre ouvi que nesse tipo de abordagens a gente não pode correr se não pode ser pior. Pode ver no vídeo que eu desacelero o passo quando vejo o policial. Eu até entendo que as abordagens fazem parte do trabalho policial, mas nada justifica aponta uma arma para alguém que não oferece nenhuma ameaça.”

Ação ilegal

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou, em abril deste ano, que não podem ser feitas revistas pessoais apenas baseadas nas impressões do policial sobre a aparência ou “atitude suspeita” de alguém.

Em seu voto, o relator do acórdão (decisão tomada por um grupo de magistrados, no caso ministros do STJ), ministro Rogerio Schietti Cruz, afirma que as maiores vítimas das abordagens policiais são pessoas pobres e negras e afirma que isso pode levar a sérias violações de direitos.

De acordo com o STJ,  a suspeita do policial precisa ser justificada “pelos indícios e circunstâncias do caso concreto” de que a pessoa tenha drogas ou armas e não pode servir como desculpa para autorizar “buscas pessoais praticadas como ‘rotina’ ou ‘praxe’ do policiamento ostensivo”.

Pai de duas crianças negras, de 3 e 6 anos de idade, Alexandre Marcondes e a esposa falam abertamente sobre racismo com elas. Durante o enquadro, Alexandre afirma que teve dois receios: “O primeiro, claro, era de morrer com o disparo que podia ser dado pelo policial. O segundo, como estava a poucos metros da minha casa, é que a minha filha mais velha pudesse pelo que eu estava passando”.

Outro lado

A Ponte pediu um posicionamento da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo sobre o procedimento dos policiais contra o advogado. A pasta informou que a resposta seria dada pelo Centro de Comunicação Social da PM. Até a publicação deste texto não recebemos nenhuma resposta.

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