‘PM não dá tiro e usa bomba em funk na porta de faculdade’, diz MC que tocou na casa de Doria

    Contratado em 2017 para cantar no aniversário do filho do governador João Doria, MC Pikeno critica diferença de conduta da PM na favela e em bairros ricos

    MC Pikeno vive carreira solo desde o fim da dupla com Menor, em 2016 | Foto: Divulgação

    Aos 30 anos, Cleiton Rocha, mais conhecido como MC Pikeno, tem metade da vida dentro do funk. O autor de “Sou da favela, ela é do asfalto” ficou chocado ao saber do massacre de Paraisópolis, quando nove pessoas morreram na zona sul da cidade de São Paulo. Em seguida, o sentimento foi de revolta com a versão dada pela Polícia Militar e o governo do estado, comandado por João Doria (PSDB).

    As ações violentas do Estado, conta Pikeno, cresceram junto com o movimento, que deixou de ser apenas das quebradas e entrou em classes sociais ricas. Em 2017, ele foi contratado para fazer um show no aniversário de 23 anos de um dos filhos de Doria. Uma reportagem da Veja SP, contou detalhes da festa que aconteceu na mansão da família nos Jardins, um dos bairros mais ricos de São Paulo, e que teve até uma fonte de catuaba.

    Pela proximidade com o filho de Doria, MC Pikeno, que afirma não conhecer o governador pessoalmente, preferiu não abordar o tema na entrevista.

    Para o MC, ações policiais truculentas como a que vitimou os nove jovens no dia 1º de dezembro são rotina no movimento do funk, mas específicas da quebrada. Ele considera impensável essa situação acontecer em um bairro rico. “Infelizmente, para o policial o cara que está curtindo um funk dentro da favela é maloqueiro, marginal, mas o cara que está curtindo uma rave, um fluxo na porta de uma faculdade, não é marginal”, critica o MC.

    “Eles [PM] não vão chegar na porta de uma faculdade com fluxo e jogar bomba, dar tiro, fazer todo mundo correr porque se tiver o filho de um desembargador e acontecer alguma coisa vai parar o Brasil”, pondera.

    Ele não acredita que o governo Doria tenha dado ordens expressas para acabar com as festas na porrada. “Acho que não vem dele acabar com os bailes dessa forma, nenhum ser humano é capaz de dar tal ordem para isso. Isso vem de quem tem o poder na rua, quem tem: jovem ou polícia armada? Está fardado e armado, faz o que quiser. Para mim foi uma ação desastrosa da PM”, comenta.

    Confira:

    Ponte – Como você encarou o massacre de Paraisópolis?

    MC- Pikeno – Com tristeza profunda, mesmo. Tenho 15 anos de funk desde que era dupla com o Menor, cantamos muito em baile de comunidade. Eu já corri muito de polícia, presenciei muitos ataques quando eu ia cantar. Tive que descer do palco correndo por causa de policia e foi com tristeza profunda que recebi a notícia. Foram nove vítimas e não foram vítimas do baile na minha visão, foram vítimas da PM, uma ação desastrosa. Eram jovens de 16 anos que nenhum tinha passagem. E a forma com que eles explicam nos meio de comunicação foi o que me deixou mais revoltado. Estão passando que foram pisoteados pela invasão da polícia. Eu posso falar porque já presenciei, já vi a ação como é, de eu estar cantando e eles entrarem na favela atirando, bala de borracha, dando cassetada, bomba… Minha sorte é que quando estive fazendo shows conseguimos correr.

    Ponte – Era comum presenciar esse tipo de ação?

    MC Pikeno – Não tem outra explicação [para as mortes]. Eles [polícia] não chegam e pedem para todos saírem calmamente. Chegam, sim, batendo, jogando bomba de gás, dando cassetada, dando tiro de borracha. É assim a ação. Agora, o que pesou foi que tinha filmagem. Quem vai denunciar a polícia? Ninguém vai, não. Só que as imagens denunciaram e querem apurar. Apurar? Já vem de tempos! Se exonerarem alguns policiais que estavam nesses vídeos, vêm outros e fazem a mesma coisa. Ninguém vai entrar em uma favela para acabar com um baile funk pedindo licença para todo mundo sair. Se querem acabar com baile, é só colocar um monte de viatura na favela antes e não tem baile. Se fizessem em Paraisópolis não teria tido baile e nem teria morrido nove jovens. “Ah, tem que acabar com baile”. O que mais me revolta é que o pobre, o favelado, tem o que para fazer? Ele não tem dinheiro para ir no show de uma Ludmila, Anitta, ele tem, dentro da comunidade, o baile de favela que eles mesmos organizam para curtir, tirar a onda deles e onde chama a atenção de muita gente de fora que vai para dentro do baile.

    Funkeiro começou a carreira em bailes de favela e agora dá shows em casas noturnas | Foto: Reprodução/Facebook

    Ponte – Por que os bailes de favela chamam tanta gente de fora?

    MC Pikeno – Justamente porque o movimento funk nasceu dali, a raiz do funk está ali. Não vou dizer para você que é coisa certa chegar em um baile de favela e ver garoto de 14 anos baforando um lança, ver menina de 13 fumando maconha, isso é errado e, por estar no funk e por ter filho, posso falar. A molecada de hoje em dia quer tirar a onda deles e tem o baile não só para eles curtirem, mas para aquela senhora que vende o produto e não pode fazer isso no centro de São Paulo porque não tem alvará e tomam a mercadoria dela. Elas vendem o refrigerante delas no baile.

    Ponte – Qual apoio falta para o funk?

    MC Pikeno – O funk é cultura, não é criminalidade. “Baile de favela é regado a droga”. Gente, droga já existe na favela e nas ruas antes dos bailes, as motos e carros roubados que falam ter recuperado em baile, isso já existia antes. Não podemos colocar a culpa toda no baile. Tem que ter iniciativa do governo, pega um galpão abandonado e, em vez de levantar prédio, monta o baile dentro, de graça, para o pessoal curtir. Pensam em acabar com o baile em uma ação totalmente desastrosa e depois entrar nos meios de comunicação dando as mesmas desculpas de sempre.

    Ponte – Como vê a versão de que as mortes aconteceram depois que uma moto atirou nos policiais e eles a perseguiram?

    MC Pikeno – Toda ação com preto, pobre, a primeira coisa é: passou um carro ou moto, furou o bloqueio atirando e foram atrás. Cadê imagens da moto que furou o bloqueio? Geralmente as Rocams andam com uma câmera GoPro no capacete. Cadê? Vi falando que foi num raio de 400 metros essa fuga. Como que em 400 metros chegaram no baile e não tem nada sobre isso, alguém dizendo da moto, e não tem uma testemunha? Então a gente tem que aceitar a desculpa da polícia, sendo que tem um monte de prova contra eles do que fazem nos bailes, o que fizeram nesse baile, o tanto de jovens que morreram e não tem nada da moto? O povo novamente é obrigado a acreditar na desculpa que eles deram? Isso é errado. O que precisa ser apurado mesmo é tudo o que a PM de São Paulo vem falando em relação a isso, quando morreu um pobre, um favelado. É triste demais. Para as famílias muito mais, para os amigos, e para o movimento também.

    Clipe da música “Sou da Favela, Ela é do Asfalto”, tem mais de 39,9 milhões de visualizações no YouTube | Foto: Daniel Alves/KondZilla

    Ponte – Você sente diferença na atuação da polícia nos bailes funk nos últimos anos?

    MC Pikeno – Não é de uns anos para cá. Isso aí 10 anos para trás já via acontecendo. Só que hoje, pelo o funk estar muito forte, a molecada hoje com 5, 7 anos já curte, o movimento está maior, não está como erra 15 anos antes. Infelizmente, para o policial o cara que está curtindo um funk dentro da favela é maloqueiro, marginal, o cara que está curtindo uma rave, um fluxo na porta de uma faculdade, não é marginal. Eles [PM] não vão chegar na porta de uma faculdade com fluxo e jogar bomba, dar tiro, fazer todo mundo correr porque se tiver o filho de um desembargador e acontecer alguma coisa vai parar o Brasil. Agora, na favela o povo não tem voz para fazer com que os responsáveis paguem. O certo é a voz do povo ser maior que a deles, quem para o salário deles é o povo. Eles estão ali para servir a população.

    Ponte – Como encara a versão do governo de lamentar as mortes, mas nos últimos anos ter investido na repressão aos bailes?

    MC Pikeno – Em relação a reprimir, se está tendo muita reclamação de vizinho, roubo de carro, tudo isso, se quer reprimir, reprima da forma certa. Como falei: coloca as viaturas dentro da favela antes de começar o baile e não vai ter. Só que o funk é cultura, cria alguma coisa para eles não deixarem de curtir o baile deles. Tudo o que a PM falou sobre isso, o que o governo falou sobre isso… É triste para mim, eu que estou há tanto tempo no movimento, foi um sentimento de indignação e tristeza. Ali são eles falando. Coloca eles e o povo falando do lado, quem está de prova com o que aconteceu. Acredito que o governador João Doria, muitas vezes não sabe que a PM está no baile batendo em jovem, acabando com baile batendo. Acho que não vem dele acabar com os bailes dessa forma, nenhum ser humano é capaz de dar tal ordem para isso. Isso vem de quem tem o poder na rua, quem tem: jovem ou polícia armada? Está fardado e armado, faz o que quiser. Para mim foi uma ação desastrosa da PM. Pergunta quantas armas eles acharam naquele baile. Nenhuma. Já que o baile é regado a drogas, pergunta quantos quilos acharam nesse baile. Eles não acharam porque não foram para acabar com o tráfico de drogas, foram para acabar com o funk. O tráfico já está ali, se quisessem acabar entravam na favela antes e tinham acabado. O que mais me revolta é tudo ser relacionado ao funk.

    Ponte – De toda questão negativa ser jogada ao funk…

    MC Pikeno – Isso! Tem em todos os gêneros musicais, que falam também o que o funk fala. “Mas tem gente que é induzida”. Como que é induzido pelo funk? Eu nunca fui. Eu canto e escuto. Meu filho tem 9 anos, ele escuta funk, sou um pai que conversa com ele. A pessoa escuta rebola, rebola e vai estar lá rebolando não sei aonde, rebolando na pica e não sei o que porque ouviu a música. Ela está lá porque quer dançar o ritmo. Muitas das letras, isso comprovei conversando com uma pá de jovem que curtem hoje, tenho 30 e conversei com gente de 15, 16 anos, as meninas não sabem nem o que a letra está falando, não prestam atenção que está falando que ela é uma piranha, que é isso, é aquilo. Estão ali pelo envolvimento da batida, é aquilo que faz ela dançar. Não é a letra, é a batida. Isso que faz o pessoal curtir hoje ainda mais o funk.

    Antes da carreira solo, MC Pikeno fazia dupla com MC Menor, autores do hit “Toda Toda”| Foto: Reprodução/KondZilla

    Ponte – Além dos galpões, o que acha que poderia ser feito para dar suporte ao funk e evitar um novo massacre?

    MC Pikeno – Creio que em todas as favelas existem ONGs que procuram o melhor para quem está ali dentro, os moradores, as crianças e tudo mais. Isso deveria ser algo fechado juntamente com o governo para eles criarem espaços. São Paulo é tão grande, tem tanto espaço… Tem vários prédios de fazem em áreas isoladas, tipo como fazem com raves, só que é difícil ver na capital, é mais no interior. Faz o mesmo que fazem com as raves aqui em São Paulo. Põe entrada franca para um favelado de Paraisópolis curtir, para a senhora vender o refrigerante dela, a PM fica na porta na revista, tem banheiro químico e vamos fazer isso em prol da cultura.

    Ponte – A criminalização do movimento funk aumentou ou é assim desde sempre?

    MC Pikeno – Na verdade, a criminalização do funk não é questão dela ter aumentado. O movimento cresceu muito e hoje já entra em todas as classes sociais, antes era mais a comunidade. Falo porque na época que era dupla, em 2010, não pisávamos na classe alta, média-alta. Fomos pisar em 2014 depois de “Toda Toda”. Conforme o movimento cresceu e ficou mais visado, a criminalização aumentou. O movimento tem vários tipos: funk da favela, funk consciente, funk mais sensual, funk pop. Conforme o movimento desse funk mais sensual foi crescendo cada vez mais, a criminalização foi aumentando com isso. Muitos pais escutam e falam que não é funk para o filho escutar, olha o que falam na letra. Volto a falar: muitas vezes o jovem está ouvindo e nem presta atenção na letra, está dançando para tirar a onda dele. E você pode comprovar: se for em uma balada da classe média alta vai ver filha de advogado, de desembargador, jovens formados que estão ali escutando a mesma coisa que toca na favela e tão dançando e não estão nem ligando para a letra. Vão chegar em casa e não vão nem lembrar do que a letra estava falando. Se o pai ouvir, não vai querer que o filho ouça mais. O movimento é esse, não é um movimento de ladrão, como escuto e li debatendo com uma pessoa. Não é um movimento de bandido. É um movimento de pobre, que fez crescer e gerou emprego. Quantas pessoas desempregadas, quantos jovens o funk não tirou da favela e vem tirando cada vez mais, porque o movimento só vem crescendo? Só vem gerando emprego. Só que, para o governo, isso não significa nada. É mais viável ir lá, terminar com tudo do jeito deles e pronto. Isso é a revolta.

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