PMs são presos por suspeita de atearem fogo em homem negro no RS

Família denuncia que vizinhos viram Juliano Maximiliano Fialho sair de casa em chamas pedindo ajuda: “quando cheguei, só deu tempo de ele dizer que foram os brigadianos”, conta parente; vítima morreu em 10 de fevereiro

Juliano Maximiliano Fialho tinha 37 anos | Foto: Arquivo pessoal

“Quando foi fazer o velório, a gente não podia deixar o caixão aberto porque o rosto estava muito feio, dava para ver o grau de como estavam as queimaduras no rosto dele”, lamenta uma familiar de Juliano Maximiliano Fialho, de 37 anos. “Ele ainda sofreu sete dias no hospital. Ninguém merece ser queimado vivo”, prossegue ela, que vamos chamar de Maíra porque prefere não ser identificada nem ter o parentesco revelado por medo de represálias.

Ela lembra da ligação de uma vizinha na madrugada do dia 3 de fevereiro. “Ela ligou falando que ele saiu [de casa] pedindo ajuda, ela ainda tentou jogar água nele para amenizar, mas não adiantou porque as queimaduras estavam muito profundas”, conta. “Quando a gente chegou, só deu tempo de ele dizer que foram os brigadianos e, em seguida, não conseguiu falar mais nada porque desmaiou”, relata. Brigadianos são os policiais da Brigada Militar (BM), como é chamada a Polícia Militar no Rio Grande do Sul.

Dali, Juliano foi levado por moradores da região para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) 24h da cidade de Cachoeirinha, na região metropolitana de Porto Alegre, e depois transferido para o Hospital de Pronto Socorro da capital gaúcha, onde faleceu em 10 de fevereiro. A morte foi classificada como “violenta” e causada por insuficiência circulatória devido a uma infecção generalizada decorrente das complicações das queimaduras que atingiram grande parte do seu corpo.

Segundo a família, Juliano era usuário de drogas há mais de 10 anos e, após a morte da mãe, passou a morar sozinho na residência no bairro da Vila Anair, em Cachoeirinha. “Depois que ele se separou da mulher dele e ela levou o filho, ele começou a usar pó e foi se afundando”, lamenta Maíra. “A gente tentou tirar ele de tudo, mas não teve como.”

Viatura e dois policiais aparecem em frente à casa de Juliano Fialho às 3h24, de 10 de janeiro de 2023, um mês antes de morrer por causa das queimaduras | Foto: Reprodução

Ela afirma que ele nunca brigou, não estava trabalhando, mas ajudava o pessoal do bairro consertando eletrodomésticos. “Ele era usuário, mas não incomodava ninguém”, diz.

A parente relata que a casa dele “acabou virando ponto para ele usar droga com outros usuários” e que frequentemente a polícia ia ao local agredí-lo. “A gente já estava esperando que algo de pior fosse acontecer”, denuncia. À Ponte, Maíra enviou imagens de câmeras de monitoramento que mostram uma viatura com dois policiais em frente à casa de Juliano nos dias 10 de janeiro de 2023, 28 de outubro de 2022 e 17 de outubro de 2022. Ela afirma que são os mesmos policiais suspeitos de terem ateado fogo nele.

Quatro policiais militares do 26º Batalhão de Polícia Militar (BPM) são suspeitos de terem participação no crime. Dois deles por incendiar a vítima: os soldados Patrick França Risson e Luis Paulo Bosi da Silva, que tiveram a prisões temporárias (de cinco dias, prorrogáveis por mais cinco) decretadas pela juíza Camila Oliveira Maciel Martins, da 1ª Vara Criminal de Cachoeirinha do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), na sexta-feira passada (17/2).

O pedido foi feito pela Corregedoria da BM à 2ª Auditoria da Justiça Militar, que entendeu que o caso deveria ser remetido à Justiça Comum por se tratar de um possível homicídio qualificado, ou seja, de um crime doloso contra vida cuja competência de investigação e julgamento, segundo a Constituição Federal, é de um tribunal civil e não militar.

Denúncias feitas por moradores de Cachoeirinha nas redes sociais de que policiais haviam ateado fogo em Juliano fizeram a Corregedoria apurar o que aconteceu por esse viés. De acordo com a investigação do órgão, obtida pela Ponte, os soldados fizeram um boletim de atendimento, tipo de registro interno da corporação, afirmando que às 4h59 do dia 3 de fevereiro viram um usuário de drogas, que seria Juliano, abaixado em frente a uma residência que seria conhecida como ponto de tráfico e que o viram com uma lesão por queimadura no rosto e no ombro.

Os brigadianos teriam lhe perguntado se não queria ser levado a um pronto-socorro, o que teria sido negado por ele. Juliano ainda teria dito, na versão dos PMs, que pessoas apelidadas como “Dudu Toti” e “Uilian” seriam os agressores que o queimaram.

Contudo, Juliano deu entrada na UPA duas horas antes, às 2h57, daquele dia. Segundo a Corregedoria, o boletim médico informava que ele foi socorrido por “populares” até a unidade e que estava “gemente”, o que poderia indicar que ele teria sido ferido recentemente.

Além disso, o GPS da viatura da dupla registrou horário diferente da ida até a casa de Juliano. Primeiro, estacionou na Rua Santa Rosa, onde a vítima morava, às 1h49 e deixou o local às 2h07. Depois, às 2h27, retornou “com velocidade baixa, cerca de 12 km/h, na frente do referido local”.

Outro ponto que está sendo investigado é o motivo de os soldados terem se deslocado sem autorização para “supostamente dar apoio” a uma viatura dos policiais Higor Ferreira Araujo e Gabriel Florentino Goldani, do mesmo batalhão, por volta das 3h15, o que havia sido pedido via telefone pelo PM Luis Paulo Bosi da Silva.

Assim, além dos pedidos de prisão, a Corregedoria pediu a quebra do sigilo dos celulares dos policiais e busca e apreensão. Familiares de Juliano também foram ouvidos no inquérito policial militar.

O Ministério Público concordou com as solicitações da Corregedoria em sua manifestação ao TJRS, destacando ainda que os PMs, se continuassem em liberdade, poderiam atrapalhar a produção de provas e gerar “temor” às testemunhas.

“A materialidade do delito está comprovada pelo registro de ocorrência, certidão de óbito e fotografias anexas ao feito, as quais evidenciam o falecimento da vítima que veio a óbito em razão de queimaduras recentes, indicando que estas foram causadas no mesmo lapso temporal em que efetuada a abordagem policial”, argumentou o promotor Thomaz de La Rosa da Rosa.

A juíza Camila Martins considerou que existem indícios suficientes para decretar as prisões dos dois PMs, as quebras de sigilo e as buscas e apreensões nas casas e armários no batalhão dos quatro. “Com efeito, os elementos informativos colhidos apontam o envolvimento de policiais militares no homicídio de Juliano. As imagens das câmeras de monitoramento, a localização do veículo usado pela guarnição composta por eles, os relatos das testemunhas, o registro de ocorrência realizados por eles mais de duas horas após a entrada da vítima no hospital indicam a grave autoria do crime sob análise, cometido, registra-se, com requintes de crueldade”, escreveu a magistrada na decisão.

Ajude a Ponte!

À Ponte, o delegado André Lobo Anicet, titular do 2º DP de Cachoeirinha e responsável pela investigação, disse que o caso chegou até ele na sexta-feira passada e, por causa do feriado de Carnaval, ainda vai iniciar diligências, como buscar testemunhas e ouvir familiares. “Eu pedi a prorrogação da prisão temporária [mais cinco dias] em concordância com o que a Corregedoria fez até agora”, disse. De acordo com ele, as prisões de Patrick Risson e Luis Paulo da Silva já foram cumpridas.

Maíra afirma que a família está atrás de imagens do dia do crime e que não teve ainda acesso ao que a Corregedoria produziu e conseguiu compilar, mas viu policiais do órgão buscando testemunhas e ouvindo pessoas. “Eu espero que tenha justiça”, diz.

O que diz a Brigada Militar

A Ponte procurou a Corregedoria da BM, que disse que o Comando de Policiamento Metropolitano seria o responsável por responder os questionamentos. Porém, o órgão não retornou ao contato. Também procuramos a Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul que disse que a BM iria responder as perguntas da reportagem.

No dia 21 de março, o corregedor-geral da BM, coronel Vladimir Luís Silva da Rosa, disse que o afastamento dos policiais “é cautelar e assecuratório da hierarquia e disciplina, bem como visa resguardar a integridade da apuração dos fatos” e “por tempo indeterminado conforme pertinência da apuração dos fatos seja na esfera administrativa ou judicial”.

Ele também apontou que a região onde Juliana morava “era alvo de solicitações de intervenções policiais por estar caracterizado como ponto de consumo de entorpecentes, bem como de comércio dos mesmos, o que por vezes pode ter demandando a intervenção de agentes policiais militares”.

“Todas as participações no cenário de crime estão sendo investigadas, ora entre o expediente da Polícia Civil do RS, ora no Inquérito Policial Militar, não estando conclusas as investigações, portanto, sem definição dos indiciados”, declarou.

A reportagem não localizou possíveis defensores dos PMs que foram presos nem dos outros citados.

Reportagem atualizada às 18h34, de 21/3/2023, para incluir resposta da Corregedoria da BM.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude

mais lidas