PMs têm ‘faro aguçado’ para decidir quem é bandido, segundo desembargador de Santa Catarina

Magistrado afirma que é da essência da função do policial a aptidão para ‘separar o joio do trigo’. “Pressuposto artificial para justificar abordagem discriminatória e ilegal”, diz advogado criminalista

O desembargador Luiz Antônio Zanini Fornerolli, do TJSC, negou habeas corpus sob a alegação de que PMs têm faro aguçado. Foto: Cleiton Ferrasso/ TJSC

O desembargador Luiz Antônio Zanini Fornerolli, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, negou habeas corpus para uma mulher acusada de tráfico de drogas sob a alegação de que PMs têm faro aguçado para diferenciar pessoas que “aparentam ou não estar dotadas de boa-fé”. 

“Aliás, é preciso pontuar que o policial militar, diferentemente da maior parte dos civis, é profissional altamente treinado no combate ao crime. É da essência da sua função possuir a aptidão para rapidamente ‘separar o joio do trigo’, possuindo faro severamente aguçado para distinguir agentes que, por determinadas manifestações de comportamento, aparentam ou não estar dotados de boa-fé”, diz a decisão  do dia 31 de janeiro, em que negou o pedido de habeas corpus.

No processo, a defesa diz que o enquadro feito pela Polícia Militar ocorreu sem um mandado judicial e sem uma “fundada suspeita” que justificasse a revista no carro em que ela estava junto a um homem e um adolescente. 

No veículo, segundo os PMs, foram encontrados 3,4 gramas de maconha, 19,1 gramas de cocaína, 55 comprimidos de ecstasy, 7,60 gramas de MD e um frasco com 15ml de lança perfume.

A polícia também localizou com o grupo pouco mais de R$ 2 mil em notas diversas. O casal, que está solto, teve denúncia oferecida em 10 de dezembro de 2021 pelo Ministério Público de Santa Catarina pelo crime de tráfico de drogas _com aumento de pena por envolver menor de idade.

O caso aconteceu por volta das 00h30 de 29 de fevereiro de 2020, no bairro Humaitá de Cima, em Tubarão, cidade do sul do estado de Santa Catarina. 

Segundo o processo, os policiais envolvidos disseram que estavam em outra ocorrência quando o veículo ocupado pelo trio passou pela rua Roberto Zumblick em “atitude suspeita”, tendo-lhes chamado a atenção. Segundo eles, a velocidade do carro estava acima do normal, o que teria desencadeado a abordagem policial com a revista do carro. 

No boletim de ocorrência, o PM Flávio Nestor Ramos Júnior afirmou que fazia ronda atrás de um veículo que tinha fugido de uma abordagem policial, quando, segundo ele, outro carro com as mesmas características do veículo procurado passou “atitude suspeita”.

Sem detalhar quais as atitudes, Flávio diz que, por conta disso, foi realizada a abordagem, além dele estavam os PMs Gabriel Nunes Braga, Raul da Silva Machado, Jaime de Bem e Thiago Damazio da Silva, todos do 5º Batalhão da PM de Tubarão.

No habeas corpus em que pediu a nulidade das provas e a absolvição da mulher envolvida no caso, o advogado Henrique Falchetti apontou que a permissão para a revista pessoal – à qual se equipara a busca veicular – deve ocorrer quando, “decorre de fundada suspeita devidamente justificada pelas circunstâncias do caso concreto de que o indivíduo esteja na posse de armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência”, o que não aconteceu neste caso. 

Segundo ele, “a revista da paciente foi feita pela guarnição da PMSC, com base na ‘atitude suspeita’ e, em nosso sentir, não foi demonstrada a existência de fundada suspeita de posse de corpo de delito exigida pelo artigo 244, do Código de Processo Penal, motivo pelo qual se deve reconhecer a ilicitude da apreensão das drogas e demais objetos e, por consequência, de todas as provas derivadas.” 

Apesar da liminar negada pelo desembargador, o mérito do pedido será analisado apenas no dia 23 deste mês. 

Mesma justificativa em outro processo

Num outro processo acessado pela reportagem, o desembargador Luiz Antônio Zanini Fornerolli também negou um pedido de habeas corpus valendo-se do mesmo argumento.

No caso, um casal suspeito de tráfico de drogas foi abordado na Avenida Vilson Lemos, na cidade de Tijucas, em Santa Catarina. Homem e mulher estavam no pátio do Posto Modesto, em 8 de abril de 2020, e dentro de um carro com a placa de outro município. Isso bastou para o enquadro.  Com o casal, segundo a versão dos PMs, foi encontrado aproximadamente 1,1kg de maconha e R$ 3.020 em espécie.

Na decisão em que negou o pedido habeas corpus, o magistrado afirmou que o “foi constatado que os pacientes encontravam-se postados dentro de um carro, com placas com origem diversa do município do flagrante, no pátio de um posto de combustíveis, em atitude severamente sugestiva e suspeitosa, quanto mais sendo sabido, na prática forense e policial, o uso corriqueiro destas localidades visando a facilitação das empreendidas ilícitas – o que despertou a necessidade da revista por parte da polícia.”

Na sequência ele pontua que “é da essência da sua função [do PM] possuir a aptidão para rapidamente ‘separar o joio do trigo’, possuindo faro severamente aguçado para distinguir agentes que, por determinadas manifestações de comportamento, aparentam ou não estarem dotados de boa-fé.”

Abordagem de cunho discriminatório e ilegal

Hugo Leonardo, advogado criminalista e conselheiro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), fiz que a “fundada suspeita” não deve ser pautada com base no subjetivismo para abordar um cidadão e, portanto, para restringir direitos e garantias individuais, como a liberdade de locomoção e o direito à intimidade, por exemplo. 

Nesse sentido, o desembargador Luiz Antônio Zanini Fornerolli avaliza tal prática, aponta Hugo. “Quando o judiciário chancela esse tipo de prática, ele não apenas subverte a lei, como deixa de fiscalizar a atividade policial e isso é a porta de entrada para toda espécie de arbítrio da polícia. Convida os policiais a continuarem agindo da mesma forma.”

Ele explica que a polícia só pode abordar alguém na rua e parar essa pessoa se houver indícios concretos de que naquele momento exista uma situação de flagrante delito. “Ela não pode fazer abordagens preventivas. Isso é absolutamente ilegal e inconstitucional. Essa abordagem preventiva, com base na cor da pele, na situação que a pessoa esteja circulando em determinada via é absolutamente ilegal”, diz. 

O advogado lembra que a ilegalidade dessa prática já está instituída, não apenas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal, mas também na Corte Interamericana de Direitos Humanos. “A Corte já julgou um caso da Argentina anulando um auto de busca justamente baseado em subjetivismo.”

“Não é razoável que policiais revistam carros por conta da movimentação do veículo, como nos casos narrados na reportagem”, diz Hugo Leonardo. “É totalmente infundada essa suspeita para haver uma abordagem, basta fazer um paralelo se a polícia para carros velozes e luxuosos passando em grandes avenidas da cidade de São Paulo, se isso justifica a abordagem policial, principalmente abordagens violentas. Não justifica.” 

“O uso da ‘fundada suspeita’  é um pressuposto artificial para justificar uma abordagem de cunho discriminatório e ilegal”, diz o advogado. 

Ele também afirma que decisões como a do magistrado de Santa Catarina ocorrem historicamente no Brasil, o que vem mudando nos últimos anos iniciando-se pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ). 

“Os tribunais têm ficado mais sensíveis e mais conscientes das garantias individuais e isso tende a trazer uma atuação melhor das polícias e é importante as polícias saberem que os tribunais não mais chancelarão esse tipo de prática e que a gente definitivamente consiga caminhar um processo penal civilizado, democrático e que respeite as garantias de direitos individuais”, conclui.

Em janeiro deste ano, o STJ afirmou que “são ilegais as buscas pessoal e veicular baseadas em informações de fonte não identificada, intuições e impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, apoiadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial.” 

O entendimento foi do ministro Reynaldo Soares da Fonseca e anulou provas colhidas contra um homem condenado a  seis anos e nove meses de prisão por tráfico de drogas. 

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Segundo a decisão, “o acusado foi visto saindo de um terreno baldio conhecido pelos policiais como ponto de tráfico de drogas e se pôs em fuga tão logo notou a presença dos policiais no local, demonstrando nervosismo e atitude suspeita”, registrou. Fonseca reconheceu constrangimento ilegal contra o réu e anulou a condenação.

Outro lado

A Ponte questionou, por meio de e-mail à assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o desembargador Luiz Antônio Zanini Fornerolli sobre a “fundada suspeita”, sobre o que ele entende por “faro aguçado” e quais elementos avalia serem objetivos para a abordagem policial nos processos narrados na reportagem, assim como a versão dada pelos policiais. Nenhuma das questões foram respondidas até o momento.

A reportagem também perguntou para a Secretária de Segurança Pública de Santa Catarina sobre a prática da abordagem por “fundada suspeita” executada pela PM no estado. As perguntas não foram respondidas até a publicação da reportagem.

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