Pobreza menstrual: um problema que afeta desde presidiárias a estudantes

    Falta de acesso a absorventes higiênicos no Brasil atinge 26% de adolescentes entre 15 e 17 anos; nas prisões, até miolo de pão é usado para conter o fluxo

    Em 2014, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu que o direito das mulheres à higiene menstrual é uma questão de saúde pública e de direitos humanos | Foto: Freepik

    Por Bianca Tracanella, Bruna Ferrari, Carolina Vargas, Denise Alves, Gleice Prado, Heloisa Aguiar e Isabela Reis*

    Pedaço de pano, papel higiênico, papelão, jornal e até mesmo miolo de pão. Esses são alguns exemplos de materiais inadequados e inseguros usados durante o ciclo menstrual de adolescentes, jovens e mulheres em situação de vulnerabilidade social.

    De meninas que faltam à aula até presidiárias que, em 30 dias recebem 8 absorventes ou tampões menstruais , a “pobreza ou precariedade menstrual”, termo usado para definir a falta de acesso a produtos de higiene específicos, é um problema que afeta mulheres de todos os países.

    Tanto que, em 2014, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu que o direito das mulheres à higiene menstrual é uma questão de saúde pública e de direitos humanos. E o que deveria ser um direito é, muitas vezes, um luxo. A ONU estima que uma em cada dez meninas perdem aula quando estão menstruadas.

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    Uma pesquisa de 2018 da marca de absorventes Sempre Livre apontou que 22% das meninas de 12 a 14 anos no Brasil não têm acesso a produtos higiênicos adequados durante o período menstrual. A porcentagem sobe para 26% entre as adolescentes de 15 a 17 anos.

    No caso das mulheres encarceradas, cabe destacar que, conforme prevê a Lei de Execução Penal, o direito à saúde integral deveria ser garantido pelo Estado na forma de atendimento médico, farmacêutico e odontológico. Nessa lógica, as mulheres detentas deveriam, por lei, ter acesso aos itens de higiene básica, o que está longe de ser realidade.

    “A gente é criada para achar que menstruação é suja”

    “Eu criei um código com elas. As meninas aparecem com a mochila e ficam me encarando. Geralmente, é uma amiga que empurra a outra e começam o jogo da encaração. A gente é educada para achar que a menstruação é ruim, suja e imunda.” O relato é da educadora Edicleia Pereira Dias, 40 anos, diretora da Escola Municipal Cosme de Farias, situada na periferia de Camaçari, na Bahia, que desenvolveu um “banco de absorventes” destinado às meninas em situação de vulnerabilidade social, estabelecido em 2014.

    A ação tornou-se inspiração para o projeto de lei nº 428/2020, de autoria da deputada federal Tabata Amaral (PDT-SP), que propõe distribuir absorventes higiênicos em espaços públicos.

    A diretora Edicleia Dias foi a responsável pela criação do banco de absorventes | Foto: Camila São José/Nossa Metrópole

    Especializada em Educação, Pobreza e Desigualdade Social pela Universidade Federal da Bahia, Edicleia assumiu a direção da escola em 2014 e utilizou o ambiente educacional para investigar a pobreza que afeta a maioria dos estudantes da escola. Segundo a diretora, a instituição de ensino que ela dirige é classificada pelo Ministério da Educação como de classe D, ou seja, é composta por alunos que vivem em situação de vulnerabilidade social. 

    A gestora escolar identificou que as meninas faltavam às aulas pelo menos cinco dias, em sequência, por mês. A principal causa da ausência é a dificuldade para adquirir um produto que custa em média R$ 7 nas farmácias. “No conselho de classe, percebemos que as alunas faltavam em dias semelhantes no mês. Começamos a ir até as casas e, conversando mais amigavelmente, fora do contexto escolar, descobrimos que o motivo era que elas não possuíam absorventes”, relata Edicleia.

    Maira Mariano, professora da Escola Estadual Dr. Vital Fogaça de Almeida, na zona leste de São Paulo, concorda que a pobreza menstrual é uma realidade que afeta boa parte das escolas periféricas. Ela relata que já teve alunas que faltaram uma semana inteira por não possuírem absorventes. “As pessoas não têm noção do que não é ter dinheiro para comprar absorvente. Parece algo tão simples, tão da rotina da mulher, mas há muitas meninas da periferia que não têm como adquirir e não vão para escola por causa disso. Afeta, com toda certeza, o rendimento escolar.”, conta Maira.

    Para a diretora Edicleia, a questão do absorvente é somente “a ponta do iceberg” de um problema que envolve a infraestrutura da escola, a pobreza alimentar, a gravidez e outros fatores que afastam as meninas da educação.

    Para lidar com a questão, ela criou uma iniciativa de “construção de identidade” para que os estudantes começassem a ver a escola com outros olhos. “Os alunos acreditam que a escola pública não pertence a ninguém. A função da escola é apresentar que aquele ambiente é deles. As pessoas começaram a perceber que a escola era uma ferramenta de inclusão cultural mais importante daquele lugar e começaram a ter uma relação diferente”, contou a diretora da Escola Municipal Cosme de Farias.

    “Não quero vir para a escola menstruada com esse banheiro horrível”

    A Escócia foi o primeiro país a elaborar um plano de distribuição gratuita de absorventes e, no dia 25 de fevereiro, o parlamento escocês aprovou o projeto com 112 votos favoráveis. A Plan International do Reino Unido, uma instituição não governamental humanitária que promove programas e projetos centrados em crianças e adolescentes, estima que 49% das meninas perderam um dia inteiro de aula por causa da menstruação, das quais 59% inventaram uma mentira ou uma desculpa alternativa. A pesquisa também mostra que 64% perderam uma aula de educação física, ou esporte, dos quais 52% das meninas inventaram uma desculpa.

    Nicole Campos, gerente técnica de projetos da Plan International Brasil, explica que a infraestrutura das escolas também afeta o processo de aprendizagem das estudantes. “As meninas acabam falando assim: ‘Olha, o banheiro da escola é horrível. Eu me sinto muito mal quando tenho que vir para a escola menstruada’. Elas começaram a denunciar essa estrutura que não tem um olhar voltado para a questão da menstruação”, conta.

    No Brasil, a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro calcula que as estudantes perdem até 45 dias de aula durante o ano. Os vereadores da cidade aprovaram a lei nº 6603, de 3 de junho de 2019, que prevê o fornecimento de absorventes nas escolas públicas da rede municipal. 

    A medida de autoria do vereador Leonel Brizola Neto (Psol) tem como justificativas a prevenção de doenças e a diminuição da evasão escolar. “A distribuição nas escolas públicas deve ser pensada também como uma forma de abordar questões de gênero”, pontua Leonel Brizola.

    Apesar de ter sido aprovado pela Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, o projeto não foi sancionado pelo prefeito Marcelo Crivella até o momento. “Antes de iniciar a pandemia, solicitamos uma audiência com a Secretaria de Educação e cobramos a implantação da lei. Acredito que a demora na aplicação esteja relacionada à falta de comprometimento e do esvaziamento de boas políticas públicas para educação”, desabafa o vereador.

    No estado do RJ, os absorventes foram incluídos na cesta básica desde a última sexta-feira (3/7), quando o governador Wilson Witzel sancionou o projeto de lei 8.924/20.

    Na prisão, 30 dias e 8 absorventes

    “Falta, né? E ninguém dá nada de graça pra ninguém. Se tiver dinheiro no pecúlio [caixinha com dinheiro do preso], eles também não dão [absorventes]. O fato de alguém trabalhar no presídio não significa que não precise. De repente, está juntando aquele dinheiro para fazer, dar algo para o filho”. A frase dita por uma detenta da capital de São Paulo para a jornalista Nana Queiroz, autora do livro Presos Que Menstruam, retrata a precariedade enfrentada pelas mulheres presas. 

    Nana explica que as poucas penitenciárias que disponibilizam absorventes — o que para muitos é considerado uma “regalia” — providenciam cerca de 8 unidades por detenta. “Uma mulher com um período menstrual de quatro dias tem que se virar com dois absorventes ao dia. Uma mulher com período de cinco, com menos que isso”, pondera. Alguns presídios, segundo a jornalista, fornecem um pacote pequeno de absorventes por detenta, mas o material recebido não dura até o final do mês.

    Leia também: Artigo | Não é falta de condições de saúde, é tortura

    Muitas mulheres chegam a utilizar miolos de pão, jornais, papel higiênico ou tecidos para controlar os fluxos, o que gera grandes riscos à saúde, podendo culminar em infecções ou casos mais graves, como cistite e candidíase. Em outras situações, o recebimento desses itens fica por conta da própria detenta. Logo, elas dependem dos “jumbos”, pacote com itens fornecidos pelos familiares nas visitas.

    Mas a realidade da mulher no sistema prisional é, frequentemente, de abandono. De acordo com um levantamento feito em 2018 pelo Infopen, o sistema de informações do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), a média de visitas foi de 5,9 por presidiária no primeiro semestre de 2016. O valor também contabiliza visitações feitas por um mesmo indivíduo durante o período da pesquisa.

    Quando custa garantir higiene menstrual?

    Em Brasília, tramitam dois projetos de lei na Câmara dos Deputados que consideram a pobreza menstrual um fator determinante para a evasão escolar de meninas em situação de vulnerabilidade e que visam distribuir absorventes gratuitos em espaços públicos. Em setembro de 2019, a deputada federal Marília Arraes (PT-PE) elaborou o projeto de lei 4968/2019, que aguarda até hoje um parecer da Comissão de Educação (CE). 

    Outra proposta é da deputada federal Tabata Amaral (PDT-SP), apresentada em março de 2020. O projeto de lei para distribuição de absorventes gratuitos em locais públicos gerou reações negativas de outros parlamentares, inclusive do ex-ministro Abraham Weintraub, à época, ainda titular da Educação, que fez chacota sobre o assunto no Twitter.

    Os opositores ao projeto de lei questionam os custos para aquisição e distribuição de absorventes. Isso se agravou ainda mais devido ao tweet de Weintraub, que cita o exorbitante valor de R$ 5 bilhões de reais para colocar o plano em prática.

    Tabata Amaral rebateu e disse que a estimativa é de que sejam necessários, aproximadamente, R$ 119,06 milhões para distribuir absorventes em lugares públicos. Os custos são baseados em um cenário de acesso aos itens para mulheres de 10 a 50 anos, com renda de até um salário mínimo.

    Para o economista Pedro Fernando Nery, os cálculos do ex-ministro não estão corretos. “A conta da Tabata tende a estar mais certa, a outra é uma sobre-estimativa. Não se pode achar que todas as mulheres vão usar os absorventes distribuídos nas rodoviárias, nas escolas, nos postos de saúde”, disse em entrevista à reportagem.

    Ele alerta, porém, que a não distribuição de itens de higiene feminina também pode ter efeitos econômicos negativos. “Há uma perda enorme de geração de riqueza no mundo quando meninas não conseguem estudar ou mulheres não podem trabalhar. No limite, são médicas, engenheiras, escritoras que a sociedade deixa de usufruir”, diz Pedro.

    Uma outra preocupação dos opositores é o possível dano às empresas especializadas na fabricação e venda de absorventes. O medo é que a distribuição gratuita possa ferir o comércio. Para Pedro Fernando Nery, este não seria um problema. “Da mesma forma que a distribuição de camisinhas não impediu a venda desses itens em farmácias, a distribuição de absorventes não vai acabar com o mercado privado do produto. Não faz sentido imaginar que todas as mulheres vão usar os absorventes distribuídos pelo Estado”, pontuou. 

    Infográfico: Bruna Ferrari 

    Para fins comparativos, segundo dados obtidos através da Lei de Acesso à Informação, o Ministério da Saúde gastou R$ 34.336.015,57 com a aquisição de camisinhas masculinas em 2018, e R$ 67.038.224,47 em 2019. Em relação a campanhas de conscientização, o investimento chegou ao valor de R$ 80.771.536,61 ao longo dos dois anos.

    Absorvente, camisinha e a desigualdade de gênero

    A menstruação, assim como outras questões do universo feminino, ainda é um tabu e as mulheres precisam lidar com estigmas que envolvem um processo biológico que é natural. Em 1949, a escritora Simone de Beauvoir já sinalizava que a puberdade era encarada de forma completamente distinta entre o sexo feminino e masculino. “Assim como o pênis tira do contexto social seu valor privilegiado, é o contexto social que faz da menstruação uma maldição. Um simboliza a virilidade, a outra, a feminidade”, escreve Beauvoir no livro O Segundo Sexo.

    Construa a Ponte

    A cientista social Nicole Campos, gerente técnica de projetos da ONG Plan International Brasil, enfatiza que a diferença do tratamento entre a distribuição de camisinhas e a de absorventes é reflexo da desigualdade de gênero. “Só quem sente na pele sabe. Quando falamos em questão de gênero, não queremos dizer que somos iguais aos homens. Nosso corpo é diferente, mas isso não significa que eu seja mais frágil, porque isso é um modelo de mulher imposto por essa sociedade patriarcal”, diz.

    A distribuição de preservativos é ativa no Brasil desde 1994, enquanto o projeto de Tabata Amaral aconteceu apenas em março de 2020. Ela atribuiu as reações contrárias ao preconceito contra a agenda feminina. “Pautas femininas são invisíveis e ainda um grande tabu na sociedade”, declarou a deputada. Nicole Campos concorda. “A menstruação não é apenas uma questão fisiológica, mas também de gênero. E é por isso que é tão importante que existam mulheres na política. Quando você tem a voz de uma mulher que é empática com realidades diversas, já é uma forma de desafiar esses debates”, finaliza.

    (*)Reportagem desenvolvida por estudantes de jornalismo da Universidade São Judas, orientada pelo professor José Augusto Mendes Lobato e editada por Maria Teresa Cruz

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