Policiais civis acusados de matar João Pedro, 14, e forjar cena do crime viram réus

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro aceitou denúncia contra Mauro José Gonçalves, Maxwell Gomes Pereira e Fernando de Brito Meister; adolescente foi morto dentro de casa em operação das polícias Civil e Federal em São Gonçalo (RJ), em maio de 2020

João Pedro Matos Pinto estava dentro da casa de familiares quando foi baleado, em 2020 | Foto: Arquivo pessoal

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) aceitou a denúncia do Ministério Público e tornou réus três policiais civis por homicídio qualificado e fraude processual pela morte do adolescente João Pedro de Mattos Pinto, 14, baleado enquanto brincava na casa de um primo durante uma operação conjunta das polícias Civil e Federal no Complexo do Salgueiro, na cidade de São Gonçalo (RJ), em 18 de maio de 2020.

A decisão data do dia 25 de janeiro, mas só foi disponibilizada no processo nesta quarta-feira (9/2). A juíza Juliana Grillo El-jaick, da 4ª Vara Criminal de São Gonçalo, destacou “a extrema gravidade dos delitos imputados: o homicídio duplamente qualificado consumado de um adolescente de 14 (catorze) anos de idade e a inovação artificiosa, por agentes da lei, do local onde aconteceram os fatos, com a intenção, segundo a inicial acusatória, de ‘criar vestígios de suposto confronto com criminosos'”.

Segundo os promotores Paulo Roberto Mello Cunha Jr., Allana Alves Costa Poubel e Andréa Rodrigues Amin, os agentes Mauro José Gonçalves, Maxwell Gomes Pereira e Fernando de Brito Meister, lotados na Core (Coordenadoria de Recursos Especiais), atuaram por motivo torpe (desprezível) e com recurso que dificultou a defesa da vítima por terem efetuado diversos disparos contra um grupo de jovens desarmados, atingindo o menino, e, depois, de manipular a cena do crime para se eximirem da responsabilidade.

O trio plantou, segundo o documento, artefatos explosivos, uma pistola Glock calibre 9 mm, além de posicionar uma escada “junto ao muro dos fundos do imóvel em questão” e produziu “marcas de disparos de arma de fogo junto ao portão da garagem” para simular confronto.

Os três estavam em um helicóptero e desceram até um campo de futebol no bairro Itaoca, juntamente com o delegado e coordenador da Core Sergio Sahione Ferreira e o policial civil Jair Correia Ribeiro, “com a intenção de interceptar homens armados que teriam sido observados” durante o sobrevoo fugindo da residência atribuída a Ricardo Severo – conhecido como Faustão, um dos integrantes da facção criminosa Comando Vermelho. De acordo com a polícia, o objetivo da operação era cumprir mandados de prisão e de busca e apreensão.

O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) solicitou que, no decorrer do processo, os policiais cumpram medidas cautelares, o que foi acatado pela juíza. Os agentes deverão ficar afastados das atividades de polícia e não podem acessar as dependências da corporação, não podem ter nenhum tipo de contato com a família da vítima ou com testemunhas, não podem se ausentar da cidade por mais de 30 dias sem autorização e devem comparecer mensalmente em juízo. Em caso de descumprimento, o Tribunal de Justiça pode decretar a prisão preventiva (sem tempo determinado).

A Ponte não localizou possíveis defensores dos policiais.

Alteração de provas

Na época do assassinato, a família de João Pedro já denunciava a alteração de provas. O adolescente também foi levado por um helicóptero após ser baleado e só foi localizado por parentes no IML (Instituto Médico Legal) 17 horas depois. “Os policiais invadiram a casa”, declarou na ocasião à Ponte o autônomo Neilton Pinto, 41, pai de João Pedro. “Se tivesse bandido para o lado, como alegaram que estava no quintal, era para o helicóptero dar suporte para a pessoa não fugir e cercarem a casa. Entraram com morador, já atirando. Como quem pulou no quintal fugiu com vários helicópteros dando rasante? Forjaram muitas coisas ali dentro [da casa]. Fizeram uma bobagem, a casa está cravada de bala. Se aquilo foi fora da casa, o tiroteio, por que dentro estava cravado de bala?”.

jornal Extra apontou, em agosto daquele ano, uma série de falhas na perícia e irregularidades na cadeia de custódia da investigação, como transporte inadequado de provas, acesso às evidências pelos investigados e entrega das armas dos agentes uma semana depois do crime. Também houve mudança de depoimento por parte dos policiais civis que atuaram na operação. Segundo o Extra, que acessou o inquérito, os agentes disseram primeiro que deram, ao total, 23 disparos. Uma semana depois, mudaram para 64.

A Polícia Civil entendeu que os policiais praticaram homicídio culposo (quando não há intenção de matar), mas o MPRJ discordou e apresentou a denúncia por homicídio qualificado e fraude processual. A promotoria não pediu a prisão dos agentes, mas solicitou o afastamento das atividades na Polícia Civil e a não aproximação de testemunhas.

ADPF das Favelas

O caso de João Pedro, morto dentro de casa no auge da pandemia, tomou tamanha repercussão que foi citado na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 635, como ficou conhecida a ADPF Favelas, em que o ministro Edson Fachin, do STF (Supremo Tribunal Federal), proibiu em junho de 2020 a realização de operações policiais em comunidades, salvo em casos excepcionais.

Em 2 de fevereiro, a corte determinou que o governo do Rio de Janeiro encaminhe, em até 90 dias, um plano de redução da letalidade policial e o controle de violações de direitos humanos praticados por integrantes das forças da segurança pública. Entre as medidas, também está a criação de um observatório judicial sobre polícia cidadã no Conselho Nacional de Justiça para acompanhar o cumprimento da ADPF.

Os ministros também reforçaram o cumprimento de ações que já são previstas em lei, como a inviolabilidade do domicílio, ou seja, policiais não podem invadir residências sem a apresentação de um mandado de prisão ou de busca e apreensão, além de proibir o uso de casas de moradores como base operacional, tática conhecida como “tróia”.

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O STF estabeleceu que o Estado tem 180 dias para instalar equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes de segurança. Por outro lado, manteve o sigilo de protocolos de procedimentos operacionais das polícias.

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