Policiais e especialistas debatem desmilitarização e legalização de drogas

    Grupo ‘Policiais Antifascismo’ reúne agentes da segurança pública e especialistas da área que desejam mudar a política de drogas, o encarceramento e repensar a militarização da PM

    Tenente PM Anderson Duarte, do Ceará, criador do site ‘Policial Pensador’ | Foto: Thaís Tostes

    Na semana marcada pela tentativa do Senado de votar a redução da maioridade penal – barrada pela pressão das ruas – e pela entrada de centenas de homens das polícias e das Forças Armadas na Favela da Rocinha, policiais e outros profissionais da Justiça e Segurança Pública, que acreditam que uma nova política de segurança pública é possível, se reuniram no Rio de Janeiro. A primeira edição do Seminário Nacional dos Policiais Antifascismo aconteceu nos dias 28 e 29 de setembro, no prédio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no Centro. “O que vemos hoje, no Brasil, não é uma política de segurança pública, mas um massacre”, pontuou Anderson Duarte, tenente da Polícia Militar do Ceará e criador do site “Policial Pensador”, que, no seminário, integrou a mesa sobre “Desmilitarização das políticas de segurança”.

    Para ele, existe possibilidade de criar uma política de segurança pública desmilitarizada e fora da lógica do derramamento de sangue. “Entendemos que o policial e outros agentes da lei devem ser defensores dos direitos humanos. Existe a possibilidade de fazermos uma política de segurança dos direitos. Hoje, no Brasil, nós temos uma polícia que morre muito e que mata muito, em contextos de violência e de militarização da segurança pública”, afirmou durante a fala. “Precisamos de uma nova polícia, uma nova política e uma política de segurança pública mais democrática. Não somos um exército; não queremos ser um exército”, expôs Anderson.

    Perita criminal e membro do Movimento Unificado dos Servidores Públicos, Janaina Matos| Foto: Thaís Tostes

    No primeiro dia, o encontro focou no debate sobre a construção dos policiais como trabalhadores. Quem falou sobre isso foi o inspetor de polícia e diretor da Associação dos Policiais Civis da Bahia, Denilson Campos; o cabo da Polícia Militar de Santa Catarina e presidente da Associação Nacional de Praças (Anaspra), Elisandro Lotin; o inspetor de polícia e diretor da Coligação dos Policiais Civis do Rio de Janeiro, Hildebrando Saraiva; e a perita criminal e membro do Movimento Unificado dos Servidores Públicos, Janaína Matos.

    “Já fomos para atos onde apanhamos dos próprios colegas! É horrível passarmos por situações dessas, mas, por outro lado, esses momentos também são uma grande oportunidade para construirmos consciência de classe. Quando a polícia recebe de volta o seu próprio discurso, ela abre os olhos para o quão perverso é o sistema”, comentou a perita Janaína Matos.

    Polícia como massa de manobra e contenção das massas

    De acordo com o cabo da Polícia Militar de Santa Catarina e presidente da Associação Nacional de Praças (Anaspra), Elisandro Lotin, o modelo de segurança pública vigente no país é o que os policiais são formados para o controle de classes. “Fomos feitos para manter as favelas sob controle; para manter as periferias nos guetos e, a partir disso, dar toda liberdade de atuação e vivência para as elites. Isso a gente faz desde 1808 ou antes. Nós somos massa de manobra e muro de contenção da massa”, afirmou Lotin.

    Diretor da Associação dos Policiais Civis da Bahia, Denilson Campos | Foto: Thaís Tostes

    Nesse debate, Denilson destacou a existência de registros de policiais que se rebelam dentro de quartéis ou em ações sociais coletivas e progressistas: “Mas não existe política que trate esse policial como sujeito e atuante direto da modificação dessa realidade em que ele está inserido. O policial deve se perceber como um ser que sofre todas as contradições sociais que os demais trabalhadores do país sofrem. Por que esse policial não consegue se identificar com a causa trabalhadora? Por que é difícil para a sociedade vê-lo como classe trabalhadora?”.

    Ocupação da Rocinha começa em 1991

    O seminário também contou com a presença de Nilo Batista e Vera Malaguti, professores e pesquisadores do Instituto Carioca de Criminologia, além do delegado Orlando Zaccone, da Polícia Civil do Rio; do coronel da Polícia Militar do Rio, Ibis da Silva; e o membro da Comissão dos Direitos Humanos da OAB-RJ, Marcelo Chalreo, que participaram do debate sobre “Políticas de segurança sem derramamento de sangue”.

    Nilo Batista, professor do Instituto Carioca de Criminologia: “A pena é a pior forma de violência” | Foto: Thaís Tostes

    “A militarização da segurança pública cresce, tem o hiper-encarceramento, vivemos um quadro de terror, e eles continuam dizendo que o remédio é a militarização da segurança. Como podemos acreditar que esse remédio que não está funcionando vai resolver? Temos que apresentar mudança. Foi na perda do debate político, da construção do modelo democrático de segurança, que a situação chegou onde está hoje. Essa ocupação militar da Rocinha, que também se reproduz no Alemão e na Maré, é um processo que começa em 1991, na Operação Rio”, explica o delegado Orlando Zaccone. “Tem o artigo 142, que permite que as Forças Armadas, para a garantia da ordem, façam intervenção, visando à garantia dos poderes. Não cabe às Forças garantirem os poderes: os poderes é que têm que garantir as Forças Armadas”, desenvolveu Zaccone.

    Delegado Orlando Zaccone e Bruno de Freitas, da Polícia Civil do Rio de Janeiro |  Foto: Thaís Tostes

    Segurança Pública para o gerenciamento da exclusão

    Os debates também citaram estatísticas da Segurança Pública no Brasil. Na mesa sobre políticas de segurança sem derramamento de sangue, o coronel da PMRJ Ibis da Silva afirmou que apenas em 2015 a polícia brasileira matou 3.320 pessoas e que os sete primeiros meses de 2017 contabilizam 600 pessoas mortas pela polícia e mais de 100 policiais mortos.

    “São duas faces da mesma moeda, que é a tragédia da segurança pública no Brasil. No Brasil, as políticas adotadas têm sido uma forma de se gerenciar a exclusão. De 60 mil brasileiros mortos em 2015, 78% deles são jovens, pobres e moradores de periferia. Isso não é por acaso. E não é de hoje que esse Estado vem funcionando assim. Nós ainda somos esse triste moinho de espremer e triturar brasileiros. Estava vendo, na TV, um programa policial e tive vontade de chorar de raiva, por causa da polícia que podíamos ter e não temos”, desabafou Ibis.

    “Estava vendo, na TV, um programa policial e tive vontade de chorar de raiva”, diz Ibis | Foto: Thaís Tostes

    O sistema penal, que coloca o Brasil como a quarta maior população carcerária do mundo (500 mil presos), ficando atrás apenas de Estados Unidos (2,2 milhões), China (1,6 milhões) e Rússia (740 mil), também foi um tema bastante debatido no Seminário. Para Nilo Batista, a pena é a pior forma de violência.

    “O sistema penal não é só ruim na ponta da polícia – é ruim completamente. Como, por exemplo, um juiz pode dar um mandado de busca e apreensão genérico? Ele está expondo milhares de pessoas a um vexame e não acontece nada. E o Datena, o Bonner, vão dizer que tudo isso está muito bom. A mídia corporativa brasileira queria que as Forças Armadas viessem. Um seminário como este deve se reproduzir. E mais: não precisamos só de policiais antifascistas – mas de juízes antifascistas, e de advogados antifascistas”, ressaltou Nilo Batista, professor do Instituto Carioca de Criminologia.

    A relação da mídia com a Segurança Pública 

    A relação da mídia hegemônica com as políticas de segurança pública brasileiras também foi um ponto debatido no encontro, no segundo dia – coincidentemente Dia do Policial Civil -, na mesa intitulada “Legalização das drogas: uma pauta policial”, composta por Fabrício Rosa, da Polícia Rodoviária Federal de Goiás; Kleber Rosa, da Polícia Civil da Bahia; delegado Orlando Zaccone e o inspetor Bruno de Freitas, ambos da Polícia Civil do Rio.

    Bruno relatou que, por muitas vezes, se atribui ao tráfico de drogas todos os crimes que acontecem, e que, quando um delegado assume uma delegacia, ele é pressionado a dar respostas sobre os índices criminais daquela região, sendo cobrado não só pelo governador, pelo chefe de polícia e pelo chefe de segurança, mas também pela mídia.

    “E existem algumas palavras mágicas que deixam a mídia satisfeita, como ‘Sim, isso veio do tráfico e estamos investigando’. Aí o delegado é avaliado se fez um bom serviço ou não; se conseguiu fazer uma grande operação que saísse nos jornais e que se pudesse dizer: ‘Ah, cumprimos 20, 50 mandados de prisão, entramos, prendemos, e tem mais pessoas sendo procuradas’. Se essas justificativas forem dadas, a mídia se acalma, porque parece que isso é o que é trabalhar. O chefe do tráfico se torna o responsável por todo o crime da região. É assim que a mídia vende. E o Ministério Público gosta quando acontecem essas prisões, para mostrar que está trabalhando para a criminalidade ser combatida”, explicou o inspetor Bruno de Freitas.

    Proibicionismo como racismo de Estado

    Fabrício Rosa, da Polícia Rodoviária Federal de Goiás, e Kleber Rosa, da Polícia Civil da Bahia | Foto: Thaís Tostes

    Na mesa sobre legalização, Kleber Rosa citou uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) que aponta que 62% dos usuários declarados de entorpecentes pertencem à classe A, que corresponde a 5,8% da população do país. Kleber destacou que o mesmo estudo revela que 85% dos usuários são brancos.

    “E aí temos, na outra ponta: quem produz a droga? O cara mais poderoso é o dono das fazendas onde essa droga é plantada. Se não é na favela onde está a produção e o consumo, o que há, então, na favela, quando o Estado foca seu olhar no combate às drogas? Não vemos o Estado fazendo busca e apreensão em fazendas e aeroportos. E os brancos que estão no comércio de drogas não são vistos, pela imprensa, como traficantes. E aí concluímos que não há combate a drogas. O que há é o combate a pessoas. É um racismo de Estado. Aqui no Rio a gente vive um momento em que a Polícia Militar ocupa a Rocinha. É fundamental que a gente paute um contraponto a esse tipo de política de segurança pública. Política de segurança pública precisa ser pensada de uma forma universal, junto com outras políticas públicas do Estado”, defendeu.

    “Se o Estado quisesse proteger a saúde, ele estaria cuidando do SUS”

    Nesse debate sobre legalização das drogas, Zaccone afirmou que uma das maiores falácias é a de que as drogas são proibidas para que a saúde pública seja mantida. “Se o Estado quisesse proteger a saúde, ele estaria cuidando do SUS [Sistema Único de Saúde]. E sabemos que o povo morre muito mais pela omissão do Estado na promoção da saúde do que pelo uso de drogas”, comentou o delegado. “E não adianta regulamentar somente uma das substâncias, porque o proibicionismo nunca proibiu todas as drogas. As farmácias são chamadas de drogarias e inúmeros remédios são usados para efeitos recreativos, como a Ritalina, o Lexotan e o Viagra. Mas a repressão é para a maconha, a coca e a papoula, que são plantas. Os sintéticos não sofrem repressão militar, porque não são plantas. Existe um controle geopolítico aí, também”, ponderou.

    Desmilitarização e sociedade sem classes

    Finalizando o seminário, a última mesa, intitulada “Desmilitarização das políticas de segurança”, foi composta por Anderson Duarte, do “Policial Pensador”; pelo comandante da PM do Rio, coronel Ibis da Silva; pelo subtenente Misael Souza, do Corpo de Bombeiros Militar da Bahia; por Monica Lopes, da Guarda Municipal de Fortaleza; e por Bruno de Freitas, inspetor da Polícia Civil do Rio.

    Em sua análise, Ibis da Silva entende que a ideia de desmilitarização é indissociável da luta anti-capitalista. Ele comentou que a proteção à propriedade é garantida, mas o direito à propriedade não é, e que nesse jogo o indivíduo tem valor de acordo com sua bancária. “E esse ‘direito ao ‘ser’’ não é garantido a todo mundo. Quem está fora está condenado a continuar fora, e como lidar com os ‘fracassados’ dessa sociedade de consumo? É guerra! Portanto, militarização. Não adianta transformar a PM em Civil. Se o modelo continuar esse daí, não temos escapatória”, concluiu.

    Após os debates, os policiais se reuniram para a elaboração do Manifesto dos Policiais Antifascismo, que será divulgado em breve. Essa e outras discussões do grupo Policiais Antifascismo estão na página deles, no Facebook.

    Participantes do seminário organizado pelos Policiais Antifascismo, no Rio | Foto: Divulgação/Policiais Antifascismo

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