Policial que mata será informado sempre que virar alvo de investigação

    Lei anticrime de Moro manda avisar PMs investigados por mortes antes da denúncia; “probabilidade de destruição de provas é imensa”, afirma desembargadora

    O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, participa de audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça do Senado | Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

    Imagine se o policial militar da reserva Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio Queiroz, acusados pelo assassinato da vereadora Marielle Franco (Psol) tivessem conhecimento de que eram investigados pelo crime logo no início da apuração. Pois é isso que prevê um dos mecanismos criados pela Lei anticrime do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, em vigor desde janeiro.

    Agentes de segurança pública envolvidos em crimes ou tentativas de crimes dolosos (quando há intenção) contra a vida podem tomar conhecimento de que são parte de um processo desde o início da abertura de um inquérito. Está previso também que, desde a fase inicial da apuração, o investigado possa constituir um advogado particular ou requisitar um defensor público.

    “O investigado deverá ser citado da instauração do procedimento investigatório, podendo constituir defensor no prazo de até 48 (quarenta e oito) horas a contar do recebimento da citação”, diz trecho da lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que alterou o Código de Processo Penal (decreto-lei 3.689 de 4 de outubro de 1941).

    Em uma situação como a que citamos na abertura da reportagem, não seria loucura pensar que os suspeitos poderiam tentar destruir provas ou buscar mudar o rumo das investigações para não se verem presos.

    Antes de a lei entrar em vigor, as ações de investigação contra agentes de segurança denunciados por homicídios eram mantidas em sigilo, caso das apurações que envolveram os acusados pela morte da parlamentar e do motorista Anderson Gomes, que foram assassinados em 14 de março de 2018.

    Na prática, segundo especialistas ouvidos pela Ponte, a mudança no artigo 14-A do Código de Processo Penal trará privilégios aos agentes que matam, em todos os tipos de investigação, seja ela tocada pela Polícia Civil ou Ministério Público.

    O tenente-coronel aposentado da Polícia Militar paulista Adilson Paes de Souza, mestre em Direitos Humanos e autor do livro “O Guardião da Cidade – Reflexões sobre Casos de Violência Praticados por Policiais Militares (Escrituras, 2013), entende ser inconstitucional o que foi aprovado pelo Congresso e chancelado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). “Eu entendo que é inconstitucional, porque fere o princípio da garantia constitucional do devido processo legal e princípio constitucional da impessoalidade”.

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    Segundo o militar da reserva, o que se criou foi uma tratamento privilegiado para determinada pessoa em relação a outras. “Outras pessoas que não são agentes de segurança vão continuar sendo alvo de inquéritos sem a presença de advogado para acompanhar toda apuração”, critica.

    Para Adilson, é necessário observar que o processo também pode ficar comprometido, já que denunciantes podem ficar com medo da exposição. “Parece que está se criando mecanismo ou propondo mecanismo para, de alguma maneira, favorecer algum agente de segurança pública que cometeu delito. Se a autoridade de plantão ou Ministério Público está ouvindo, em curso de inquérito, uma testemunha poderá se sentir intimidada ao ver que o advogado do indiciado está presente. Ele poderá se sentir intimidado e poderá achar que sua integridade está colocada em risco”, afirmou.

    Até mesmo especialistas do Direito criticam a nova determinação e entendem que ela só será benéfica para um dos lados.  “Acho que não passou despercebido, não. O dispositivo tem o viés de atribuir maior ‘proteção’ ao policial que pratica homicídio, tentado ou consumado, no cumprimento de seu dever”, pontuou a desembargadora Ivana David, da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.

    “Perceba que o artigo que tenta assegurar uma situação quase objetiva de legítima defesa que foi excluída [ela se refere à retirada da excludente de ilicitude pela Congresso]. Assim, a intenção do legislador foi criar uma ‘super’ proteção para o policial ’em combate'”, afirmou.

    A magistrada ainda entende que o mecanismo vai prejudicar a materialidade, uma vez que pode afetar a obtenção de provas na fase inicial da apuração. “Com certeza esse dispositivo poderá prejudicar a busca da prova, numa primeira fase das investigações. Pois o investigado será citado nos atos investigatórios, o que é um erro absurdo, pois citação é após a denúncia”. 

    A desembargadora criminal ainda enumera outros efeitos do dispositivo. “Imagine o MP, quando da instauração de um PIC [Procedimento de Investigação Criminal], ‘notificar’ ou ‘intimar’ o investigado noticiando essa situação. A probabilidade de destruição de provas é imensa”, alertou.

     Ivana David ponderou que houve a abertura para um “nicho de impunidade, já que o prejuízo na busca da verdade estará prejudicado”. Ela cita, por exemplo, a questão de escutas telefônicas no processo de investigação. “Cabe indagar se uma medida cautelar preparatória será abarcada por esse dispositivo. Se estiver, investigar por uma interceptação telefônica estará fadada a inutilidade”, pontuou.

    Ivana, contudo, acredita que essa mudança na lei não vai vingar pelo próprio ordenamento jurídico. “O tempo e a jurisprudência colocarão essas lacunas no devido lugar”, defendeu.

    Quem também entende que a notificação a policiais que são investigados por homicídio ou tentativa de homicídio fere a Constituição é o advogado criminalista André Lozano, mestre em Direito Penal pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica) e coordenador-adjunto do laboratório de ciências criminais do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).

    “Eu vejo que esse artigo é inconstitucional. Está dando um privilégio para o policial que ele não deve ter direito. O policial que mata, por esse artigo, pode ter o defensor custeado pelo Estado, sendo que o mesmo privilégio não é dado para as demais pessoas”, explicou. 

    A opinião de Lozano é de que se busca abrir uma brecha para dificultar punições a policiais, semelhante ao pensamento do tenente-coronel da reserva Adilson Paes de Souza. “É uma lei que amplia o direito do acusado, só que estabelece um privilégio somente para agentes de segurança pública e não há nenhuma evidência que o agente de segurança pública seja uma classe que goze de algum prejuízo por causa disso”.

    Para ele, a única forma de manter o artigo sem declará-lo inconstitucional, seria estender a previsão legal para todos os cidadãos que fossem investigados por crimes dolosos (quando há intenção).

    Lei da mordaça

    O risco de que denúncias contra policiais despenque por medo de represália é o efeito mais preocupante, de acordo com a avaliação de Tamires Gomes Sampaio, mestra em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie e militante da Conen (Coordenação Nacional de Entidades Negras), já que o denunciante ficará exposto.

    “É muito perigoso. Com um policial tendo um advogado constituído em um processo que ele responde por assassinato, a pessoa que fez a denúncia fica totalmente desprotegida, porque o policial vai saber quem ela é e pode ir atrás. Isso é inconstitucional e precisa ser denunciado”, criticou.

    O advogado criminalista André Lozano ainda lembra que antes da mudança já era difícil um agente ser punido após assassinar uma pessoa. “Muito pelo contrário, existe uma clara conivência do Ministério Público e do poder judiciário para com agentes de segurança pública que matam, inclusive isso já foi diversas vezes denunciado por organizações internacionais, por exemplo, a Anistia Internacional”, sustentou.

    Questionado por e-mail, o Ministério da Justiça e Segurança Pública ainda não se pronunciou.

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