Pontecast |’Brasil está nos estágios finais de um genocídio’

    Pesquisadora Adriana Dias fala do avanço de grupos adoradores da supremacia branca no Brasil e a relação do governo Bolsonaro com os ideais neonazistas

    Adoradores de Adolf Hitler, da suástica e do nazismo têm ganhado espaço no Brasil governador por Jair Bolsonaro (sem partido). É o que aponta a pesquisadora da Unicamp Adriana Dias, especialista em grupos neonazistas. No episódio 75 do PonteCast, ela detalha existir hoje 349 células de apoiadores da supremacia branca em território nacional.

    Um dos pontos que facilita a propagação é não haver punição para quem comete o crime de divulgação do nazismo, previsto na Constituição de 1988. Segundo Adriana, essa situação faz as pessoa se sentirem à vontade para propagar o assunto. E mais: a polarização política recente incentiva a existência de extremistas de direita e está diretamente ligada à prática de genocídios.

    “Todo o processo de genocídio começa com uma classificação: ‘nós e eles’. O governo Bolsonaro começou com essa classificação. ‘Nós, os puros, os que não roubam, que são certinhos’. E eles: ‘A esquerda que vai destruir o país, o PT, corrupto, o mau’. Essa classificação vai avançando até o processo de polarização”, afirma.

    A especialista detalha que já há uma prática de genocídio do país com a pandemia de coronavírus. O ato de fazer escolhas de quem deve e quem não deve ser tratado configura como este crime. “Estão acontecendo as três coisas ao mesmo tempo: listas, que são escolhas de quem vive e quem morre, depois são feitas as eliminações, o genocídio em si; e a negação do genocídio”, detalha.

    Ponte – Quando teve contato a primeira vez com grupos neonazistas?

    Adriana Dias – Quando comecei, em uma matéria da graduação, fiquei surpresa. No primeiro contato que tivemos com site integralista, nazista, comecei a achar que era coisa de adolescente, de quem não tinha o que fazer. Não se tem ideia do que é. Em junho de 2002, percebi que não era brincadeira, havia um grupo muito sólido por trás. O site chamava Revisão História, com quatro rapazes formando uma suástica e a frase “ao amanhecer encontraremos o estado nacional socialista”, atribuindo essa frase a Adolf Hitler. Tinha textos claramente neonazistas, como adoção de crianças negras sendo o genocídio de pessoas brancas. Era um site do Brasil, do Paraná. Queria entender o que aquilo queria dizer. Até o fim do curso, encontrei 8 mil sites em língua portuguesa, inglesa e espanhola.

    Ponte – Há diferença desses grupos brasileiros para os de outros países?

    Adriana – Os grupos são muitos marcados nos EUA, no Brasil o neonazismo é de tudo, se lê tudo. Tem engajamento americano e russo, por exemplo. Nossa miscigenação atinge estes grupos. Ao mesmo tempo que não tem uma leitura fixa, eles usam isso para fugir do conceito de crime. Como suástica e cruz gamada são crimes, se sentem muito seguros de andar à marge da lei. E usam outros símbolos neonazis que não caem na lei de 1989, que fala muito pouco do que é o neonazismo. Conseguem ficar tranquilos, conseguem fazer coisas terríveis, agredis pessoas e aqueles símbolos não estão criminalizados, em tese. Mesmo suástica, se tem o papo de ser símbolo indu, mas depois do nazismo, não tem como associar sem ser o nazismo.

    Ponte – Como estes grupos atuam?

    Adriana – O objetivo do neonazismo hoje é fazer com que a propaganda de primeira fase, de atrair pessoas em geral, vire a de terceira fase, que atinge um grupo específico. Que o homem médio branco do Brasil comece a pensar como senso comum nazista. Isso já está acontecendo. Exemplo: racismo reverso. É um termo criado pela Ku Kux Klan em 1974, algo que não existe. No entanto se vê pessoas brancas usando o termo de primeira fase que chegou na terceira fase. Como genocídio branco. Quando todos os termos do nazismo chegarem a terceira fase, vamos estar em um estado totalmente nazificado. Esse é o processo de nazificação. No meio dessas duas fazes de propaganda temos a organização dos grupos em termos de violência, manifestação pública.

    Ponte – Há contribuição política para tal?

    Adriana – Uma outra questão é que houve investimento de grupos. Exemplo: governos de estados compraram livros de Olavo de Carvalho para adolescentes e jovens. A partir do momento que um livro olavista, sem base história, filosófica, de nada, é comprado por uma biblioteca, ele é legitimado. Ao legitimar livro que tem discurso falacioso sobre nazismo, que é de extrema-direita. Em “mein kampf”, Hitler odiava muito mais os comunistas do que os judeus e ele odiava muito os judeus. Os estados permitiram que as pessoas dissessem “ó, o nazismo é de esquerda. Ó, além de corrupta, a esquerda é neonazista”. Vai somando elementos que formaram um enorme vulcão e teve explosão de ódio no Brasil. Se criou um inimigo para colocar a culpa, a esquerda, ao mesmo tempo que se construiu um ultraconservadorismo de valorização máxima da masculinidade tóxica. Essa masculinidade tem como base o militar, o anti-gay, o estupro… Quando isso vai sendo construído, o solo para o nazismo é quase perfeito.

    Ponte – O presidente Jair Bolsonaro potencializa com isso?

    Adriana – Bolsonaro teve 57 milhões de votos, cerca de 5 milhões e 700 são base dura do governo. Disso, 10% são neonazistas, pessoas que estão lendo literatura ligada. Em células neonazis, são 7 mil. Mas essas pessoas, as 500 mil, estão lendo e acreditam em uma extrema-direita. Uma parte significativa acha que Bolsonaro deveria ser ainda mais duro. Não é que não acham ele nazista, acham ele pouco nazista. Que deveria ter implantado leis para prender gays e lésbicas, um ódio terrível.

    Ponte – Como se dá a prática de um genocídio?

    Adriana – Existe uma escala de genocídio. Primeiro se criou oito escalas, de identificação a eliminação. Depois, o Museu do Holocausto reviu e chegou à ideia de que algumas etapas, na verdade, aconteciam separadamente e chegou-se a ideia de dez etapas. Todo o processo de genocídio começa com uma classificação: “nós e eles”. O governo Bolsonaro começou com essa classificação. “Nós, os puros, os que não roubam, que são certinhos”. E eles: “A esquerda que vai destruir o país, o PT, corrupto, o mau”. Essa classificação vai avançando até o processo de polarização, que ficou muito evidenciado até a pandemia. Todo mundo sabe. Sentimos nas redes sociais, desde família, natal ano passado… A polarização chegou ao máximo do Brasil. Depois da polarização, há um elemento que é complicador, que demarca a chegada da oitava fase. Há um momento que se demarca uma mudança clássica, que é a fase de preparar listas. Quando se começa, como aquele deputado aqui de São Paulo [Douglas Garcia], que pedia para as pessoas mandarem perfis e apareceu a lista dele. Vi jovens serem demitidos em questão de horas. Ali entramos na oitava fase, a de começar a listar quem deve ser eliminado. Isso é supercomplicado. Se começa a ter instrumentos para listar, como projeto de lei para se mapear voz, iris, face, digital das pessoas, o governo terá esse controle das identidades, a questão de controlar essas pessoas ligadas a um governo neofacista, é muito diferente do que qualquer governo.

    Ponte – Existe isso no Brasil hoje?

    Adriana – O governo nazista começou com as listas e já teve o processo de mandar para gueto. Por exemplo: por conta do coronavírus, moradores do Morumbi, bairro rico de São Paulo, pediram um muro em volta de Paraisópolis. Começa a se exigir guetos, surgir que o morador tem que ficar preso em um muro dentro de uma região. Ali vai ser um gueto, uma Cracóvia. Temos que pensar o que isso significa, o que esses guetos representam. Se queremos população minimamente humana, precisamos pensar o que essas populações querem.

    Ponte – Quais as duas etapas finais?

    Por fim, se tem a eliminação. Se cria um gueto, se cria ele para eliminar, não se cria para ele ficar no seu lugar. E, depois, vem a negação. Nega que fez tudo isso. O governo Bolsonaro faz tudo isso ao mesmo tempo: durante a pandemia, faz lista. Está aproveitando a pandemia para fazer um genocídio. Podemos falar que há um genocídio na pandemia de coronavírus. Existe muito menos internação de negros do que de brancos nas UTIs. Na hora da escolha, está acontecendo uma. Se tem uma lista em alguns lugares, os dados apontam. Pessoas com deficiência têm sido negadas. Tem lugares de eugenia, vamos lá, vidas negras importam. Eu fico realmente preocupada quando chegamos no momento de listas, pessoas não internadas. Chegamos em um número, não sei se chamo estratosférico, galático, e o presidente não toma atitude nenhuma e começa o processo de negação. Estão acontecendo as três coisas ao mesmo tempo: listas, que são escolhas, depois são feitas as eliminações, o genocídio em si, e a negação. Tem sido feito isso ao mesmo tempo. O que se faz com um governo genocida? Se denuncia em tribunais internacionais. Está bem. Até quando vamos aceitar estar em um governo genocida? É uma pergunta que todo brasileiro que ainda tem um pacto com civilização deveria fazer.

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