Por que a polícia se curva ao branco rico de Alphaville e é violenta na periferia

    Diferença no comportamento da PM é gritante: “corporação enxerga que algumas vidas valem mais do que as outras”, afirma socióloga Samira Bueno

    Um vídeo com um homem branco, morador de Alphaville, bairro rico em Santana do Parnaíba, região metropolitana de São Paulo, xingando um policial chamou a atenção neste fim de semana. O empresário Ivan Storel, 49 anos, humilhou os PMs que foram atender a ocorrência de violência doméstica em sua casa.

    “Você é um bosta. É um merda de um PM que ganha mil reais por mês, eu ganho R$ 300 mil por mês. Quero que você se foda, seu lixo do caralho”, disse o empresário. Em seguida, após supostamente falar no telefone, ele continua: “Você não me conhece. Você pode ser macho na periferia, mas aqui você é um bosta. Aqui é Alphaville, mano”. O PM fica calado, apenas pede que a PM mulher que o acompanha filme a cena.

    Em um primeiro momento, Storel não quis dar declarações. No dia seguinte, gravou um vídeo em que dizia que está passando por tratamento psiquiátrico.

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    Não demorou muito para que uma inevitável comparação acontecesse: se a mesma cena tivesse ocorrido na periferia e o suspeito de agressão à mulher fosse um homem negro, será que o policial ficaria passivo e calado ao ouvir as ofensas? A resposta é não.

    “Na periferia, a reação teria sido completamente diferente”, disse, em entrevista à Ponte, a socióloga Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública). Ela analisou como as polícias de todo o país têm duas formas distintas de agir: uma adotada nas periferias e outra quando estão em regiões ricas.

    “Quando fazemos esse debate, esquecemos quem é que está mandando. O policial que matou está cumprindo ordens de uma corporação que incentiva que você tenha um tipo de doutrina e um modelo de trabalho em áreas periféricas que demonstrem que aquela vida, aquele cidadão que está ali, vale menos”, explica.

    Em 2017, em entrevista ao Uol, o tenente-coronel Ricardo Augusto Nascimento de Mello, ao assumir o comando da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), a tropa mais letal da PM paulista, disse que a “abordagem nos Jardins [bairro rico da cidade de São Paulo] tem de ser diferente da periferia“.

    Em abril deste ano, mais uma vez com o cenário de pano de fundo sendo os Jardins, o Delegado Olim, deputado estadual pelo PP, bateu boca com PMs durante uma abordagem e chegou a dizer que “precisam aprender para estar nos Jardins”.

    Em outubro do ano passado, a Ponte revelou que o 9º Baep (Batalhão de Ações Especiais da Polícia Militar), localizado em São José do Rio Preto, interior paulista, usava em pistas de treinamento tapumes com a palavra “favela”. As imagens foram postadas na página “Batalhão de Ações Especiais de Polícia – BAEP S.J. do Rio Preto” do Facebook.

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    Essa diferença de tratamento, admitida até mesmo por seus comandantes, está longe de ser exclusividade da PM em São Paulo. Em 16 de maio, uma festa terminou em agressões policiais em Mirabela, cidade no interior de Minas Gerais. Na ocasião os policiais invadiram uma residência sem mandado e, ao serem questionados, disseram que o uso da força foi adotado porque as pessoas usaram “palavras de baixo calão”.

    “Infelizmente isso reforça ainda mais essa desigualdade econômica e de raça, em todos os níveis, na forma que a vida de cada cidadão vale nesta cidade, neste estado, neste país”, aponta Samira.

    Confira a entrevista:

    Ponte – Por que o tratamento em um bairro rico como Alphaville é tão diferente do que acontece nas periferias?

    Samira – Depois da cena do vídeo, o policial pediu apoio e o cara foi preso. Se formos pensar que o cara tava extremamente alterado, xingando o policial, faz sentido ele ter chamado apoio, porque tinha uma criança, tinha uma mulher. Eles não sabiam se a pessoa tinha uma arma dentro de casa, se tivesse ele poderia ter atirado na companheira dele. Ele estava claramente alterado e o policial resolveu esperar pelo apoio. A gente sabe que, na periferia, a conduta dele teria sido completamente diferente. Ele não teria pensado duas vezes antes de abordar o suspeito, o agressor, de forma truculenta. Eventualmente teria batido nele, porque ele estava reagindo à prisão. Por muito menos as pessoas morrem na periferia de São Paulo em abordagens de policiais que depois dizem que a vítima reagiu. Toda vez que morre alguém em uma intervenção policial, eles falam que a pessoa reagiu a voz de prisão do policial. A gente, então, sempre questiona: mas o que significa exatamente reagir? O reagir é discutir com a polícia, o reagir é dar fuga, o reagir é se recusar a ser levado? Na periferia, a reação teria sido completamente diferente.

    Ponte – Por que os PMs se sentiram tão inseguros diante do empresário?

    Samira  Me parece que o policial ficou acuado, por ser uma área rica. Um elemento que não podemos descartar, e que eu acho que a gente precisa levantar, que não diz respeito só ao policial que está na ponta, é que quando fazemos esse debate esquecemos quem é que está mandando. O policial que matou está ali cumprindo ordens de uma corporação que tem uma cultura organizacional, que tem toda uma lógica de funcionamento de trabalho.

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    Me incomoda quando a gente só olha para a ponta da linha e aí acaba ficando que o policial é a maçã podre, como se ele sozinho fosse a representação de todos os problemas da polícia. A gente sabe que a politização das políticas de segurança e das polícias existe. Quando o cara fala que vai ligar para o secretário de Segurança Pública, a chance de ele ligar para deputado conhecido, para amigo empresário para reclamar do policial é enorme. A questão é saber como é que a profissão lida com isso, porque esse tipo de coisa acontece.

    Ponte – Em 2017, a gente teve aquela fala do comandante da Rota de que a abordagem nos Jardins (bairro rico) tem que ser diferente das periferias, o que evidencia que é uma ação que vem de cima para baixo nas polícias…

    Samira – Exato. Então [há que compreender] essa reação por parte do policial. Eu me solidarizo e eu fiquei mal [de ver a cena]. É um absurdo a forma como aquele cara trata o policial que estava apenas fazendo o seu trabalho, estava atendendo uma ocorrência de violência doméstica. Se o cara tava tratando o policial daquele jeito, imagina o que ele não faz com a companheira dele. Eu imagino que o policial, quando foi atender a ocorrência, percebeu que o cara tava tão descontrolado que imaginou que podia acontecer o pior. Chama atenção que o padrão de atuação, o padrão de uso da força é muito distinto. Ainda que ele tivesse dado voz de prisão e automaticamente ter levado o cara para a delegacia na marra, isso impunha certos riscos. Não é ruim que ele tenha chamado um apoio, o importante era prender o cara. Mas a gente sabe que a forma como os policiais atuam na periferia é muito diferente. Eu acho que a discussão em si, que também é a discussão nos EUA, é a desigualdade, tanto social quanto racial. No Brasil, esse policial que tá na ponta da linha em geral também vem da periferia. A própria corporação incentiva que você tenha um tipo de doutrina e um modelo de trabalho em áreas periféricas que demonstrem que aquela vida, aquele cidadão que está ali, vale menos.

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    Ao passo que, quando este policial atua em um bairro de classe média alta, aquela vida vale mais e ele está sob a discussão pública e ele tem muito medo das reações que podem ocorrer se ele tiver algum deslize. Infelizmente, isso reforça ainda mais essa desigualdade econômica e de raça, em todos os níveis, na forma que a vida de cada cidadão vale nesta cidade, neste estado, neste país. Isso ficou muito claro. Mesmo diante de todos os absurdos que aquele cara disse para o policial e a forma como ele o agrediu, é como se o fato de ele estar em uma área rica, falando que ganha 300 mil por mês, fizessem dele uma pessoa que está sob um manto de proteção que o Estado não pode interferir de nenhum modo. É muito frustrante ver isso, tanto pela humilhação que o policial foi submetido quanto pela injustiça que é você pensar que fica tão evidente a diferenciação que a polícia faz quando ela lida com uma pessoa da periferia e uma pessoa de bairro de classe média alta. Não só do policial, mas de todos que estavam na ação. Em uma viatura, há pelo menos dois PMs. Eu imagino que era o colega que filmava a cena.

    Ponte – Pensando em âmbito nacional, recentemente tivemos uma ação da PM de Minas Gerais, que usou como justificativa, para invadir e agredir pessoas na periferia, o som alto e “palavras de baixo calão”. Nessa situação de agora, foram usadas várias palavras ofensivas. Esses dois episódios ilustram bem essa diferenciação?

    Samira – Com certeza. Isso é uma realidade em todo o canto. Na manifestação do domingo (31/5) também vemos isso. Tem uma criminalização da pobreza, um julgamento de valor ideológico que tá implícito ali o tempo todo. Quando o policial militar aparece escoltando aquela mulher [branca] que estava com um taco de beisebol na mão e os jornalistas falando que aquilo é uma arma branca, no mesmo ato eles prenderam três manifestantes do ato pró-democracia porque estariam com canivetes, que é uma arma branca.

    Como você prende um manifestante que está portando um canivete e não prende a manifestante que está com um taco de beisebol ameaçando os manifestantes que estavam pedindo democracia? É absurdo. Ele vai conduzindo a mulher com todo o cuidado, como se ela fosse uma vítima ali. Isso é o que mais me preocupa. Essa diferenciação, essa desigualdade na forma de tratamento tem assumido uma outra escala, uma outra conotação. Se antes era algo que estava mais restrito a bairros ricos, agora isso também tem um componente ideológico. Se eu simpatizo com a sua ideologia, eu pego leve com você.

    A gente está diante de um momento crucial de politização das polícias que mostra cada vez mais como essas desigualdades são reforçadas. Isso é muito preocupante, porque vai mostrando a incapacidade de controlar os policiais. Se você não controla a arma do Estado, você faz o que?

    Ponte – Há distinção na forma que a lei é assegurada?

    Samira – Eu já ouvi muitos casos de policiais que tiveram problemas por ter prendido o filho de não sei quem e aí o policial é transferido de batalhão. Se fez tal coisa que desagradou algum político, é transferido de cidade. Só quem tá ali na ponta no dia a dia sabe, mas isso é algo possível de rolar, de acontecer. Infelizmente, a gente não consegue blindar as polícias da política. Se as polícias fossem um ator estatal puramente técnico, que não está sujeito a essas mudanças políticas, seria uma coisa. Mas não é assim que acontece. A gente sabe que as polícias foram, e são ainda hoje, uma base importante do eleitorado bolsonarista. Elas tomaram parte. Toda a discussão sobre a quarentena em São Paulo e a fiscalização ficaram basicamente centradas no fato de que a polícia não fosse reprimir porque o presidente [Jair Bolsonaro] tem se posicionado contra, mas aí eles [policiais] obedecem ao governador [João Doria] e ideologicamente são mais ligados ao presidente. Quando você tem esse nível de politização das polícias, é muito difícil você falar para esse policial que ele tem que fazer cumprir a lei, não importa quem esteja do outro lado. Quem vai arcar com as consequências disso é esse policial que está na ponta. 

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    Por isso que eu reforço que esse é um exemplo da desigualdade que se impera na abordagem policial em diferentes partes da cidade, mas não nos cabe condenar esse policial que já foi tão humilhado diante de uma agressão tão absurda. A gente tem que exigir que a polícia atue respeitando a lei e os direitos básicos também dentro na periferia. A polícia não tem que ser truculenta com o cara que é rico, ela tem que respeitar os direitos de quem mora nas periferias. O problema é estrutural. 

    Por vezes a própria Polícia Militar coloca como desvio individual de conduta. Se o policial aperta o gatilho, se o policial entende que ele pode bater em uma pessoa que ele abordou, se ele entende que pode matar uma pessoa que ele abordou é porque ele sabe que existem mecanismos que o protegem de algum modo. Se ele não é punido quando ele comete atos ilegais, ele vai continuar fazendo. Por outro lado, se ele é punido por fazer o trabalho dele, ele vai pensar duas vezes antes de executá-lo. A gente está há anos luz de igualdade nas intervenção e abordagens policiais.

    Ponte – Qual a similaridade com com o modo que as polícias agem nos EUA?

    Samira – Nos EUA, são policiais brancos matando pessoas negras. No Brasil, há muitos policiais negros ou periféricos. Por isso é tão difícil falar sobre racismo com a Polícia Militar. Os caras não percebem isso como racismo. Eles não percebem que os símbolos e os signos da juventude negra quando associados à criminalidade são uma forma de racismo. Eles não percebem que, ao abordar mais pessoas negras do que pessoas brancas, eles estão tendo condutas racistas. É muito mais complexo, envolve uma sutileza que a gente não vê nos EUA, que é um país que foi dividido, que até a luta pelos direitos civis, haviam lugares para pessoas brancas e para pessoas negras. É muito distinto esse debate aqui no Brasil.

    Ponte – Pensando essa estrutura dentro das polícias, a gente percebe que o policial sente a necessidade de acionar os superiores dele e eles filmam toda a ação. Isso foi para proteção?

    Samira – Total. Ele certamente estava com medo de algum tipo de reclamação que teria contra ele e tentou se resguardar. Quem que manda na polícia? Por um lado você precisa garantir que o policial que está na ponta tenha mecanismos de controle que garantam que esse policial aja de acordo com a lei. É muito ruim quando cumprir a lei o deixa inseguro, quando cumprir a lei é algo que pode reverberar de forma negativa na carreira dele. Isso mostra como a gente avançou pouco nessa ideia, como politizamos a polícia de tal modo que eles são atores que estão ali para garantir os direitos de alguns. No dia que a gente conseguir que essa polícia seja uma polícia que vai proteger a todos, que vai garantir a segurança de todo mundo e quanto tiver que prender alguém vai prender e passar por todos os trâmites legais, talvez a gente tenha um salto civilizatório. 

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    A gente vê isso nos discursos dos porta-vozes da polícia. Ontem o porta-voz da Polícia Militar disse que a polícia estava lá para garantir o direito do cidadão de bem. Não, a polícia está lá para garantir o direito de todo cidadão. Se um cidadão infringiu a lei de algum modo, ele deve ser preso, conduzido para uma delegacia. Quando a própria população já admite de cara que ela existe para garantir o direito de uma determinada parcela. Quem é o cidadão de bem? Onde tá escrito na lei quem é cidadão de bem? É uma categoria arbitrária. O cidadão de bem é o bolsonarista? É o rico de Alphaville? Essa politização é perversa e esse quadro tende a se agravar com tantos policiais entrando para a política, em cargos eletivos. Isso é muito ruim. Está na hora do Brasil ver isso de forma mais séria. O policial, hoje, pode se ausentar para concorrer a uma eleição e se perder volta a ser policial. Isso faz sentido? O que estamos estimulando com isso? Ele deveria sair da carreira para tentar a política.

    Ponte – Pensando nessa politização, se cria aquela percepção de que, de fato, a PM defende o rico, branco de Alphaville e não o pobre, o negro, que mora na periferia?

    Samira – Historicamente foi isso. A corporação foi criada como uma força policial para defender os interesses do Estado. Ao longo do tempo, ela teve o seu alvo preferencial. Era o escravo, era quem não seguia os padrões da sociedade, quem era da nobreza era bêbado, mas se era um pobre era um baderneiro. Se a gente for pensar, desde a fundação da nossa nação, as forças policiais, e isso não é exclusivo só da polícia de SP, foram criadas para garantir os interesses do Estado. Quem é o Estado? É uma elite que se revesa no poder, uma elite dominada por grandes famílias. Quando você está na ponta de um jogo como esse, você sabe que o seu lado é mais fraco. Ele [policial que atuou em Aphaville] sabia que a corda estouraria para o lado mais fraco. Por isso, ele estava reunindo provas de que ele estava certo. 

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    Em momentos como esse, é muito interessante a história da câmera corporal. A gente não tem nenhuma ilusão de que a câmera corporal vai fazer com que a polícia mate menos, que isso vá diminuir a letalidade da polícia, mas ela tem aspectos importantes do ponto de vista de controle que só podem ser alcançados assim. Você garantir que tem um dispositivo, acoplado ao policial, que está filmando toda a abordagem, ele vai pensar duas vezes antes de ser violento com alguém.

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