Por que Marcola não vai votar em Lula

Constituição prevê direito ao voto apenas a presos provisórios que estejam com a situação regular na Justiça Eleitoral, o que representa menos de 1% do eleitorado nacional e não é o caso do líder do PCC

Um detento em uma prisão de Guareí, no estado de São Paulo, em 2020 | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

A campanha do presidente Jair Bolsonaro (PL), que disputa a reeleição, tem investido em atacar a votação de pessoas presas nas eleições deste ano, além de vincular um suposto apoio do crime organizado ao ex-presidente Lula (PT), seu adversário.

No início de outubro, antes do primeiro turno, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, determinou a retirada do ar de reportagem do portal O Antagonista cuja manchete era Exclusivo: em interceptação telefônica da PF, Marcola declara voto em Lula.

A notícia foi replicada e repercutida à exaustão e mostrava trechos de uma interceptação feita pela Polícia Federal em maio deste ano, quando Marcos Willians Herbas Camacho, conhecido como Marcola e líder da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), tratava sobre questões carcerárias com interlocutores e fazia comentários sobre o cenário político, chamando Lula, por exemplo, de “pilantra” e Bolsonaro de “sem futuro”, mas dizendo que ambos não poderiam ser equiparados. Moraes argumentou que o diálogo foi colocado fora de contexto e que não apresentava declaração explícita de voto.

E, mesmo se Marcola declarasse apoio, não poderia votar. Isso porque a Constituição Federal determina, em seu artigo 15, a perda ou suspensão dos direitos políticos, ou seja, de votar e se candidatar a cargos eletivos, em alguns casos, como incapacidade civil absoluta, condenação criminal transitada em julgado (o que significa sem possibilidade de recurso) enquanto durar seus efeitos e improbidade administrativa. O líder do PCC se enquadra no caso da condenação transitada em julgado pois está cumprindo penas que somam a mais de 330 anos de prisão.

Outro que também não pode votar, apesar de ter declarado apoio de forma explícita a Bolsonaro, é Bruno Fernandes de Souza, o goleiro Bruno. Em 2013, ele foi condenado a 22 anos de prisão por matar, esquartejar e sumir com o corpo da ex-companheira, Eliza Samudio, com quem tem um filho. A pena foi revista para 20 anos em 2017 e, desde 2019, a cumpre em regime de semiaberto domiciliar, ou seja, tem autorização apenas para trabalhar ou estudar fora e deve retornar para casa, onde deve permanecer das 20h às 6h, além de outras restrições, como não poder frequentar bares e afins.

Os únicos presos que têm direito ao voto são os provisórios, ou seja, os que ainda aguardam um julgamento. Os dados mais recentes do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) são de 2021 e informam 219.269 presos provisórios. Já o painel de inspeções em estabelecimentos prisionais, compiladas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), indica 177.297 pessoas presas provisoriamente, contando com inspeções até setembro de 2022.

A Ponte não utilizou as estatísticas do Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP) do CNJ pois, além de não indicar data de atualização, a assessoria informou que o banco passa por reformulação e não indicou o uso dos dados. Mesmo assim, não é todo esse contingente que vota, já que as pessoas precisam estar com a sua documentação e situação regulares diante da Justiça Eleitoral.

O TSE levantou que, dos presos provisórios, apenas 12.903 estavam aptos a votar nas eleições deste ano, ou seja, estavam com a situação regular. Considerando que no Brasil há 156.454.011 eleitores que podem votar, os presos provisórios representam bem menos que 1% do eleitorado: são 0,008%. Há também funcionários que votam dentro das unidades, então o número de pessoas votantes no sistema carcerário sobe para 14.653.

Dados do TSE apontam que há sete estados que não têm nenhum preso provisório apto para votar: Acre, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Tocantins. Já o que mais tem presos provisórios que podem votar é São Paulo, que também é o maior colégio eleitoral do país, com 5.236 eleitores.

E o número de presos que de fato votaram no primeiro turno ainda pode ser menor. Apesar de ser uma previsão constitucional, o tribunal só passou a regulamentar o voto dos presos provisórios em 2010, a partir da Resolução 23.219, que foi atualizada em 2021.

Uma das regras é que só será criada uma seção eleitoral dentro de uma unidade prisional, ou seja, uma urna será levada para votação, se no local tiver, no mínimo, 20 eleitores aptos. Se tiver dois, quatro ou 15, eles não votam. Isso também se aplica no caso de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, que têm direito ao voto de forma facultativa a partir de 16 anos e obrigatória aos 18.

“Muitas pessoas presas não têm seus documentos regularizados, então elas não conseguem votar, não existem mutirões prisionais para regularizar a documentação e não conseguem exercer seu direito ao voto”, explica Sofia Fromer Manzalli, pesquisadora do Programa Justiça Sem Muros do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC).

“Na prática, muitas pessoas presas e em cumprimento de medida socioeducativa acabam não tendo esse direito”. Esse também é um problema, por exemplo, no caso de egressos do sistema prisional que cumpriram a pena, mas não conseguem pagar multas e acabam ficando com os documentos irregulares enquanto têm a dívida.

Essas informações não constavam numa peça eleitoral veiculada pela campanha do presidente Jair Bolsonaro. No vídeo, que passou ser exibido em 11 de outubro, algumas manchetes eram reproduzidas com o seguinte texto: Sabe onde Lula teve mais votos no primeiro turno das eleições? No presídio de Tremembé, Lula teve 98% dos votos dos presos. Lula recebe 90,3% dos votos em presídios da Paraíba. Lula é o mais votado no presídio Urso Branco. Os criminosos escolheram Lula para presidente. É a vida da sua família em perigo. Cuidado em quem você vai votar.

A cidade de Tremembé, no interior paulista, tem quatro penitenciárias, mas apenas duas constam como locais de votação no TSE: a Penitenciária Feminina II e a Penitenciária I Tarcizo Leonce Pinheiro Cintra, que é masculina, sendo que tanto presos provisórios quanto funcionários podem votar nesses locais.

Na feminina, que abriga 430 detentas, 76 pessoas estavam aptas a votar e 62 votaram no primeiro turno para presidente. Foram 43 votos em Lula, 14 em Bolsonaro e três em Simone Tebet, o restante foram brancos e nulos (três de cada). Já na masculina, que abriga 1.848 presos, 111 pessoas estavam aptas a votar, sendo que 94 compareceram. 91 pessoas votaram em Lula e duas em Bolsonaro. Uma votou nulo. A porcentagem de 98% dita na propaganda corresponde apenas aos votos válidos na penitenciária masculina de Tremembé.

No presídio de Urso Branco, que fica em Porto Velho (RO), 49 pessoas estavam aptas a votar, sendo que 33 compareceram. 27 votaram em Lula e seis em Bolsonaro. De acordo com dados de maio da Secretaria de Justiça de Rondônia, essa unidade tem 472 pessoas custodiadas (não há menção da quantidade específica de presos provisórios).

Além da campanha do ex-presidente ter entrado com uma ação no TSE, a Pastoral Carcerária Nacional também entrou com uma representação ao tribunal e à Procuradoria-Geral Eleitoral para que a coligação de Bolsonaro se retrate publicamente.

A entidade argumenta que a propaganda cria “desinformação e alarmismo”, já que o número de presos votantes é ínfimo e que as declarações violam o princípio constitucional de presunção de inocência, já que os presos provisórios são aqueles que ainda não foram julgados.

“O direito ao voto [do preso] já é um direito muito pouco garantido e qualquer forma de ataque a ele prejudica isso porque já é uma população totalmente rejeitada e marginalizada”, pontua Mayra Balan, advogada da Pastoral Carcerária Nacional. “Quando a propaganda fala que bandidos votam no Lula, há uma superestimação de presos provisórios que não foram condenados criminalmente e, mesmo se fossem, a propaganda contra o Lula tenta tornar uma coisa pejorativa.”

Sofia Fromer, do ITTC, concorda. “É tornar a pessoa presa um cidadão de segunda classe”, critica. “Tanto o candidato Bolsonaro como o Tarcísio [candidato a governador pelo Republicanos], em São Paulo, estão fazendo um forte embate contra os sistemas de justiça e carcerário. O Tarcísio vem falando sobre a redução da maioridade penal como proposta, de impedir a saidinha das pessoas presas, sempre elencando um elemento de periculosidade a essas pessoas”, pontua.

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“O Bolsonaro gosta de falar que o Lula é um ex-presidiário e toda a conotação que isso tem, de que é perigoso para a sociedade, é um criminoso, os cidadãos de bem precisam estar livres dessa pessoa, todo esse discurso de ‘bandido bom é bandido morto’, de criar essa dicotomia entre as pessoas presas, que são tidas como más, e os cidadãos de bem que são bons e cumprem seus direitos e deveres, sendo que a gente sabe que isso é uma falácia”, prossegue Fromer.

“Não existe essa dicotomia, mesmo porque existem milhares de pessoas que não foram capturadas pelo sistema de justiça e pela seletividade penal que estão aí cometendo crimes, inclusive o presidente. Quem é perigoso? Quem está fazendo um orçamento secreto? Quem compra 51 imóveis com dinheiro vivo?”

O que diz o Depen

A Ponte questionou o Depen sobre a garantia de direito ao voto dos presos provisórios em relação à regularização de documentos, preparação das unidades para receber urnas e se campanhas de conscientização sobre o direito ao voto são realizadas, como prevê o TSE. A assessoria encaminhou a seguinte nota:

O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), por meio do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) firmaram Termo de Cooperação Técnica para o desenvolvimento de ações conjuntas entre as instituições, visando a cooperação para promoção da documentação civil das pessoas privadas de liberdade no sistema prisional, por meio da identificação biométrica e da emissão dos documentos necessários à individualização civil e administrativa dos presos.

O acordo de cooperação trata de ações formuladas no Termo de Execução Descentralizada do Departamento Penitenciário Nacional com o Conselho Nacional de Justiça, com recursos do Fundo Penitenciário Nacional no valor de R$35.000.000,00 (trinta e cinco milhões de reais).

Em agosto de 2021, foi lançado a Ação Nacional de Biometria e Documentação Civil de Pessoas Presas. Em outubro do mesmo ano, o Depen e o CNJ finalizaram a entrega dos equipamentos para esta ação. A ação garante uma estrutura nacional permanente para identificação civil de pessoas presas por meio de biometria, com foco na emissão de documentos para acesso a políticas de cidadania.

Foram distribuídos 5.400 kits de coleta biométrica aos Tribunais de Justiça Estaduais, Federais e Militares para implementação de um fluxo contínuo e nacional de Identificação Civil desde a entrada das pessoas no sistema prisional.

A identificação das pessoas privadas de liberdade é requisito fundamental ao exercício da cidadania, possibilitando o acesso a políticas e serviços públicos, facilitando a reintegração à sociedade por meio do estudo, trabalho e demais políticas sociais.

Reportagem atualizada às 18h33, de 26/10/2022, para incluir resposta do Depen.

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