Por que o racismo também mata policiais

    Policiais negros, como Leandro Martins e Juliane dos Santos, são 35% da corporação, mas correspondem a 65% dos policias mortos. Segundo especialistas, racismo estrutural mantém policiais negros nos postos mais baixos da corporação, que sofrem mais risco de morte

    Leandro e Juliane: negros e ocupando os postos mais baixos da PM, ambos terminaram assassinados

    A pele negra é sempre um alvo, seja por quem veste farda, seja quando ela própria veste a farda. As pessoas negras, que correspondem a 56% da população brasileira, mas representam 79% dos mortos pela polícia, também são as principais vítimas da violência que atinge os próprios policiais, segundo dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, referentes a 2019. A mesma pesquisa aponta que os negros são 35% dos policiais, mas correspondem a 65% dos policiais asssassinados.

    Uma dessas mortes foi a do soldado da Polícia Militar Leandro Martins do Patrocínio, 30 anos, confirmada no último domingo (6/6) pela Secretaria da Segurança Pública de São Paulo. O corpo de Leandro foi encontrado  em uma área ao lado da Favela Heliópolis, no Sacomã, zona sul da capital paulista. O jovem, que tinha uma filha pequena e era casado, estava desaparecido desde o dia 29 de maio, quando foi visto pela última vez à paisana, sem uniforme da corporação. 

    Outro caso rumoroso envolvendo a morte de um policial foi a da cabo Juliane dos Santos Duarte, 27 anos. Mulher negra, lésbica e periférica, ela foi morta na Favela de Paraisópolis, em agosto de 2018, por integrantes da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital). 

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    Na visão do cientista em humanidades Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a prevalência da morte de homens negros na Polícia Militar se dá por conta do racismo estrutural. “A falta de valorização profissional dos policiais da ponta é algo que pesa bastante, mas ao mesmo tempo pesa especificamente para os negros por questões internas da polícia. O racismo é estrutural e estruturante. A maioria dos policiais morre fora de serviço em bicos para complementar renda no momento em que eles estão sem apoio tático, operacional, informacional e de recursos humanos também dos colegas, fazendo bicos com segurança privada. E isso é uma consequência da baixa valorização”, afirma.

    O pesquisador explica que os os salários são baixos e os planos de carreira, muito deficitários. “Se socialmente os negros estão sujeitos a ocupar as posições menos prestigiadas, menos valorizadas e remuneradas nos postos de trabalho gerais, na polícia não seria diferente. A diferença é que na polícia existe um risco à vida inerente a essas posições desprestigiadas”, aponta. 

    Leandro Martins Patrocínio estava lotado no Batalhão de Policiamento Rodoviário e foi encontrado morto | Foto: Reprodução

    Em números absolutos, os Estados registraram 172 policiais civis e militares vítimas de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) em 2019. Desse total, 62 (6 policiais civis e 56 policiais militares) foram vitimados em serviço, e 110 (9 policiais civis e 101 policiais militares) foram mortos fora de serviço, em confronto ou por lesão não natural, essas mortes representaram 64% do total de policiais mortos. Já dados do Monitor da Violência, do portal de notícias G1, registraram 198 policiais assassinados em serviço e de folga em 2020, um aumento de 10% em relação ao ano anterior. 

    O predomínio é de negros entre as vítimas da violência letal na categoria de profissionais de segurança pública, assim como nos indíces gerais de homicídios, em que negros responderam por 74,4% dos 47.796 homicídios ocorridao em 2019.

    A professora Jacqueline Sinhoretto, que coordenou a pesquisa, líder do GEVAC (Grupo de Estudos Sobre Violência e Administração de Conflitos), da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), avalia que a maior parte dos policiais negros estão na base da corporação. “A polícia é uma organização de dupla entrada. Os subordinados não têm a possibilidade de ascender à chefia, só se prestarem outro concurso. E os oficiais já entram chefes, nunca foram soldados. Então, na prática temos um oficialato de maioria branca. Há oficiais negros, mas são a franca minoria”, explica.  

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    A violência que vitima policiais geralmente ocorre fora de serviço, esclarece a professora. “Não sendo resultado de confrontos armados, mas de situações que o policial é surpreendido na sua vida pessoal, os policiais negros provavelmente estão nas posições de salários menores, residem em regiões da cidade menos protegidas. E, pela questão salarial, devem estar mais envolvidos nos bicos, onde surgem conflitos violentos”, afirma.

    Acúmulo de desigualdades

    A junção de desigualdades é um dos principais fatores que culminam no maior número de mortes entre policiais negros. É o que pensa o pesquisador Paulo César Ramos, doutorando do programa de pós-graduação em sociologia da Universidade de São Paulo (USP). “Seja qual for a desigualdade, ela é passível de sofrer acúmulos. famílias desestruturadas, baixa escolaridade e salários baixos, no caso dos policiais negros, o que existe é isso, um acúmulo dessa desigualdade que existe em virtude da existência de racismo”.

    O pesquisador da USP, que atualmente coordena o projeto de pesquisa, formação e mobilização Reconexão Periferias e é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, coordenando o Projeto Memória e Identidade do Ativismo Afro Brasileiro no AFRO – Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Raça, Gênero e Justiça Racial, diz ainda que a questão racial é discutida dentro das polícias brasileiras, mas não no sentido de combater efetivamente as formas de racismo. “Existem várias iniciativas de discussão da questão racial Brasil afora. Mas uma corporação nunca vai fazer isso de boa vontade, sempre isso acontece depois de alguma pressão, por exemplo, quando acontece algum caso de racismo na atuação da polícia”, diz. 

    Além disso, Ramos cita o exemplo da existência de grupos de policiais negros que se organizam em coletivos para lazer e cultura. “Desde policiais que estão do candomblé, ou então policiais que jogam capoeira, entre outros, isso não significa que essa discussão se dê numa perspectiva progressista de ampliação de direitos e de reconhecimento de direitos. Muitas vezes essas discussões podem se dar de forma equivocada, podem se dar em uma perspectiva que não aponte para a reparação de problemas internos da corporação.”

    PM Juliane dos Santos Duarte | Foto: arquivo pessoal

    Discutir o racismo e a maior vitimização de policiais negros nas policias ainda é um desafio, segundo Paulo. “De uma perspectiva progressista isso acontece pouco, ela pode acontecer sem qualquer de transformação institucional e, muitas vezes, na perspectiva de reforçar práticas institucionais que são indubitavelmente preconceituosas e pode, inclusive, haver a discussão da questão racial para a promoção do racismo e da discriminação”, aponta. “Policiais negros acabam sendo aqueles que estão mais colocados em posições que envolvem o confronto, que são mais expostos a troca de tiros.”

    Trabalho invisível

    A morte de jovens negros e periféricos pela policia e a morte de policiais negros não devem estar dissociadas do racismo estrutural que permeia o país, na visão do coronel reformado da PM Ibis Pereira, ex-comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro. “No fundo, esses dois fenômenos estão interligados. São manifestações da nossa incapacidade de lidar com o fenômeno criminal de uma forma racional, coerente, inteligente, baseada nos indicadores criminais, mas continuamos apostando na guerra como saída para esse problema”, aponta.

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    Segundo Ibis, que passou mais de 30 anos na corporação carioca, a polícia ainda é vista como uma esperança para juventude negra e pobre de ascensão social. “Essa base da Polícia Militar majoritariamente de negros e pobres é sinal também do racismo estrutural que existe no Brasil, da dificuldade dos negros e pobres ascenderem socialmente e que encontram na PM o meio de vencerem essas dificuldades que estão nas estruturas sociais desse país. Os negros acabam sendo vitimados pela falta de uma política pública adequada, pela falta de um modo inteligente de lidar com um fenômeno criminal, que não seja violência e guerra”.

    Para ele, o trabalho do policial na rua é invisibilizado, assim como a morte de pessoas negras e pobres, fora isso, a política de drogas centrada no enfrentamento, na guerra, contribui para a morte dessas pessoas, assim como a ausência de uma política de controle de armas e munições. “Uma sociedade que não se revolta diante de uma chacina promovida pela polícia, é a mesma que também não se revolta quando um policial negro morre, no fundo a sociedade despreza a atividade policial. Há uma mistura de indiferença e repugnância pela polícia”. 

    Enterro da cabo Juliane no Cemitério Municipal Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, em 7/8/18  | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    O policial na rua “deveria ser o estado democrático de direito fardado”, aponta o ex-coronel. “Eu não estou querendo isentar as instituições policiais das suas responsabilidades, porque elas têm responsabilidade, pois aceitam esse discurso fácil dos senhores da guerra. Mas tem um problema de fundo que, se a gente não enfrentar, a gente volta ao problema: o problema da estrutura, das políticas públicas e como elas estão desenhadas.”

    Racismo negado

    Entre 2013 a 2017, a socióloga Luiza Correa de Magalhães Dutra, mestra em Ciências Criminais e integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal da PUC-RS realizou a pesquisa Policiamento e relações raciais: estudo comparado sobre formas contemporâneas de controle do crime. Junto com outros 17 pesquisadores, o estudo contou com 80 policiais entrevistados nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Distrito Federal e chegou a conclusão de que são poucos os policiais que admitiram a existência do racismo institucional. 

    A pesquisa afirma que “a abordagem policial é voltada para a vigilância de pessoas racializadas, através dos tipos suspeitos construídos pelos saberes informais do policiamento” e que “em geral, são policiais negros que afirmam este diagnóstico”.

    A pesquisadora, que entrevistou dez policiais negros da cidade de Porto Alegre, afirma que o racismo é percebido dentro da instituição por eles, sobretudo no período em que estão fora do trabalho. “Eles vão sentir medo de serem abordados por colegas, durante o dia a dia, quando eles não estão fardados, dirigindo o seu carro, indo pra casa, fazendo alguma outra coisa, eles têm medo de serem abordados por policiais. Dentro da Brigada Militar [nome da PM gaúcha], eles reconheciam esse racismo no momento em que viam que os postos hierárquicos de maior poder dentro da polícia não eram de um policial negro.”

    Nas entrevistas, segundo Correa, os policiais negros de Porto Alegre percebem que a possibilidade de os policiais crescerem e chegarem até um posto hierárquico mais alto é muito difícil. Fora isso, os policiais negros sofriam piadas dos colegas de trabalho. “Eles sofriam e se davam conta de que de piada não tinha nada. Então desde a piada de ‘aqui não é teu espaço’, ou chamar de ‘negão’ foram algumas questões que eles iam trazendo e se davam conta desse racismo dentro da polícia”, afirma.

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    Ainda que alguns admitissem o racismo, a maioria negava, segundo ela, o que por fim acaba por encobrir uma lógica racializada da ação da polícia. “A violência vai acabar sendo a categoria constitutiva e construtora dessas relações entre o policial e o abordado, gerando uma suspeição racializada que vai estar vinculada ao que a gente pode chamar de uma identidade criminal. Isso é um tipo de operação que se manifesta dentro dessas formas de trabalho e da polícia. Não só na instituição, mas também fora dela.”

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