‘Por que vão me prender?’, diz menino negro no Shopping Higienópolis

    Garoto de 17 anos que via no local uma opção de lazer questiona shopping que foi à justiça pedir permissão para expulsar as crianças de rua

    Eles não têm o direito de prender as pessoas assim do nada”, contesta Samuel. | Foto: Julia Lee/Ponte Jornalismo

    Uma linha é um elo. Deixa rastro. Não é estática. Por onde passa deixa um pedaço seu. Samuel é como um novelo. Ao longo dos 2,5 km que caminha da Favela do Moinho, localizada nos Campos Elíseos, até o bairro Higienópolis ele deixa sua marca de fome e pobreza. Apesar do sorriso fácil e os olhos cor de caramelo, quem mora e frequenta o bairro rico da zona central de São Paulo vê em Samuel um incômodo, não um menino.

    O garoto, que precisou virar homem mais cedo, via dentro do Shopping Pátio Higienópolis a possibilidade de ser criança. À esquerda da entrada principal, na livraria Saraiva, ele subia a pequena escada rolante para alcançar uma realidade muito distante. Naquele comércio, Samuel buscava uma pequena abertura para se aproximar da realidade das crianças do bairro. Mesmo mudo ele dizia muita coisa. Ao sentar na poltrona e se divertir com o Play Station 4, ele dizia que também é criança. 

    Expulso ele não foi. Mas os olhares berravam: aí não é o seu lugar. Causa desconforto. Estranheza. Sensação de não pertencimento. É isso que eles querem. É isso que Samuel não entende: “Pessoal vai ficar olhando assim para você só porque não tem umas boas condições?”

    Contra a rebeldia do menino, a loja optou por tirar aquele único objeto que o tornava uma criança. O Play Station 4 não existe na Saraiva desde junho do ano passado. Tudo para afastar crianças como Samuel. A justificativa? Evitar furtos, diz um funcionário. Na verdade, são eles que furtam o pouco de infância presente na alma do menino, obrigado a sustentar a família de nove irmãos e a mãe. Junto ao video game eles levaram a certeza de que crianças como Samuel são homens, não meninos.

    Ainda assim, Samuel não se intimidou. O shopping continua sendo um atalho para as suas caminhadas diárias. Com os pés apoiados em um chinelo de dedos ele percorre os corredores do local por cerca de seis minutos, entrando pela Rua Dr. Veiga Filho e saindo pela Avenida Higienópolis. Vez ou outra o menino da Favela do Moinho para em uma loja de produtos eletrônicos para, mais uma vez, jogar. Aos olhares dos frequentadores do lugar isso é o cúmulo da afronta. 

    Pela televisão, o garoto de 17 anos descobriu que sua presença no Shopping Higienópolis era caso de polícia. Os representantes legais do local queriam tomar posse das crianças e entregá-las a Polícia Militar. Para eles, as crianças “vagam pelo Shopping Center sem qualquer instrução, agindo de modo a vandalizar e causar o caos”. Samuel foi o caos ao levar a fome a um banquete. 

    A juíza Mônica Gonzaga negou o pedido: “Uma atitude discriminatória e ilegal”. Para o menino, a atitude se resume a uma frase: preconceito com os pobres. “Eles só querem ganhar dinheiro e nunca pensam no próximo. Essa é a verdade”.

    Tentaram, mais uma vez, intimidar o menino favelado. Mas não sabiam que desde novo ele aprendeu a não se quebrar com qualquer porrada. Ele aprendeu que para sobreviver precisa enfrentar. Há quarenta minutos ele tinha pisado no local que queriam expulsá-lo.

    – Você tem medo de continuar andando lá depois desse episódio?

    – “Não, por que eles vão me prender? Se eu não estou fazendo nada de errado? Eles não têm o direito de prender as pessoas assim do nada.”

    Foto: Julia Lee/Ponte Jornalismo

    Samuel olha desconfortável para o relógio. Sentado em sobre um papelão ele foi intimado a conseguir a sobrevivência do dia em meia hora. Na entrada principal do Pão de Açúcar da Avenida Angélica, o segurança passa e fita o menino de touca e bermuda. “Daqui a pouco eu saio fora”, diz tranquilizando o homem fardado.

    Em meia hora conseguiu uma bolacha. Saiu de casa sem prometer nada para a mãe. Não tem como adivinhar a compaixão do outro. É melhor não prometer para não decepcionar. 

    Um dia, ele ganhou um “monte de coisa”. Botou no bolso cem reais. Juntou com os outros trinta que havia conseguido antes e meteu o pé para casa. Deixou 50 com a mãe e ficou com 80. O dinheiro ficou ali, guardado, sem propósito de investimento. “Vou andando, na hora que eu vejo alguma coisa que eu quero comprar eu vou lá e compro”.

    Os 80 reais que lhe pareciam uma fortuna podem custar o valor de um único prato de comida dentro do shopping. Ali, se Samuel pudesse escolher um presente ele queria um tênis. Pergunto qual: “Qualquer um, não dá para escolher”. Mas e se você pudesse escolher?, questiono. “Ia escolher um Mizuno preto fosco”. Nada de muitas cores. Samuel cansou de chamar a atenção e receber olhares de todos os tipos. “Gosto de ficar na minha só”. 

    Às 16h40, Samuel acomoda o seu papelão a poucos metros do Shopping Higienópolis, a fim de conseguir uns trocados e “cair fora”. O tempo na entrada do mercado havia se esgotado. 

    Cruzo com ele pela última vez e ele pergunta qual era mesmo o meu nome. “Mariana”, digo. Ele sorri, leva as mãos à cabeça e solta: “Pode pá”. Ele estende a mão direita para bater na minha. Finaliza com um “soquinho”. Sorri. Se despede.

    Outro lado

    A Ponte procurou as assessorias de imprensa da editora Saraiva e do Shopping Pátio Higienópolis, mas não obteve retorno até a publicação.

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