Práticas inconstitucionais da GCM atropelam políticas de saúde na ‘Cracolândia’

Cada vez mais armada e militarizada, Guarda Civil Metropolitana é usada como polícia contra pobres e negros no centro de São Paulo

Guardas algemam e levam pessoas algemadas no centro de São Paulo, em 14/06/2022 | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

O cheiro de queimado preenche o ar. É por volta das 15h30 do dia 14 de julho de 2022, e os burburinhos se juntam às músicas de caixas de som. Contra o muro e as portas de metal de um estabelecimento abandonado da avenida Duque de Caxias, em Campos Elíseos, na região central da cidade de São Paulo, aglomeram-se mulheres e homens, de maioria preta e parda, quase todos em situação de rua. Ali, as pessoas fazem de tudo: alimentam-se, conversam, compram drogas, bebem, protegem-se coletivamente das violências das ruas e, principalmente, unem-se para fumar pedra. Esse tipo de concentração em torno do uso do crack foi apelidado de fluxo. Em menos de uma hora, o cenário muda.

Entre as 16h20 e as 17h30, as pessoas começam a se locomover. Não porque querem, mas porque estão sendo obrigadas. Agentes da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana (GCM) cercam a esquina entre as avenidas Rio Branco e Duque de Caxias. Os indivíduos seguem em direção à Sala São Paulo. De lá, são novamente “tocados” até uma pequena praça na rua do Triunfo. Chegando, são expulsos outra vez e voltam para o lugar inicial. 

No dia seguinte, a mesma cena se repete na lateral do Teatro de Contêiner Mungunzá, na rua dos Gusmões, no mesmo bairro. Tem sido assim desde maio, quando as Polícias Civil e Militar e a GCM realizaram mais uma intervenção violenta para acabar com na região pejorativamente chamada de “Cracolândia”. Na época, a concentração de pessoas que usavam crack era quase que restrita à Praça Princesa Isabel. Mas, a partir da operação, o fluxo migrou para 16 novos pontos espalhados por um raio que não ultrapassa 750 metros do lugar original, segundo relatório do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da USP.

A intervenção de maio deste ano envolveu mais de 600 agentes de segurança municipais e estaduais, culminando na prisão de 20 pessoas, a maioria sob justificativa de tráfico de drogas. Torturá-las com um cansaço recorrente, impelindo o fluxo a mudar de lugar, é uma estratégia para a descentralização do consumo de crack no território, que reúne milhares de pessoas desde meados da década de 1990.   

A política-não-oficializada de cansaço foi reconhecida pelo capitão da Polícia Militar de São Paulo Francisco Wohnrath. Na 4ª Reunião do Grupo de Trabalho Interinstitucional da Cracolândia, que aconteceu em  4 de agosto deste ano, ele disse: “Esse é o objetivo: a gente acabar com aquela massa e a gente tornar o ambiente inóspito pra eles, para que eles não se aglomerem”. O encontro, presidido pela deputada estadual Janaína Paschoal (PRTB-SP), visava debater as problemáticas envolvendo a região.

O papel da GCM

Por trás dessa estratégia, está o processo de militarização da Guarda Civil Metropolitana da Prefeitura de São Paulo. A ação atual na “Cracolândia” é encabeçada pela Polícia Militar, mas tem como responsáveis pela execução cotidiana os agentes da GCM.  

A base legal na qual se sustentam as guardas de todo Brasil está na lei 13.022, sancionada pela então presidente Dilma Roussef em 2014. Feita para regulamentar melhor o papel desse tipo de órgão, a lei determina que as guardas municipais devem não somente proteger patrimônios municipais, como também atentar à proteção da vida humana, abrindo, assim, precedente para uma defesa de um comportamento policialesco. 

A fim de apaziguar as interpretações díspares sobre o assunto, em agosto deste ano a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça definiu em jurisprudência que as guardas municipais do Brasil não têm direito de agir como polícias, não podendo executar, salvo em casos excepcionais, buscas, apreensões e abordagens.

“Não é preciso ser dotado de grande criatividade para imaginar — em um país com suas conhecidas mazelas estruturais e culturais — o potencial caótico de se autorizar que cada um dos 5.570 municípios brasileiros tenha sua própria polícia, subordinada apenas ao comando do prefeito local e insubmissa a qualquer controle externo”, afirmou, em seu voto, o ministro relator do STJ Rogerio Schietti Cruz. Na prática, as ações na cracolândia são a materialização desse potencial caótico. 

Apesar disso, para agentes da GCM que estão nas ruas, a estratégia de dispersão tem sido bem sucedida na proposta de cansar os usuários. É o que diz, sob condição de anonimato, um dos agentes abordados pela Ponte. “Querendo ou não, está dando o resultado que muita gente está saindo daqui porque o fato de terem que ficar circulando faz com que eles acabem saindo; se não, fica uma zona muito confortável eles ficarem num ponto só, onde eles fazem o uso de droga”, explica. Pessoalmente, porém, o guarda acredita que o que a GCM faz não resolve de fato a questão. “Não existe uma solução única”, reflete, complementando que a presença da corporação na ‘Cracolândia’ não está, na perspectiva dele, deixando o local mais seguro.

Comerciantes locais concordam com o ponto final do agente. Um balconista de uma loja de materiais de construção localizada atrás do ponto de ônibus da avenida Rio Branco avaliou que, após a dispersão da “Cracolândia”, a criminalidade na região aumentou. Questionado sobre os furtos e assaltos em frente ao estabelecimento em que trabalha, ele respondeu que ocorrem todos os dias, pricipalmente no final da tarde. “Agora tem mais porque está tendo esse fluxo da situação deles, da polícia que coloca eles pra cá, eles pra lá… Então sempre tem, todos os dias. Na verdade não deixou seguro, espalhou”, observa. Para ele, contudo, o movimento da loja não foi impactado.

“Eles abordam porque é negro, porque é trans”

A policização das GCMs, em especial a de São Paulo, vem ocorrendo abertamente, à revelia dos órgãos de controle, e influencia diretamente as políticas de drogas da cidade mais rica do país. Em dezembro de 2021, a Guarda Civil Metropolitana da capital recebeu 10 fuzis e 25 carabinas, apesar de um pedido de proibição de compra ter sido protocolado pela Defensoria Pública. 

De acordo com o promotor de justiça de Direitos Humanos Reynaldo Mapelli Junior, a GCM tem atuado de maneira inconstitucional na “Cracolândia”. Na visão do Ministério Público, que vai ao encontro da do STJ, a função da guarda é proteger patrimônio,  agentes de saúde e da assistência social, além da manutenção da limpeza urbana. Contudo, a atividade de polícia ostensiva, com abordagens a supostos criminosos, não faz parte do escopo da organização. “A polícia deve cumprir mandado de busca e apreensão quando o juiz profere decisões judiciais. Mas essa é uma atividade da polícia judiciária atuando por determinação do Poder Judiciário”, afirma o promotor.

As abordagens feitas pelos guardas civis metropolitanos resultam na apreensão de documentos e licenças médicas, o que é considerado infundado pelo magistrado. “Na verdade, eles abordam porque é negro, porque é trans, porque é tarde da noite”, defende. Em setembro de 2021, a 13ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo havia proferido, em instância recursal, duas liminares para que a atuação da Guarda Civil ocorresse sem “excessos que resultem em desvio de finalidade ou abuso de poder”. Porém a decisão não limitou as funções da GCM no território.

Na esquina das avenidas Rio Branco e Duque de Caxias, a alguns metros das pessoas que se reuniam para usar crack sob o sol quente daquela tarde de julho em que a Ponte acompanhou o movimento de dispersão, uma mulher magra, vestindo roupas rasgadas, parou para pedir um cigarro. Ela caminhava em direção ao fluxo. A pressa era porque estava no meio do “corre”, em busca de droga para usar ou para vender. Durante o pouco tempo em que ficou ali, fumando cigarro, deu o tom. Quase em uníssono com o comerciante que notou a criminalidade aumentar ao cair da noite, mas se referindo à truculência dos agentes públicos, ela também observou: “No fim do dia piora”.

Dispersão e sobrevivência

O que motiva as operações violentas, pelo menos no âmbito discursivo, é a internação das pessoas que ali se encontram. A tese foi confirmada pelo próprio capitão da PM na reunião do dia 4 de agosto que ocorreu na Alesp. Francisco Wonhrath ressaltou que, sem apoio da saúde e da assistência social, a polícia sozinha não resolverá o problema. “Seria o momento dessa ação coordenada para que a gente crie um ambiente inóspito para eles, de forma realmente a conduzi-los para a internação compulsória”, admitiu. 

Mas as ações não foram coordenadas. Mariane Alves, psicóloga da Prefeitura e interlocutora de saúde mental na região do centro, diz que sua área não foi ouvida quando ocorreu a intervenção na Praça Princesa Isabel em maio deste ano. 

“A gente não participa dessas discussões. A gente lida com o que ocorre desde essas ações. Claro que podemos ter opiniões pessoais a respeito disso, mas profissionalmente falando, desde o lugar de trabalhadores, a gente está aqui para atender a situação que ocorre com o usuário, o pedido de ajuda dele: se ele chegar ferido, machucado ou pedindo água, seja lá o que for”, afirma. 

Nos dias de operação, é comum que os profissionais notem maior demanda por parte das pessoas que estão sendo abordadas. Raquel Carvalho é diretora técnica do Centro de Referência em Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod), vinculado ao governo do estado. Para ela, no momento das intervenções, as pessoas buscam algo básico: sobreviver. “E muitas vezes buscam esse serviço para sobrevivência. Então, inicialmente, aumenta a procura pelo tratamento. Mas o que acontece é que o profissional que acessa os usuários na rua tem mais dificuldade, porque faz com que os usuários fiquem um tanto mais reativos à abordagem e também faz com que eles não fiquem num lugar só.” 

Assim como Carvalho, uma funcionária do programa municipal Redenção, que atua no entorno da Praça Princesa Isabel, diz que a procura por atendimento aumenta logo após as abordagens. Para ela, o fato de as pessoas não conseguirem ficar paradas em único lugar também resulta em uma maior vulnerabilidade que se traduz na busca por auxílio. Mas a demanda nem sempre é pelo tratamento para uso de drogas. Tanto o Cratod quanto o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) Redenção, em frente à praça, possuem equipes interdisciplinares para cuidar de casos clínicos que vão desde machucados leves até problemas dentários. 

Não há um consenso sobre o quanto a dispersão da “Cracolândia” em grupos menores facilitou ou dificultou o trabalho dos agentes de saúde e da assistência social. Se, de um lado, ficou mais fácil abordar as pessoas em grupos menores, já não há mais a certeza de que elas estarão no lugar onde costumavam ser encontradas. “Isso vem exigindo que a gente tenha todo um esforço para identificar onde os usuários estão, porque muitos deles estavam em acompanhamento de saúde contínuo, medicação assistida, processo de tratamento, exames… e pra gente poder continuar, tem que saber onde o cara está”, avalia a psicóloga da Prefeitura Mariane Alves, em entrevista realizada no Caps Redenção.

Fato é que, quando ações modificam a dinâmica da rua, esses profissionais, as pessoas em vulnerabilidade e a sociedade como um todo lidam com as consequências. Soma-se a isso a fragilidade dos vínculos estabelecidos com quem está na cena de uso. Às vezes, a formação de laços no território se dá da forma mais trivial. Disputadíssimo, o bebedouro de água na entrada do Caps é um exemplo. Qualquer um pode encher seu copo de plástico ou garrafinha, e a partir dali ocorrem muitas aproximações entre usuários e o serviço de saúde. “O bebedouro é um ponto muito importante para a gente de sensibilização”, observa Anderson Assis, psicólogo e gerente da unidade. 

“Dor e Sofrimento 2.0”

Esse desencontro entre os profissionais da saúde e as forças de segurança não é de hoje. Há exatamente uma década, a região foi alvo de uma operação truculenta que ficou conhecida como “dor e sofrimento”. De acordo com as notícias divulgadas na época, a Polícia Militar encabeçava a ação, que pretendia forçar os indivíduos a buscar tratamento por meio do desconforto. “A falta da droga e a dificuldade de fixação vão fazer com que as pessoas busquem o tratamento. Como é que você consegue levar o usuário a se tratar? Não é pela razão, é pelo sofrimento”, disse, em entrevista ao Estadão, o então coordenador de Políticas sobre Drogas da Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania, Luiz Alberto Chaves de Oliveira.

O promotor de justiça Arthur Pinto Filho acompanha o policiamento no território desde 2012. “Quando as pessoas apanham na rua, vão para a porta que está aberta. Na época [2012], era a porta das comunidades terapêuticas. Agora, é a dor e sofrimento 2.0. Forças de segurança querem criar incômodo para que os usuários busquem tratamento”, avalia.

Conhecido como o “palhaço da ‘Cracolândia’”, o psiquiatra Flávio Falcone executa um trabalho social focado na política de redução de danos e também observa o território desde a época da operação Dor e Sofrimento. Seu projeto Teto, Trampo e Tratamento baseia-se na realização de atividades artísticas e manuais como forma de promover a geração de renda para as pessoas em situação de vulnerabilidade que fazem uso de crack. Nesse sentido, a atuação lembra o programa De Braços Abertos, implementado pela Prefeitura em 2014. A iniciativa remunerava os participantes com R$15 por dia, além de ofertar atividades de capacitação, alimentação e vagas em hotéis da região.

“O que eu vejo de mudança é uma tentativa de uma nova política que precisaria de muito mais tempo do que foi implementada. O Braços Abertos durou só três anos e meio e depois eu vejo na verdade um processo em favor da especulação imobiliária”, reflete Falcone ao analisar os motivos por trás das intervenções policiais ao longo dos anos. Quando João Dória (PSDB) assumiu a prefeitura da capital, em 2017, o Programa De Braços Abertos foi substituído pelo Redenção, que parou de incentivar a geração de renda.

Segundo texto explicativo sobre o projeto “Teto, Trampo e Tratamento”, os quatro pilares que sustentam seu trabalho são “a busca da autonomia, a baixa exigência às pessoas que consomem substâncias, a corresponsabilidade na escolha da estratégia terapêutica e o entendimento de que cada processo terapêutico é singular”. Os integrantes entendem ainda que a abstinência pode ser uma abordagem terapêutica possível, mas não a única. Além da remuneração, neste momento 8 indivíduos moram em quartos de pensão financiados por meio de doações ao projeto. “Em 2 anos, já passaram mais de 40 pessoas nas vagas de moradia, e a maioria reatou vínculo com a família e saiu do território”, conta o psiquiatra.

Prisão como ‘internação compulsória’

Ainda que discussões em torno do uso problemático de drogas e da redução de danos tenham avançado, a política baseada na abstinência forçada, na truculência policial e nas internações involuntárias na “Cracolândia” segue a mesma de 10 anos atrás. Hoje, a atuação do município e do estado é resguardada de forma mais direta pela legislação federal. Em 2019, o governo publicou a Lei 13.840, que facilitou a internação involuntária por parte do Estado. Ela ocorre quando o tratamento se dá sem consentimento do paciente, a pedido de familiar, do responsável legal ou, “na absoluta falta deste, de servidor público da área de saúde, da assistência social ou dos órgãos públicos”.

Ainda assim, qualquer modalidade de internação — voluntária, involuntária ou compulsória — só é indicada quando todos os recursos extra hospitalares se mostrarem insuficientes. No primeiro caso, a pessoa em questão concorda com o ato médico. No segundo, o sujeito não está de acordo ou não encontra-se em condições de decidir, e, independente de quem faça o pedido pela internação, a necessidade deve ser atestada por um médico responsável. Já a compulsoriedade existe quando o procedimento é determinado judicialmente por um juiz. Com a Lei de Drogas promulgada em 2019, a modalidade compulsória passou a valer apenas para indivíduos em estados de sofrimento psíquico não derivados do uso de drogas. 

Ainda que a Prefeitura de São Paulo tenha anunciado, no começo de setembro, um plano para realizar a internação involuntária das pessoas que integram a chamada “Cracolândia”, o Ministério Público constatou que os números informados anteriormente pela administração pública não estavam corretos. “Ricardo Nunes disse em junho à imprensa que a Secretaria Municipal de Saúde internou involuntariamente 23 usuários da região da ‘Cracolândia’ no hospital Bela Vista. O MP descobriu que o hospital não tinha alvará de funcionamento e que, dos 23 internados, apenas 3 eram por uso de drogas”, observa o promotor de justiça Arthur Pinto Filho.

Qualquer internação involuntária deve ser comunicada ao Ministério Público, conforme determina a Lei Nº 13.840/2019. “A Prefeitura não está internando involuntariamente em nenhum hospital”, completa o magistrado.  O que se sabe, no entanto, é que 20 indivíduos foram presos. E que os braços de segurança do estado não diferenciam completamente aprisionamento de internação. “A partir do momento que ele [o indivíduo em uso] é preso, que ele entra no sistema prisional, ele não tem mais acesso à droga. Então, vamos dizer assim, a gente fez uma internação compulsória”, declarou o capitão da PM Francisco Wohnrath durante a reunião na Alesp.

Em busca de um teto

A internação aparece como primeira solução ao uso problemático de substâncias para a maioria da população brasileira. Mas sua efetividade, especialmente quando prescinde de consentimento do paciente, está longe de ser um consenso entre profissionais. Ainda que, em diversos casos, o tratamento dos indivíduos passe pelo afastamento do local de uso da droga, há um outro problema que justifica a procura por internação no Brasil: a falta de moradia. Em 2021, segundo o Censo da População em Situação de Rua feito pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) de São Paulo, a desigualdade relegava 31.884 cidadãos da capital às calçadas. 

Roberto Tykanori, médico, professor da Universidade Federal de São Paulo e ex-Coordenador Nacional de Saúde Mental entre 2011 e 2015, destaca a questão da falta de moradia como um elemento central que leva as pessoas a procurarem, por exemplo, espaços como as comunidades terapêuticas (CTs). Segundo o que pode observar, desde 2017, atendendo no Caps AD de Santos, existe uma correlação entre a vulnerabilidade social e o desejo por acolhimento. “Por que o sujeito quer ir pra CT? Porque não tem pra onde ir. E ele pensa ‘eu não aguento mais estar mais na rua’.”

O combate ao crack esteve justo no centro do financiamento público de CTs, quando o governo federal criou, em 2011, o programa Crack: É Possível Vencer. A informação consta no documento Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Em São Paulo, o gerenciamento de toda a rede de acolhimento social do Programa Recomeço: uma vida sem drogas é realizado pela Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract). O Recomeço, que existiu em paralelo à iniciativa municipal De Braços Abertos e, em seguida, Redenção, foi instituído em 2013 sob o nome original de Programa Estadual de Enfrentamento ao Crack. 

Segundo relatório técnico de monitoramento da parceria entre o governo do estado e a Febract, o programa manteve uma frequência média de 5.000 acolhimentos nos anos de 2017, 2018 e 2019. Em 2020, com a pandemia, o número caiu para 2.236 e, em 2021, chegou a 3.895. 

No relatório, junho aparece como o mês em que são realizados mais acolhimentos em CTs. O motivo: o frio. A hipótese consta no próprio documento, que diz: “evidenciado pelos números existe uma elevação de novos acolhimentos em junho, sendo este natural ao serviço devido às baixas temperaturas”.

Segundo Raquel Carvalho, da área técnica do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod), a busca por atendimento no equipamento estadual também costuma ter outros motivos que não a dependência química. “Muitos casos que buscam atendimento com a gente são pessoas que têm a sua rotina de algum modo prejudicada, não só pelo uso, mas pela rotina na rua”, afirma. “O que tem viralizado atualmente com relação à cena de uso é a repressão policial, então muitas pessoas que chegam aqui no Cratod chegam pedindo um lugar pra estar.”

A Ponte contatou insistentemente a Secretaria Municipal de Saúde do estado para saber quantas internações foram realizadas pelo Cratod. Em nota, a assessoria de imprensa respondeu que “a pasta estadual tem 2 mil leitos para internações em hospitais e unidades conveniadas para o atendimento a dependentes químicos” e que, desde 2019, o Cratod realizou 5.965 internações. Elas não foram especificadas por ano. A assessoria também não explicou se as internações consideram aquelas realizadas no próprio edifício ou em instituições conveniadas. Da mesma forma,  não houve menção aos encaminhamentos para comunidades terapêuticas. 

Já a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social manifestou, via Lei de Acesso à Informação, que o encaminhamento para CTs no âmbito da prefeitura ocorre sempre a partir do Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica II (SIAT II), equipamento que realiza o acolhimento temporário de pessoas que estão vulneráveis devido ao uso de drogas. Ainda segundo a Secretaria, o município realizou apenas 4 encaminhamentos para Comunidades Terapêuticas em 2022, todos para o Instituto Bauman, em Arujá. Além dele, a Prefeitura possui parceria com a CT Desafio Jovem, em Santo André. 

As consequências da policização 

Militante do movimento Craco Resiste e jornalista com quase uma década de cobertura na área da “Cracolândia”, Daniel Mello avalia que o desvio de função da GCM da capital paulista tem seu embrião num embate entre o então prefeito Fernando Haddad (PT) com o governo do estado, então comandado por Alckmin (PSDB). Segundo o ativista, o tucano coordenava a Polícia Militar para sabotar as políticas de redução de danos do prefeito petista contra a então chamada “epidemia do crack”. A necessidade por autonomia no controle dos territórios integrados no programa municipal De Braços Abertos, que se opunha à lógica repressiva e de internação compulsória, teria feito com que Haddad passasse a investir mais na Guarda Municipal. 

Segundo consta no processo da Ação Civil Pública de maio de 2021, que gerou a decisão liminar para coibir os excessos da GCM, uma outra decisão em ação que corria desde 2012 na 7ª Vara da Fazendo Pública mitigou as ações da Polícia Militar no território, o que fez com que a GCM replanejasse sua atuação na “Cracolândia” para “preencher a lacuna”. 

De acordo com um levantamento da Ponte, embora tenha havido um certo aumento de gastos com a GCM durante a gestão petista, especialmente depois da sanção da lei federal de 2014, os gastos com a corporação só passaram a atingir valores significativamente maiores a partir de 2018, ano da eleição de Jair Bolsonaro à presidência e da entrada de Bruno Covas (PSDB) na prefeitura, no lugar de João Doria (PSDB). Na última década, somente nos últimos quatro anos surgiram saldos de orçamento na casa dos nove dígitos para a guarda. O G1 levantou que, entre 2021 e 2022, 6 milhões de reais foram dedicados à atualização do arsenal bélico da Guarda Civil Metropolitana.

Desde 2009, a guarda também tem uma tropa especializada, a Inspetoria de Operações Especiais (IOPE), cuja atribuição é “apoiar as atividades da GCM no cumprimento de atribuições que envolvam grandes eventos, aglomerações de público e situações emergenciais”. A inspetoria é responsável por diversas ações com uso de balas de borracha e munição química na região da “Cracolândia” e é a tropa que foi designada para receber treinamento com o uso de fuzis.

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Segundo Daniel, nesse período que compete ao governo do ex-prefeito petista (2012-2016), a GCM passou a atuar mais ativamente na repressão de atividades ilegais, fugindo lentamente de sua função de proteção ao patrimônio. Ele acredita que, atualmente, a GCM age na chamada “Cracolândia” para treinar táticas de repressão que deverão ser utilizadas em bailes funk e manifestações populares. “O treinamento é isso aqui: ficar batendo nas pessoas. Aqui é um laboratório real. Você vai vendo o aperfeiçoamento da prática deles na rua”, pontua.

O que diz a Guarda

A Ponte mandou e-mail para a Guarda Civil Metropolitana questionando a atuação deles na região conhecida como “Cracolândia” e a aquisição de armas pesadas nos últimos anos. Por telefone, a assessoria de imprensa da Guarda confirmou que responderia nesta sexta-feira (30/9), mas não o fez até o momento da publicação.

Reportagem financiada pelo Fundo para investigações e novas narrativas sobre drogas (terceira edição), da Fundação Gabo e Open Society Foundations

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