Prestes a ser recebido pelo Papa, Renato Freitas é cassado em sessão marcada por racismo

Câmara Municipal de Curitiba (PR) confirmou ontem, em segundo turno, a cassação do vereador, por causa de um protesto antirracista numa igreja católica; parlamentar será recebido pelo Vaticano no próximo mês

A Câmara Municipal de Curitiba (PR) encerrou nesta sexta-feira (5/8), pela segunda vez, o processo de cassação de mandato do vereador Renato Freitas (PT). Por 23 votos contra sete (e duas abstenções), o parecer do Conselho de Ética sugerindo a perda de mandato foi acatado. Com isso, a suplente Ana Júlia Ribeiro (PT) deve voltar ao cargo a partir da semana que vem.

Renato foi alvo de representações no Conselho porque ele e um grupo de manifestantes entraram na Igreja do Rosário, no Largo da Ordem, durante um ato contra o racismo e em protesto contra os assassinatos de Moïse Kabagambe e de Durval Teófilo Filho, em 5 de fevereiro.

Ao contrário do que diz a acusação, já não havia missa no local. O próprio padre responsável pela celebração, Luiz Haas, compareceu à primeira sessão de cassação de Renato Freitas, e a Cúria da Igreja Católica já afirmou que considera a cassação uma punição excessiva.

O vereador, que é cristão, será recebido no mês que vem pelo Papa Francisco. A audiência foi confirmada pela defesa do vereador. A audiência com o Papa, no Vaticano, sela o apoio da igreja a Renato Freitas e aos manifestantes que entraram na igreja em fevereiro.

Racismo

A sessão de ontem foi marcada por falas racistas e por uma longa discussão sobre se a cassação seguia ou não as exigências legais. A defesa de Renato Freitas exibiu provas contundentes de que o processo contra Renato Freitas já havia extrapolado há pelo menos dez dias o prazo máximo legal estabelecido pela decadência. Em certo momento, o principal advogado da equipe de Renato, Guilherme Gonçalves, chegou a alertar que caso o presidente Tico Kuzma (Pros) insistisse na votação poderia responder criminalmente por isso.

Foto: Rodrigo Fonseca/CMC

Em vários momentos, a defesa solicitou a Tico que colocasse em votação um requerimento para que os vereadores decidissem se já havia transcorrido a decadência. Segundo os advogados, isso inclusive serviria como saída política para aqueles que se viam forçados por seu eleitorado a votar pela cassação mas que achavam a pena exagerada. No entanto, Tico Kuzma insistiu na tese de que o prazo de 90 dias da decadência se conta em dias úteis (tese já negada em outros casos pelo Tribunal de Justiça) e levou a sessão adiante.

A discussão racial foi igualmente importante. A vereadora Carol Dartora (PT), única mulher negra na história da Câmara de Curitiba, chegou a chorar ao falar na tribuna — e foi aplaudida pelas galerias. Mas isso nem de longe sensibilizou a bancada do prefeito Rafael Greca (PSD), que desdenhou dos argumentos sobre racismo.

Mauro Ignácio (União Brasil) foi à tribuna e disse que ele próprio é descendente de negros e que, portanto, quem o criticava estaria sendo preconceituoso. O pastor Ezequias Barros (PMB) foi mais longe e disse que, além de ter pai negro, via a narrativa sobre racismo como “um vitimismo”. Ambos disseram que procuraram Renato para tentar uma solução que evitasse a cassação, mas disseram ter sido rechaçados. “Quem se cassou foi você, Renato”, disse Mauro Ignácio. A plateia chamou o vereador de racista.

Da tribuna, Renato Freitas, que se defendeu por quase uma hora, reagiu às falas dos dois e disse que se recusava a fazer conchavos de bastidores que o botariam no bolso do prefeito. Além disso, falou que Mauro Ignácio teria proposto uma solução que deixasse o vereador responsável pela relatoria do processo, Sidnei Toaldo (Patriotas), em maus lençóis, já que os dois disputam votos em Santa Felicidade. Mauro Ignácio, aos gritos, negou que tenha feito isso.

Depois de cerca de quatro horas de debates e da apresentação de pareceres demonstrando a decadência, porém, nenhum voto mudou. Todos os 23 vereadores que haviam votado no dia anterior contra Renato repetiram o posicionamento. E por quatro votos a mais do que o mínimo necessário, efetivaram pela segunda vez a cassação.

A defesa se posicionou dizendo que irá levar o caso à Justiça. Guilherme Gonçalves afirmou que desejaria evitar que a Câmara não passasse pelo constrangimento de, pela terceira vez, ter o Judiciário anulando suas decisões. Além dele, estiveram presentes na defesa Edson Abdalla e Antônio Carlos Castro, o Kakay.

Cassação pode ser revertida, diz jurista

Um dos grandes trunfos da defesa de Renato para reverter a cassação aprovada pela Câmara de Curitiba será o prazo estabelecido pela lei para duração do procedimento. Um parecer encomendado pela defesa a três dos mais renomados juristas do país afirma com todas as letras que o prazo desse tipo de processo é aquilo que no mundo jurídico se chama de “prazo decadencial”, e que não haveria como aprovar a cassação mais de 90 dias depois de iniciado o processo.

Luiz Fernando Pereira. Foto: Divulgação

Assinado por Luiz Fernando Casagrande Pereira, Lenio Streck e Ney José de Freitas, o parecer expõe toda a legislação brasileira a respeito e as decisões que os tribunais têm tomado. Em entrevista ao Plural, Luiz Fernando diz não haver dúvidas de que a Câmara errou ao acreditar que podia contar o prazo em dias úteis.

Plural – Afinal, a cassação foi feita dentro do prazo legal ou não?

Luiz Fernando Casagrande Pereira – O prazo decadencial está ultrapassado, não há a menor dúvida disso. Porque a lei estipula que o prazo é de 90 dias. E a Câmara está contando como se fossem 90 dias úteis. Vamos lembrar que a Câmara já fez isso, no caso da vereadora Kátia dos Animais e o Tribunal de Justiça à unanimidade cassou a decisão exatamente pela contagem em dias úteis. Depois daquele caso, a Câmara mudou seu regimento interno, exatamente para dizer de forma expressa que se trata de contagem em dias úteis, e portanto agora estaria seguindo o regimento interno. 

Plural – Mas isso muda algo?

Luiz Fernando – O regimento interno da Câmara não prevalece quando em confronto com a norma federal que trata do assunto, que é o decreto 201 de 1967. E o decreto estipula que o prazo é de 90 dias. E o Supremo diz que esse prazo não pode ser ampliado ainda que haja norma do regimento interno. Então o regimento interno não poderia dizer: aqui em Curitiba, ao invés de 90 dias são 120 dias. E quando o regimento interno diz que a contagem será em dias úteis a rigor está alargando esse prazo. E não pode alargar o prazo o regimento interno em detrimento de regra expressa da norma federal.

Plural – Do ponto de vista jurídico, como fica esse caso?

Luiz Fernando – Juridicamente esse caso não está encerrado porque o Poder Judiciário vai analisar entre outros argumentos o tema da decadência, a que é o objeto do nosso parecer. No entanto se eventualmente o TJ entender que o prazo está extrapolado não impede que a Câmara reabra novo processo de cassação contra o Renato começando desde o início, desde a primeira fase. De qualquer forma, isso ficaria para depois da eleição, e o Renato preservaria sua elegibilidade.

Plural – O TJ vai analisar apenas a forma ou também o mérito da decisão?

Luiz Fernando – O poder Judiciário não entra no mérito da decisão da Câmara de Vereadores em processo de cassação, porém o que se discute aí é a forma, como se deu o processo de cassação. Se seguiu ou não a lei federal, que é o tema do prazo decadencial. Em síntese, no mérito os vereadores podem decidir cassar, concordemos ou não com  a decisão. O que eles não podem é para cassar deixar de lado a norma federal.

Reportagens originalmente publicadas no Plural:

Em sessão marcada por racismo institucional, Câmara cassa Renato Freitas novamente

Renato Freitas será recebido pelo Papa Francisco

Juristas dizem que Câmara errou e cassação de Renato Freitas pode ser revertida

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