Projeto da Defensoria de SP erra ao não focar em vítimas de violência do Estado, apontam especialistas

Órgão criou rede de atendimento jurídico e psicossocial para famílias de vítimas de violência letal no mesmo dia em que governo anunciou convênio para defesa gratuita a policiais; “agora vemos os algozes sendo privilegiados”, criticam Mães de Maio

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Área de treinamento do Baep com a inscrição “Favela”, em 2019 | Foto: Reprodução Facebook

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo criou um projeto-piloto para atendimento jurídico e psicossocial de familiares de vítimas de violência letal, denominado Rede Apoia, em parceria com a Secretaria de Justiça e Cidadania. A formalização da iniciativa foi publicada na edição de terça-feira (19/7) do Diário Oficial, no mesmo dia em que o governador e pré-candidato às eleições de 2022, Rodrigo Garcia (PSDB), convocou coletiva de imprensa para anunciar a regulamentação da assistência jurídica gratuita a policiais civis e militares e um convênio com a Defensoria para atender a categoria.

De acordo com o projeto, esse atendimento se dará “com acolhimento, informações, encaminhamentos à rede de serviços, assistência jurídica e acompanhamento psicossocial, mapeando desafios e potencialidades para implementação de uma política perene de atendimento, além da oferta de atividades de educação em direitos”. O projeto está previsto para durar um ano e vai contar com recursos de emenda parlamentar impositiva da deputada Marina Helou (Rede), no valor de R$ 150 mil. O texto também prevê parceria com Comitê Paulista pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CPPHA), do qual Helou é presidente em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), e “em rede com demais instituições públicas, organizações sociais e grupos de familiares” que, segundo o subdefensor público-geral Rafael Pitanga, ainda não foram definidos.

O conteúdo e o nome do projeto são parecidos com uma proposta feita pelos Núcleos Especializados de Cidadania e Direitos Humanos, Infância e Juventude e em Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial ao Conselho Superior da Defensoria Pública, em maio deste ano, quando se completaram 16 anos dos crimes de maio de 2006. No pedido, os defensores públicos argumentaram que desde 2016 solicitam a criação de política institucional de atendimento às vítimas de agentes de segurança pública para acolhimento multidisciplinar (leia a íntegra abaixo). No entanto, até o momento ainda não houve uma deliberação do conselho.

À Ponte, Pitanga disse que a Rede Apoia serve “como um teste, um início dessa atuação” e que “contempla a atuação em prol das vítimas de violência policial”. “São temas em paralelos, esse é um ato de um projeto-piloto organizado com a Defensoria Geral, com uma comissão que acompanha a monitora esse projeto pelos núcleos especializados, também com convites que faremos a parceiros da sociedade civil para avaliar esse projeto, indicar eventuais correções de rumo e curso do piloto, e, com isso, trazer elementos para a discussão com o Conselho Superior acerca de uma política mais permanente”, explicou. Segundo ele, uma região da zona sul da capital paulista, que ainda vai ser divulgada, vai passar por essa experiência.

Para a ativista e advogada Dina Alves, a iniciativa é importante, mas “deixa muito aberta a ideia de vítima de violência letal”. “Estamos falando de vítimas de violência letal perpetrada por agentes de segurança pública do Estado. É preciso que se diga isso e se delimite todo esse alcance de atuação da Defensoria Pública porque a categoria vítima tem que ser pensada em níveis raciais e de gênero numa sociedade que é hierarquizada por raça e por gênero. Então, nem todo mundo é tratado como vítima e é preciso que esse projeto diga quem são essas vítimas”, argumenta. “Corre-se o risco de ser mais um projeto, mais um centro de atendimento jurídico e psicossocial a famílias de violência letal, mas que não vai abarcar as pessoas que realmente necessitam de proteção, de cuidado, de defesa integral e humanizada, que a gente vê ao longo da nossa história”.

Além disso, por ser um projeto-piloto, a advogada aponta que falta integração e diálogo com as pessoas mais afetadas. “As instituições parecem estar fechadas dentro delas porque não chamam os movimentos para construir um plano de ação, não chamam os movimentos das mães, das vítimas de violência letal, vítimas do terror do Estado, para atender realmente essas demandas. Como assim fazer um projeto para ver se dá certo? A gente tem demanda e essa é uma necessidade real e urgente por ser uma demanda histórica dos movimentos”, analisa.

A fundadora do Movimento Independente Mães de Maio, Débora Maria da Silva, concorda. “Há 16 anos nós pleiteamos o atendimento especializado para vítimas do Estado porque isso não existe”, critica. “É um órgão que foi criado para defender as pessoas vulneráveis e, ao mesmo tempo, está nos violando porque a violência policial é gritante, então por que não dá a materialidade de dizer que atende as vítimas de ‘agentes do Estado’? Se há essa resistência é porque querem fazer a manutenção, fica muito aberto, sendo que 84% das vítimas de violência policial [no Brasil] são meninos negros, moradores de favela e empobrecidos”.

Defesa gratuita a policiais

O projeto Rede Apoia não foi mencionado durante coletiva de imprensa convocada pelo governo estadual. Rodrigo Garcia anunciou um convênio da Secretaria da Segurança Pública com a Defensoria Pública para prestação de assistência jurídica gratuita a policiais e nova redação de dois decretos estaduais e uma nova resolução que foram publicados na edição desta quarta-feira (20/7) do Diário Oficial. “A Defensoria Pública defende vulneráveis, defende muitas vezes aqueles que estão do outro lado da lei, mas, antes de tudo, ela procura como princípio defender-se contra as injustiças e isso se trata, muitas vezes, de uma injustiça contra um policial militar”, declarou o governador.

Nesta quinta-feira (21/7), 10 entidades, entre movimentos sociais, ONGs e mandatos parlamentares, assinaram uma carta conjunta em repúdio ao convênio direcionada a Garcia, ao secretário de Segurança Pública João Camilo Pires de Campos e ao defensor público-geral Florisvaldo Fiorentino Junior. Nela, solicitam que o convênio seja publicizado e suspenso, bem como o poder público implemente política de assistência à familiares e vítimas de violência policial.

“A medida foi amplamente divulgada em coletiva de imprensa pelo governador, mas não foi devidamente publicada no Diário Oficial ou submetida a – e discutida com – o Conselho Superior da Defensoria Pública, o que reforça a compreensão de que o compromisso da DPESP não é efetivamente com toda a população, mas apenas com uma parcela dela, notadamente, as polícias do estado”, escreveram. “É necessário investir recursos financeiros e humanos no aperfeiçoamento do atendimento pessoal e humanizado das vítimas das violências promovida pelos agentes do Estado, que encontram diversas barreiras burocráticas e técnicas que revitimizam aqueles/as que foram violados, especialmente no precário serviço de segurança pública”.

Os decretos editados são os 64.764 e 64.765, ambos assinados pelo então governador João Doria (PSDB), em 2020, para regulamentar, respectivamente, o artigo 35 da Lei 452, de 2 de outubro de 1974, e o artigo 53 da Lei 207, de 5 de janeiro de 1979, relativos, cada um, à assistência judiciária gratuita a policiais civis e militares. A resolução especifica que a defesa especializada e gratuita a policiais vai ocorrer em crimes tentados ou consumados de homicídio, lesão corporal grave ou seguida de morte, abuso de autoridade, tortura e fuga de pessoa presa, abarcando tanto o Código Penal comum quanto o Código Penal Militar. A assistência vai ocorrer em processos judiciais relacionados ao exercício profissional de policiais civis e militares, envolvidos em ocorrências durante o serviço ou de folga, e o benefício também “será estendido a policiais em formação que já participam de algumas operações de segurança”, de acordo com a pasta.

Os decretos vedam a assistência jurídica em dois casos: se os fatos não tiverem relação direta com o exercício da função policial e “na hipótese de existirem provas robustas da prática de conduta abusiva”. No entanto, no caso de crime de homicídio, a resolução 39 agora prevê que a assistência jurídica “abrangerá a defesa do policial desde a fase de investigação, em inquéritos policiais ou policiais militares, ou outros procedimentos extrajudiciais que lhes forem correspondentes”. Garcia revogou dos decretos a previsão de suspensão da defesa gratuita e de ressarcimento por parte do policial se houvesse ciência dessas duas situações que impedem a concessão do benefício, não restando clareza como ficaria a situação de um agente investigado por homicídio, por exemplo, caso fossem detectadas “provas robustas de prática abusiva” no decorrer da investigação.

Além disso, a defesa gratuita será concedida mediante requerimento do policial, desde que tenha sido formalmente intimado ou citado para os termos do processo, e após análise de seu cabimento. Esse último ponto tem relação direta com a lei proveniente do Pacote Anticrime, o que já foi criticado por especialistas entrevistados pela Ponte. De acordo com o artigo 14-A, agentes da segurança pública envolvidos em casos que resultaram em morte só podem ser ouvidos na presença de um advogado, que deve ser constituído em até 48 horas. Se não for indicado, o parágrafo 3 estabelece que “a defesa caberá preferencialmente à Defensoria Pública”.

A Defensoria Pública foi criada em São Paulo em 2006 e tem como prerrogativa atender pessoas em situação de vulnerabilidade que não tenham condições de pagar um advogado. A regra geral é socioeconômica, ou seja, para pessoas que tenham renda de até três salários mínimos por mês, mas o órgão também pode atuar em ocasiões que não dependam de renda. Se a pessoa não constituiu advogado no curso de um processo criminal em geral, o próprio juiz pode determinar atuação da Defensoria a favor dela, já que ela não pode ficar sem defesa. Com isso, já acontece de defensores públicos atuarem a favor de policiais. O que não existia até então era um convênio específico para essa categoria.

Para a professora de Direito da =Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Maíra Zapater, o convênio cria “um desvirtuamento da função institucional” da Defensoria Pública, já que o órgão atende a pessoas vulneráveis e não categorias profissionais determinadas. “Qualquer trabalhador das forças policiais que seja acusado de crime no exercício da função tem que ter direito de defesa garantido, isso não se tem dúvida, ela tem direito a defesa técnica, a defesa de qualidade, a todas as garantias processuais e constitucionais”, pondera.

Ela aponta que o governo poderia criar um atendimento para os policiais por meio de outras instituições e não pela Defensoria. “Se o Estado entende que, no exercício da função, o policial está mais exposto do que outras categorias profissionais, o que é fato porque o policial está mais exposto de cometer um fato típico que ele precisa se defender dizendo que foi em legítima defesa, e que o Estado entende que ele não deveria arcar com os custos da sua defesa técnica, que se pense em um modelo de assistência jurídica específica. O que me parece inadequada é essa desvirtuação da Defensoria Pública, em especial quando se tem quadros tão reduzidos dessa instituição”.

De acordo com o site da Defensoria, atualmente o órgão tem 790 integrantes em 66 unidades espalhadas em 43 cidades, atuantes em diversas áreas, não apenas criminal. O estado de São Paulo tem 645 municípios. À Ponte, o subdefensor público-geral Rafael Pitanga pontua que “por lei, já deveria ter alcançado 900 profissionais há alguns anos, mas teremos em breve um novo concurso para seleção de novos defensores públicos, com a perspectiva, no ano que vem, de ampliar cargos na instituição”. Ele afirma que em relação à assistência jurídica a policiais “é um número pequeno de casos do recorte legal”, sem precisar quantos, e argumentou que “a Defensoria não vai atuar em todos os casos, tal como já existia na dinâmica do processo penal, a Defensoria só vai ser provocada a ter essa atuação após o profissional não ter constituído advogado”.

A advogada Dina Alves aponta que a demanda da população vulnerável é superior ao contingente disponível pelo órgão. “O problema da ampla defesa e do contraditório na justiça criminal no Brasil são grandes violações de direitos humanos. Hoje, a pessoa quando é presa ou vítima letal, tem uma investigação que não tem defesa, não tem um defensor nas delegacias, o cidadão comum não tem esse direito”, explica.

E com isso, ela indica que a pessoa que sofre violência policial também não recebe o mesmo tipo de atenção. “A grande questão é que a gente vê um investimento apenas para um grupo visto como especial na sociedade, ou seja, é assistência jurídica gratuita para defesa de policiais e isso diz muito porque o policial no exercício de suas funções, no Brasil, é preparado para matar. O que essa regulamentação traz, vindo de ações do governo Michel Temer e agora com Bolsonaro, é a que a polícia tem carta branca para matar civis, pautado no racismo, no classismo, no sexismo, no patriarcado e essa polícia tem toda uma proteção do Estado com uma assistência gratuita para a sua defesa”.

A fundadora do Movimento Independente Mães de Maio, Débora Silva, concorda. “Nós estamos falando de um genocídio praticado por esses policiais que, sem o controle externo do Ministério Público, é privilegiado por um governador que está fazendo campanha eleitoral”, critica. “A Defensoria foi criada para atender vulneráveis, pessoas pobres, e tem pobre que não consegue acesso à Defensoria. Nos inquéritos dos Crimes de Maio, a gente não conseguia movimentar porque não tinha defensor criminal nem pelo convênio da Defensoria com a OAB. Nós não conseguimos implantar um olhar diferenciado para as vítimas do terrorismo do Estado e agora vemos os algozes sendo privilegiados. É muito triste, como mãe, ver um governo que governa para um público específico”.

Além disso, a professora Maíra Zapater aponta que o governo não demonstrou com dados que policiais estariam sendo injustiçados por falta de defesa técnica. “Se a falta de defesa atrapalha o trabalho policial, que eles sofrem punições injustas porque não tiveram acesso à defesa, esse é um dado que a gente não dispõe. Aliás, os dados a respeito disso costumam ser inversos: de casos de violência policial que muitas vezes não vão para frente no sistema de justiça”. Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que o Ministério Público Estadual pediu o arquivamento das investigações em 92,8% dos casos de mortes decorrentes de intervenção policial em São Paulo.

Na coletiva, o governador foi questionado sobre isso e respondeu que “a Defensoria defende contra injustiças, sejam cometidas contra vulneráveis, sejam cometidas contra policiais, ela continua na sua função primordial”.

De acordo com o governo estadual, a assistência jurídica pela Defensoria será opcional aos policiais e não obrigatória. O defensor público-geral, Florisvaldo Fiorentino, que foi reconduzido ao cargo para o biênio 2022-2024, declarou que os policiais que já constituíram advogados particulares poderão trocar por defensores públicos conveniados se quiserem.

Essa é uma diferença em relação a uma proposta semelhante que foi sancionada pelo então governador Márcio França (PSB), que também estava em campanha para o cargo nas eleições gerais de 2018. A lei era de autoria dos deputados estaduais Delegado Olim e Coronel Telhada, ambos do PP (Partido Progressista) e integrantes da Bancada da Bala, formada por policiais, na Assembleia Legislativa (Alesp), e previa que a Defensoria Pública deveria fazer a defesa gratuita de policiais civis, militares e técnicos-científicos que fossem acusados de crimes praticados no exercício de suas funções. Os parlamentares, inclusive, comemoraram o convênio anunciado pelo governador Rodrigo Garcia em suas redes sociais.

Em 2019, a lei que eles aprovaram foi considerada inconstitucional pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo após a Ordem dos Advogados do Brasil – Seção São Paulo (OAB-SP) ter entrado com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin). O relator e desembargador Álvaro Passos acatou os argumentos do órgão ao apontar que a Defensoria tem prerrogativa constitucional de atender pessoas em situação de vulnerabilidade, cuja regra se baseia pela renda socioeconômica, não por categoria profissional. “Os servidores que, como qualquer outro cidadão, estejam dentro dos parâmetros para receber assistência, poderão usufruir do serviço, mas tal defesa, judicial ou extrajudicial, não pode ser dada a eles de forma indistinta, tão somente por ocuparem os cargos públicos em questão”, escreveu. Os desembargadores o acompanharam de forma unânime. Houve tentativas de recursos contra a decisão do TJ-SP por parte da Assembleia Legislativa, mas todos foram negados, e a lei acabou cassada.

Agora com as novas regulamentações e convênio, as especialistas também pontuam possível conflito de interesse de a Defensoria Pública atuar tanto em defesa de policiais quanto na assistência às vítimas. “A população que sofre violência policial é o maior público atendido pela Defensoria, então como ficaria de um lado o policial defendido por um defensor e [do outro] uma pessoa que tenha sofrido abuso de autoridade, uma violência durante a abordagem, famílias de vítimas?” questiona Zapater. “A gente teria todo um conflito institucional ali e isso impacta até nas teses de defesa, em teses jurídicas, porque para isso tem a separação das atribuições das instituições”.

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Questionado sobre isso, Rafael Pitanga declarou que “não é incomum a Defensoria atuar em polos antagônicos”. “A maior parte da demanda da Defensoria vem da área de família, em que tem um defensor pela mulher e um pelo homem, num processo de família, num processo de violência doméstica ou mesmo, na área criminal, um defensor atuando pelo réu num caso de estupro de vulnerável ou conveniado em prol da instituição para atuar pela vítima de violência”, justifica. “Isso não desqualifica, em nenhuma hipótese, a nossa atuação em prol das vítimas que deve ser fortalecida”.

*Reportagem atualizada às 17h, de 21/07/2022, para incluir carta de entidades contra o convênio da Defensoria Pública e a Secretaria da Segurança Pública.

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