Projeto econômico de Guedes “não pode ser feito sem extermínio”, afirma jurista

    Presidente do Instituto Luiz Gama, Silvio de Almeida liga autoritarismo de Bolsonaro com projeto econômico e a tentativa de leis que legalizem mortes em protestos

    Abordagem de manifestante antes do início da passeata | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte

    Autoritarismo nas falas e ações de representantes do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), pelo próprio presidente e por seus filhos estão diretamente ligadas à agenda econômica do ministro da Economia, Paulo Guedes. A avaliação é do advogado Silvio de Almeida, presidente do Instituto Luiz Gama (associação de juristas e acadêmicos que atua na defesa de direitos humanos), ao analisar a tentativa de o governo aprovar um projeto que amplie a excludente de ilicitude para militares que matarem em serviço.

    O presidente enviou projeto (leia clicando aqui) que isenta de investigações militares que matarem manifestantes em operações de GLO (Garantia da Lei e Ordem, operações que dão poder de polícia ao Exército durante ações feitas em estados) e investe para o poder Legislativo aprovar a ideia. Segundo o advogado, esta é uma forma de o governo se antecipar caso o Brasil repita protestos ocorridos em países vizinhos, como Colômbia e Chile.

    “O que vai acontecer é que o Brasil não é diferente de outros lugares e o atual governo está disposto à utilização explícita da violência caso haja ameaça ao seu poder, ao seu projeto”, avalia Almeida. “É um projeto que não pode ser feito sem que haja a disposição ao extermínio, e sem que haja efetivamente o extermínio”, completa.

    Silvio é taxativo ao dizer que é ingenuidade pensar que existe uma proteção legal na Constituição contra o surgimento de governos autoritários. ” Os golpes de estados, que são sucedidos por uma certa ordem, precisam ter uma configuração jurídica. Também se tem os juristas do horror, eles existem. E têm os que estão ajudando a construir esse cenário no Brasil”, diz. Para ele, não há como comparar esta nova excludente de ilicitude com o AI-5 (Ato Institucional) da ditadura, mencionados por Paulo Guedes e pelo filho do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). “Vamos achar que as mesmas soluções e remédios podem ser aplicados quando, na verdade, tratamos de duas doenças que são distintas”, pondera.

    Ponte – Como encara a proposta de lei de isentar policiais que cometam crimes contra manifestantes em ações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem?

    Silvio de Almeida – Eu vejo da seguinte maneira: a própria eleição do Bolsonaro, falando tudo o que ele fala, e reiterando as maiores barbaridades contra os direitos humanos, a democracia, as minorias de uma maneira geral… É uma prova, não daquilo que ele é – porque nunca escondeu -, mas da fragilidade das instituições, da democracia no Brasil e mostra como as instituições não têm condições de defender a democracia. Indo mais a fundo, existe déficit de cultura democrática. O que ele está tentando por em prática é algo que já vinha sendo anunciado e foi normalizado por essa ausência de trava. Nós normalizamos a barbárie o tempo todo. Não é só uma questão do Bolsonaro, a sociedade brasileira está permeável a esse tipo de coisa. Um exemplo: um sujeito que fala do AI-5 como o filho do presidente falou, como o ministro da economia, diante da experiência do Brasil e todos os traumas que isso causou, as vidas perdidas, tinha que ser considerado no mesmo nível de alguém fazer a saudação nazista na Alemanha. É impensável, ainda que na brincadeira. Nós, não. Não tratamos as coisas dessa maneira. O fato de haver indignação e não há reação institucional, não existe mecanismo para impedir, é sinal de que acoplamos ao cotidiano a violência e a barbaridade.

    Ponte – O que exatamente muda na prática caso o projeto avance?

    Silvio – Temos que fazer uma avaliação que passa pelo campo da política nacional e olhar a geopolítica e economia política. Vivemos um momento de profunda instabilidade da já frágil figura institucional da América Latina, desmonte das instituições que é resultado do coronelismo, das intervenções feitas pelos países centrais e pelo grande capital. Vivemos um cenário de crise, de conflitos de escala global e de um rearranjo na própria composição do capital. O que vai acontecer é que o Brasil não é diferente de outros lugares e o atual governo está disposto à utilização explícita da violência caso haja ameaça ao seu poder, ao projeto que ele representa: de aprofundamento da desigualdade, de avanço do capital sobre todos os âmbitos da vida social e política, um projeto de privatização violenta.

    Para advogado, projeto econômico de ‘destruição de direitos’ depende do extermínio da população | Foto: Divulgação/Respeito Dá o Tom

    Ponte – Como se dá a aplicação desse projeto?

    Silvio – É um projeto que não pode ser feito sem que haja a disposição ao extermínio, e sem que haja efetivamente o extermínio. É aí que entram os aparados estatais. No Brasil, a fragilidade é para defender a democracia, mas é um Estado muito forte no uso da violência contra o seu próprio povo e os aparatos precisam ser utilizados para defender os interesses do capital, deste governo, cujo o projeto não tem nenhuma conexão com as necessidades fundamentais do povo brasileiro. É um governo que atua absolutamente em linha com interesses que são internacionais, das grandes empresas, de setores muitos específicos. É só ver a agenda econômica.

    Ponte – Muitos analistas gostam de fazer uma separação entre o autoritarismo de Bolsonaro e as propostas econômicas de Paulo Guedes, como se fossem questões distintas. Até que ponto as propostas econômicas e autoritárias do governo estão separadas ou fazem parte do mesmo projeto?

    Silvio – A grande imprensa também é muito comprometida com os interesses econômicos que o ministro da Economia é representante. Agora, a grande questão é a agenda econômica de destruição dos chamados direitos sociais e que no Brasil é algo muito importante. É uma questão econômica, mas esses direitos foram um pacto civilizatório dentro do capitalismo para permitir um campo mínimo de convivência entre as classes diante da desigualdade brutal que o Brasil historicamente cultiva. Quando se destrói os direitos, você tem a quebra dos mínimos pactos civilizatórios e sobra unicamente a violência explícita. Quando você destrói a base da economia, que do ponto de vista de sua configuração jurídico-política tem que dar conta de um país com as dimensões do Brasil, se começa a destruir a base produtiva – falando do trabalho, o direito ao trabalho, a capacidade produtiva – não sobra nada.

    Ponte – Como controlar essa destruição?

    Silvio – A única forma de gerir é por meio do uso sistemático da violência contra as pessoas pobres. Você está dando sentido para aquele negócio que Achille Mbembe (filósofo e professor camaronês) chamou de necropolítica: a forma de gestão possível quando se tem o avanço do neoliberalismo, a partir da morte. Quando se começa a intervenção militar no Rio de Janeiro [ocorrida de fevereiro a dezembro de 2018] é o marco da ideia de se naturalizar a presença das Forças Armadas dentro do cenário social, do cotidiano. As pessoas passam de alguma forma a se acostumar com a presença das Forças dentro da sua vida. Isso começa lá atrás e agora o jogo ficou em outro nível.

    Ponte – A proposta pode ser comparada à excludente de ilicitude que está sendo usada agora na Bolívia?

    Silvio – Vejo que o projeto do presidente da República é muito parecido com esse posto na Bolívia, são comparáveis. É o estabelecimento de medidas de exceção, não é à toa que se começa a falar de AI-5, são formas de proteção que só podem ser feitas mediante o uso de uma legalidade que, por incrível que pareça, instaura a possibilidade da exceção. Você coloca isso como um parâmetro técnico-jurídico para permitir o uso sistemático da violência e da força contra o povo.

    Ponte – A ditadura militar brasileira se baseou em uma certa legalidade, certo?

    Silvio – Não tem ditadura ou golpe de estado sem legalidade, esse é o ponto fundamental. A gente se engana muito com isso. É preciso ter uma estrutura política e jurídica para sustentar um regime de exceção, que não funciona sem leis. É um regime de leis que funcionam justamente no contexto da exceção. A ditadura depende de uma legalidade, tanto que se tem juristas alinhados com ditadura, economistas, os técnicos. Os golpes de estados, que são sucedidos por uma certa ordem, precisam ter uma configuração jurídica. Também se tem os juristas do horror, eles existem. E tem os que estão ajudando a construir esse cenário no Brasil.

    Ponte – É possível comparar a proposta com o AI-5 da ditadura militar? É uma espécie de princípio de um novo AI-5?

    Silvio – Não, são diferentes. Muito complicado falar em AI-5 nesse contexto de Brasil. Podemos ter coisas que se assemelham ou até piores, só que o AI-5 tem um contexto, senão ficamos achando que podemos nos defender desse tipo de coisa usando as velhas fórmulas. Não, é uma outra configuração, outro mundo, outro arranjo que vai se estabelecer, ainda que todos eles terminem com a possibilidade da morte dos outros e prevejam isso. Agora, precisamos aprender a fazer uma análise porque, para combater os efeitos do AI-5, a solução dada foi criar normas jurídicas que pudessem fazer frente à possibilidade de exceção que o AI-5 estabeleceu. Criamos a Constituição de 1988 que na verdade torna uma impossibilidade jurídica o estabelecimento de medidas como aquelas que o AI-5 fez: fechamento de Congresso, proibição de habeas corpus, enfim, está nas cláusulas pétreas. A política tem mais rigor do que o Direito. Nesse sentido, o panorama que vivemos hoje, não podemos imaginar tudo que vivemos nos últimos tempos que uma nova legalidade é capaz de segurar a violência do capital e a violência política que se segue. Vamos achar que as mesmas soluções e remédios podem ser aplicados quando, na verdade, tratamos de duas doenças que são distintas, mas que todas elas corroem o Brasil e as possibilidade de emancipação e de liberdade democrática. O projeto do grande capital só avança se for possível você destruir tecnicamente, por meio da legalidade, tudo isso o que falei.

    Ponte – Por que o governo tem tanto medo de protestos? O que podemos esperar da reação não só do governo federal, mas dos estados, se o Brasil voltar a ter protestos de rua como os que teve entre 2013 e 2016?

    Silvio – Isso me parece muito óbvio. Por mais que as pessoas falem que há uma incompetência nesse governo, ele está fazendo muitas coisas, uma delas é nos mobilizar. Estamos falando disso porque é uma questão central. É um governo que tem poder, que, ao contrário do que se diz, tem um projeto. Talvez não seja conduzido inteiramente pelas pessoas que no governo estão, mas está colocando em marcha. Dessa forma, ele tem a dimensão que quem tem poder tem que usar e se defender contra aqueles que eventualmente ameassem esse poder e vai fazer isso preventivamente, claro. Já estão estabelecendo formas de lidar com possibilidades reais de se ter manifestações porque a vida das pessoas, as condições sociais se deterioram rapidamente e a cada dia mais. O protesto é possível, está no horizonte, vai acontecer. Não sabemos quando e em qual ocasião, não dá para cravar que o governo está se esfacelando, é uma temeridade achar isso, mas a grande questão é que o governo está de defendendo, usando o poder. E quem tem poder o utiliza. E quem não utiliza pode perdê-lo.

    Ponte – O que aparenta é que, com os exemplo de países vizinhos, o governo acendeu um alerta e agiu antes das manifestações acontecerem no Brasil…

    Silvio – Com certeza. “Vou me preparar para isso”. Veja, as polícias e as Forças Armadas estão sempre prontas para fazer o que fazem de melhor: o uso da violência. Percebe? O que acontece é que o governo brasileiro está se adiantando, está construindo um aparato jurídico até para dar legitimidade para a uso sistemático da violência. É isso.

    Ponte – Como vê a proposta do Congresso (PEC 199/19 do deputado federal Alex Manente – Cidadania-SP) que altera o artigo 5º da Constituição para garantir a prisão após condenações em segunda instância?

    Silvio – A minha concepção a seguinte: uma PEC para alterar o artigo 5º da Constituição é terraplanismo jurídico. O artigo 5º é clausula pétrea, a alteração possível é para aumentar os direitos e garantias que a Constituição já prevê. É uma manobra para tornar ainda mais frágil a democracia brasileira que já é muito débil e é, sem dúvida, uma extensão do autoritarismo. E veja, não é só uma questão do governo. Existem setores da sociedade que, inclusive, reclamam e falam que tem a liberdade ameaçada que, quando se trata de defender a prisão em segunda instância, ainda que seja necessário passar pela Constituição, se colocam na defesa disso. Esse governo não teria as condições de fazer o que está fazendo se não tivesse uma certa conivência de setores que são centrais na sociedade, como a grande imprensa, parte do empresariado. Falo parte, há setores que estão sendo afetados, mas se tem um bloco que apoia essas medidas autoritárias e estão dispostas a tudo, inclusive matar, para ver o seu projeto andar. O projeto de alterar o artigo 5º é uma coisa que a gente aprende no começo da faculdade, é uma coisa vergonhosa, fico com vergonha quando vejo alguém falar dessa possibilidade. Estamos em um momento de conflito aberto, é o vale-tudo.

    Ponte – Qual é a importância do artigo 5º para a democracia? O que significa fazer uma PEC para alterar esse artigo?

    Silvio – O artigo 5º traz direitos e garantias individuais, ou seja, são o direito a vida, à liberdade, à segurança, à propriedade e tudo aquilo que protege esses direitos. É o núcleo fundamental do que seria o estado de direito que protege as liberdades individuais e mais do que isso, é também núcleo do que seria o estado democrático. Tanto é assim que o artigo 60 da Constituição traz o artigo 5 e os direitos. Veja que eles não estão só no artigo 5, os direitos e garantias individuais estão espalhados pela Constituição toda vez que se fala de garantias individuais. Se você pretende vulnerar o artigo 5º, de alguma maneira está incidindo em algo que a Constituição não permite. É a chamada cláusula pétrea, aquilo que não pode ser modificado pelo poder constituinte derivado, é algo que foi instituído pelo poder constituinte original, que foi instalado em 1986. Só uma nova Constituição pode alterar o artigo 5º e ela só nasce de uma ruptura com o momento constitucional anterior, com a vida sociopolítica anterior. A proposta de retirar direitos é inconstitucional. Temos que olhar o movimento da política, que passa por cima de tudo. Vivemos no Brasil momento em que se tem a política da destruição de tudo, e vários setores da sociedade compactuam, inclusive o sistema de Justiça. Judiciário, Legislativo, Executivo, se tem gente do Ministério Público, da magistratura, da advocacia que compactuam com isso.

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