Projeto Escreve Cartas: as Doras da ‘Central de Itaquera’

    Voluntários atendem população com dificuldade de leitura e escrita em projeto inspirado no filme “A Central do Brasil”

    Projeto Escreve Cartas, em Itaquera, dá voz no papel para pessoas com dificuldade na escrita e leitura | Foto: Sarah Furtado

    Três era o número de voluntários na mesa do Escreve Cartas em Itaquera, zona leste de São Paulo, no terminal de ônibus, trem e metro. Duas senhoras e um senhor aguardavam os cidadãos, com rosto sereno e tranquilidade no olhar. Escreve Cartas é um respiro. Inspirado no filme Central do Brasil, o projeto é de iniciativa do Poupatempo com a ideia para ajudar pessoas analfabetas a colocarem as palavras no papel e mandar a quem amam.

    É todo o tipo de gente que pede ajuda aos escritores. Gente que manda carta pra parente, pra amigo distante e até pra gente da TV. Geraldo Luís e Rodrigo Faro são os apresentadores mais procurados. Tem gente também que não entende os formulários do local e vai pedir socorro para os escritores que ajudam a preencher tudo direitinho. Tem também aqueles esquecidos, como seu José Dias Jr., de 68 anos. “Hoje eu vim porque esqueci os óculos em casa. Essa letra feia aqui, eu que fiz, mas só porque tô sem óculos”, conta.

    Quem atendeu seu José foi o xará, José Vilson. O nome é o mesmo, mas são cinco anos de diferença entre os dois. José Vilson tem 63 anos bem vividos e é vizinho dali, mora à 500 metros do terminal. Os xarás pareciam amigos de anos, mas a verdade é que haviam acabado de se conhecer. O tratamento conquistou o senhor Dias:

    “Você viu esse aí, atendendo uma deficiente visual? Devia ter visto! A forma como ele tratou ela, viu?! Coisa muito bonita. Se fosse jovem não ia ter essa paciência toda. Mas eu devia falar isso nas costas dele. Parece dois velhos puxando o saco um do outro”, brinca.

    José Vilson sorriu tímido como quem não concordasse com tanto elogio. Afinal, era só o jeito que se deve tratar alguém. Mas confessou: “já vivi mais do que vou viver. Me preocupei demais na vida, agora pode pegar fogo que eu ainda fico tranquilo. Até que eu to conservado, né?! Tô casado há 40 anos com a mesma mulher, é bom. Aprendi a ser tranquilo”.

    O voluntário trabalhou durante 33 anos em um hospital pediátrico. Fazia estatística laboratorial, laudo médico e codificação de diagnóstico no Instituto da Criança, no hospital das clínicas. Apesar de ser supervisor, seu contato com os pacientes era constante. E foi lá que disse ter se acostumado com as caligrafias de médicos ao longo dos 33 anos nos quais tinha a função de ler a dos outros, sempre de complexo entendimento. Agora, já são nove anos sendo a letra dos outros. Nove anos de voluntariado completos em outubro próximo.

    José Vilson, ex-funcionário de hospital pediátrico, trabalhou por 33 anos lendo receitas escritas por médicos; hoje, é a letra de quem vai até seu encontro | Foto: Sarah Furtado

    “Eu me aposentei e seis meses depois vim pra cá. Vim por coragem, não conhecia ninguém. E é muito gratificante, porque nossa região aqui é muito pobre, em tudo. Principalmente leitura e escrita. Parece pouco, mas qualquer coisa que você fizer aqui já ajuda bastante”, relembra.

    Vilson sabe ler as pessoas. Consegue perceber, assim que senta na sua frente, se ela sabe escrever ou não. Dependendo de como for, tem que ter jogo de cintura pra saber o quê, pra quem e pra onde quer escrever. Consegue saber se a carta é uma resposta ou um primeiro contato. São anos de experiência, afinal. “A gente só ouve e escreve, não fica dando conselho, e depois lê pra ela ver se é isso que ela queria”, diz.

    José começou respondendo cartas do sogro. O homem recebia as cartas e até conseguia ler. Responder já era um desafio, e era aí que Vilson entrava em ação ajudando o pai da esposa a colocar as ideias no lugar – e as letras no papel. Entrou no ramo da escrita cedo e, de certa forma, nunca mais saiu.

    Muita história triste já passou pelas suas mãos, mas a com marca mais forte foi a de uma deficiente visual que chegou cheia de documentos e papéis em pastas bem desorganizadas. Enquanto José arrumada a papelada toda, também fazia o papel de psicólogo.

    “Acabou que ela era divorciada e a filha não gostava e nem ajudava ela em nada. Pra mim, foi a história mais difícil. Eu senti que fui uma “utilidade útil”. Você imagina, ter uma deficiência e não ter ninguém pra te ajudar? É complicado”, relembra.

    Foi ao longo dos 33 anos de trabalho pediátrico que Vilson descobriu o valor da vida. Nos tempos de hospital, ia visitar a ala dos recém-nascidos extremos, toda vez que achava que tinha algum problema. A imagem das crianças pequenas, com dreno e sempre sorrindo, calcificou uma lição em sua mente: aprendeu a reclamar menos.

    A verdade é que, nas palavras de Vilson, “chega uma certa idade que as pessoas pensam que a gente é velho. A gente não é velho. Velho é o sofá, a televisão, o computador. A gente não é velho. A gente é idoso, e tá aqui pra ajudar.”

    Ao lado de Vilson ficam as amigas Eiko Yamashiro e Elisabeth Dias. Vizinhas de cadeira e de vida, as moradoras do Tatuapé são amigas de longa data. Elegância e serenidade definem as idosas de 66 e 62 anos, nesta ordem. Eiko é funcionária do Poupatempo, há 14 anos. Aposentada há um ano e meio, decidiu ser voluntária no espaço que lhe abriu as portas.

    Dona Eiko, à esquerda, com a companheira de mesa, Elisabeth, voluntárias do projeto | Foto: Sarah Furtado

    “Minha letra não é muito bonita, mas dá pra entender. Antigamente se escrevia muito por carta, hoje é tudo por Whatsapp, pela internet. Mas as cartas eram mais legais, você mandava foto, tudo o que você escreveria era muito diferente”, rememora.

    Eiko se sente como uma ponte. Seu trabalho simples de materializar um pensamento ou um desabafo é o suficiente pra sentir que cumpriu seu objetivo. Lembra de quando recebeu uma avó, criando dois netos, porque a filha foi presa após se envolver com drogas. Sem uma aposentaria decente, a avó usa o pouco que tem pra pagar aluguel, cuidar dela, dos netos e mais o que tiver que gastar.

    “Ela veio escrever pra filha e pro novo namorado da filha, desabafando que precisa que o pai das crianças ajude financeiramente. Ela tinha trabalhado uma tarde inteira passando uma montanha de roupas pra ganhar só trinta reais. E um desses netos foi lá e pegou o dinheiro dela. O dinheirinho que era pra comprar o pão e a comida pra deixar em casa. Eu achei bem triste, bem marcante!”, relata a voluntária.

    Fora dali, Eiko leva uma vida bastante tranquila. Faz ioga, pilates, leitura e sai pra passear e almoçar com as amigas. Se ocupa o dia inteiro e mantém a agenda sempre lotada. Quer aproveitar a melhor idade. “Saio todos os dias e na quarta-feira é isso que eu faço. Me dedico a isso!”, resume.

    Elisabeth Dias é a mais nova do grupo com seus 62 anos. Há dois meses trabalha como voluntária no Escreve Cartas. Bem apegada aos dois filhos, todas as terças-feiras visita a filha. Escrever não é sua única habilidade manual, pois Elisabeth também faz croché, mas diz que os dias de voluntariado são os mais emocionantes. Ainda está pegando o jeito dos procedimentos, porém, não hesita em atender os cidadãos e oferecer toda a ajuda que pode. Sai por aí perguntando para os voluntários mais antigos até fazer do jeito certo.

    Para Elisabeth, a história mais marcante foi quando conheceu uma ex-chacrete que enfrentava problemas sérios com a administração do prédio onde morava. “Ela mostrou foto de como ela era, tudo. Como tem alguns problemas de saúde, eles a deixavam pagar só metade de valor do condomínio. Agora, parece que tem uma administradora que cuida e a pessoa mandou pra ela o boleto com o valor cheio. Então, estava reclamando disso, que é um direito adquirido dela. Porque ela não tem condição de pagar. Aí ela veio fazer a carta pra administração pedindo o direito de pagar só metade do valor”, conta.

    Quando menina, Elisabeth escrevia cartas vez ou outra, mas não sente muita falta. Agora é mais rápido mandar pelo celular. Carta de amor, nunca mandou. Casou aos 15 anos, não deu tempo. Hoje é divorciada, mas ninguém mais manda carta de amor.

    Na fila de espera aguarda seu Gilberto Pereira dos Santos, de 85 anos bem escritos nas linhas marcadas do tempo em seu rosto. Os cabelos brancos se escondiam sob um boné azul escrito “Leopard New York”, uma cidade que se limita a ser uma coisa de filmes. Contudo, Gilberto talvez nem saiba o que está escrito ali. Diz que o que não consegue ler, pergunta. Seu Gilberto é mais um, dentro os quase 13 milhões de analfabetos no Brasil.

    “Os ônibus eu já sei qual que eu pego. Pra ir eu já sei, pra voltar eu ainda me embragulho. Outro dia peguei um ônibus pra São Miguel e fui parar lá no Camargo Velho, quarenta minutos pra voltar. Mas hoje eu pergunto”.

    Seu Gilberto estudou só até a quarta série. Naquele tempo, criança, além de dar trabalho, trabalhava. O primeiro turno ia até às dez da manhã, hora do café. O segundo turno ia até a hora do almoço, que era servido quando dava. Depois, pisava milho a tarde toda e colocava pra secar, pra ter o que comer no dia seguinte. O sotaque carregado revelava sua raiz nordestina, mas não quis dizer de onde.

    “Naquele tempo estudar era muito bom. Aprendi a ler e escrever. Professor ensinava mesmo, só não aprendia quem não queria. Hoje, tá muito fácil, professor ensina e aluno não quer saber de nada”, lamenta-se. Com 14 anos Gilberto começou a estudar a “conta”. Lia e escrevia, mas não sabia fazer conta. Estudar ficou mais difícil e, hoje, já perdeu o ânimo. Agora, prefere só “comer e dormir”.

    O senhor de 85 anos pode até não saber ler, nem escrever, muito menos fazer conta, mas sabe bem do valor que desviaram da sua conta bancária. Oitocentos reais que foram parar sabe-se lá onde. E, pra resolver esse problema, seu Gilberto foi jogado pra lá e pra cá até alguém descobrir o que dá pra fazer.

    Faltava documento que ele nem sabia o que era. Ouviu os conselhos dados por Elisabeth, quem preencheu seu formulário, e saiu todo decidido atrás de um algum lugar que fizesse a cópia do que precisava. Antes de ir embora, posou pra foto e disse: “Boa sorte pra nós! Deus abençoe”.

    Seu Gilberto, 83 anos, foi ao Escreve Cartas em busca de resolver o problema de desvio de sua conta | Foto: Sarah Furtado

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