Projeto Refugiados de Belo Monte busca recursos para ajudar atingidos pela construção de usina

    A Clínica de Cuidado tem o objetivo de escutar, oferecer tratamento e documentar a situação da população atingida pela hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. A repórter Eliane Brum e os psicanalistas Christian Dunker e Ilana Katz estão na empreitada 

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    Projeto Refugiados de Belo Monte busca captar recursos para ajudar atingidos pela construção de hidrelétrica no rio Xingu, perto de Altamira, no norte do Pará – Foto: Projeto Refugiados de Belo Monte

    Por Karla Dunder, especial para a Ponte Jornalismo

    A construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, na bacia do rio Xingu, próximo ao município de Altamira, no norte do Pará, é marcada por uma série de violações de direitos das populações atingidas. Pessoas que perderam tudo – seu lar, seu modo de vida, sua memória – famílias que viviam em ilhas do Xingu ou na beira do rio, na zona rural da região foram arrancadas do mundo a que pertenciam e lançadas em outro território onde não se reconhecem. Perderam suas referências e se tornaram refugiados dentro de seu próprio país. Além do trauma, muitos adoeceram.

    Com o intuito de ajudar essa população e minimizar esse sofrimento um grupo de psicólogos e psicanalistas deve seguir para Altamira em janeiro e ali atender esses ribeirinhos. O projeto que leva o nome de Clínica de Cuidado tem como objetivo escutar essas pessoas, oferecer tratamento e documentar a situação de cada um. Os relatos serão transformados em um documento público. Para isso, o grupo que conta com a jornalista Eliane Brum, o psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Christian Dunker, e a psicanalista Ilana Katz lançam um projeto de crowdfunding: Refugiados de Belo Monte (https://www.catarse.me/refugiadosdebelomonte).

    A meta é arrecadar recursos para que em janeiro de 2017 um grupo formado por 15 profissionais possa atuar na região em um período de 15 dias. Todos os terapeutas selecionados atuarão como voluntários, no entanto, é preciso arcar com os custos das passagens aéreas, assim como hospedagem, alimentação e transporte. Todas as contribuições feitas pelo Catarse terão uma recompensa de acordo com o valor doado.

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    Morador da região atingida pela hidrelétrica de Belo Monte e suas anotações sobre a vida destruída pela construção da usina – Foto: André Nader/Arquivo Pessoal

    Para a formação do grupo que irá até Belo Monte será realizado um curso aberto no Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) entre setembro e novembro para apresentar a realidade da região, as peculiaridades da construção de Belo Monte e os desafios da escuta dos atingidos. Além do curso, os participantes participarão de uma rodada de entrevistas e avaliação de experiências.

    “A Clínica de Cuidado tem uma responsabilidade ética: fazer com que seja possível a essas pessoas voltarem a ter uma vida na qual elas se reconheçam”, explica Ilana Katz. Como observa a psicanalista, para muitos, Belo Monte é um fato consumado, mas os seus efeitos ainda podem ser tratados.

    Como diz Elio Alves da Silva: “Sou um pescador sem rio. Sou um pescador que sonha. Sou um pescador que luta. Pescador que pensa um dia realizar um sonho: o sonho de voltar a pescar. O sonho de voltar a viver. O sonho de voltar a sorrir porque tudo isso eu perdi. Perdi para dar lugar a um monstro que se chama Belo Monte”.

    Um pouco da história de Belo Monte:

    Para a implantação da usina de Belo Monte, muitos direitos foram violados como o direito à proteção jurídica. Analfabetos assinaram com o dedo papéis que não eram capazes de ler. Os atingidos foram coagidos a “negociar” diretamente com os representantes da concessionária em termos que lhes eram inacessíveis. A Defensoria Pública da União chegou a Altamira para defendê-los no início de 2015, mas a violação de direitos já havia sido em grande parte consumada.

    Uma parcela dos atingidos recebeu indenizações e cartas de crédito cujo valor, em muitos casos, não lhes permitiu recompor a vida. Outros foram confinados em unidades padronizadas de conjuntos habitacionais que nada têm a ver com sua cultura. Os laços de vizinhança, assim como os de afeto, foram despedaçados – e a convivência comunitária, destruída. Outros ainda sequer foram reconhecidos como atingidos. Para muitos, o único território que lhes restou foi o do próprio corpo.

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    Área desmatada para a construção de Belo Monte – Foto: Lilo Clareto/Arquivo Pessoal

    Belo Monte, um projeto da ditadura civil-militar, só tornou-se uma realidade na democracia. O leilão da hidrelétrica ocorreu em abril de 2010 e foi vencido pelo consórcio Norte Energia. Ao longo da polêmica construção e implantação da usina, o Ministério Público Federal moveu mais de 20 ações denunciando inconstitucionalidades e violências, entre elas uma ação por etnocídio indígena.

    A usina, com custo estimado em cerca de R$ 30 bilhões, foi construída por um conjunto de empreiteiras, entre elas as maiores do país, e financiada em grande parte por dinheiro público, via BNDES. Atualmente, a obra é investigada pela Operação Lava Jato. A Licença de Operação de Belo Monte foi concedida pelo IBAMA, em novembro de 2015, sem que a totalidade das condicionantes tivesse sido cumprida, em mais uma inversão da lógica: aquilo que condiciona o acontecimento virou condição para depois de acontecido.

    Neste cenário, de crise humanitária, escutar, tratar e documentar é cuidar.

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