Quinze anos depois, julgamento de GCMs que mataram jovem negro é adiado. De novo

    Jurada passou mal em meio a fala de testemunhas e novo júri acontecerá em fevereiro de 2019, quase 16 anos após a morte de líder comunitário no Grajaú, em São Paulo

    Oséias, irmão de Leandro, o pai, José, e a mãe, Maria, mostram faixa feita por amigos | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Exatos 5.594 dias separam 13 de novembro de 2003 e 26 de fevereiro de 2019. São 15 anos, 3 meses e 23 dias entre a morte do líder comunitário Leandro Machado e a nova data para o julgamento dos guardas civis metropolitanos Orlando Sérgio dos Santos, 62 anos, e José Donizeti de Freitas, 54, acusados pelo crime. Na tarde desta terça-feira (28/8), o processo seria julgado e ficaria definido se os guardas são culpados ou não pelo assassinato. Porém, o caso teve mais um adiamento.

    O tribunal do júri analisava a morte de Leandro. Já haviam se passado cinco horas, tempo suficiente para as falas de cinco das dez testemunhas, anteriores às falas dos três réus — além de Orlando e José Donizeti, que respondem por homicídio, a também GCM Andrea Alves dos Santos responde por falso testemunho e fraude processual. Após essa etapa, defesa e acusação apontariam seus argumentos aos jurados, que decidiriam pela culpa ou absolvição. Porém, um dos sete jurados passou mal, o que fez o julgamento ser remarcado, conforme decisão do juiz Renan Oliveira Zanetti.

    Por volta das 16h30, a sessão teve um intervalo. Ainda não se sabia, mas tratava-se de um problema de saúde do jurado. Ao mesmo tempo, um dos irmãos de Leandro e uma das testemunhas de acusação recebeu um telefonema. Era para informá-lo de outra morte: Elisangela Machado, 44, uma das irmãs de Leandro. Ela teve falência múltipla dos órgãos, ainda sem causa definida, e não resistiu. Desde o assassinato do irmão caçula, ela sofria de depressão.

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    “As coisas não estão muito boas. Já não estavam, agora então…”, disse ao telefone um dos familiares de Leandro, enquanto enfrentava a burocracia para retirar o corpo da irmã do IML (Instituto Médico Legal), já na manhã seguinte. O irmão do líder comunitário confessara ter perdido as esperanças de ver os GMCs respondendo pela morte de Leandro. Agora o luto de outra ida se junta à descrença, que diminuiu ao ver um “promotor muito bom” assumir o caso. “Nasceu um pouco de esperança”, diz.

    O crime

    No dia 3 de novembro de 2003, Leandro foi buscar a mamadeira da filha que estava na casa de um amigo no Grajaú, zona sul de São Paulo. Na mesma semana, a cidade recebeu a primeira onda de ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital), com 44 ofensivas contra delegacias e bases da polícia e GCM. Leandro passou em frente a uma base da GCM, na Rua São Caetano do Sul, e acabou baleado.

    Na versão dos GCMs Orlando e José, ele teria batido no portão da base, dito que “a noite está sinistra” e pulado para o lado de dentro. Ao cair, colocou a mão na cintura como se fosse sacar uma arma. Armados com revólveres calibre 38, os dois atiraram “num gesto natural de defesa”. Segundo eles, o homem portava uma garrucha, arma de cano curto que costuma ser vendida como antiguidade.

    A família acredita que os guardas estivessem em pânico por conta dos ataques e por isso atiraram ao verem Leandro passando diante da base. O jovem ajudava organizando eventos de rap e basquete para crianças da comunidade. Uma das festas seria feita dias depois e por isso Leandro havia passado antes, no mesmo dia, pedindo para entregar um ofício em que solicitava proteção da GCM para o evento, mas os guardas haviam pedido para ele voltar em outra hora.

    Uma das testemunhas ouvidas no julgamento contou que ouviu diversos tiros e, ao olhar, avistou um guarda agachado, em posição de atirar, e viu um corpo dentro da base. Depois, uma moto saiu com o garupa portando uma arma grande.

    “Ele devia estar passando em frente à base quando o garupa começou a atirar e, assustado, ele pulou dentro para se proteger”, conta. De acordo com sua versão, o guarda estava a cerca de 12 metros do portão e havia também um carro fora da base ajudando no ataque. “Conhecia o Leandro de vista, cresceu no bairro e fazia serviço comunitário”, relembra.

    Trabalhos perdidos

    Aos 50 anos, Oseias Machado falou mais uma vez sobre o dia em que o irmão morreu com um tiro na nuca e um no peito. Nos últimos 15 anos, perdeu as contas de quantas vezes repetiu o ato de relembrar o dia 13 de novembro de 2003. Diante do juiz Zanetti, respondeu perguntas do promotor Marcelo Oliveira, do MP (Ministério Público) e do advogado de defesa, Cláudio Márcio de Oliveira.

    “Estive no PS que levaram ele, tinha vários carros da GCM. Os guardas levaram o documento dizendo que não tinha ninguém da família, mas eu estava lá”, conta. Antes dele, a viúva de Leandro, Mabatha Lúcio, falou. Relembrou dos momentos em que cuidava da filha Shelzeer, então com dois anos, antes de saber da morte do marido.

    Outro irmão do jovem negro, Carlos Renato também deu seu testemunho sobre o evento de basquete que Leandro organizava e seu problema de visão. “Ele tinha uns 10 graus de miopia, era bem forte, e estava sem óculos porque tinha quebrado. Na pochete dele, havia a receita para comprar o novo que eu ia pagar porque o Leandro estava desempregado”, conta.

    Um dos GCMs que comandaram a investigação interna da corporação, e que contrariou a versão dos guardas Orlando Sérgio dos Santos e José Donizeti de Freitas, reafirmou diante dos jurados e do juiz a falha de “natureza grave” cometida pela dupla. Para tal, usou o laudo necroscópico.

    “Não havia motivos para o indivíduo invadir a base com um armamento arcaico e os laudos divergem com a versão: um tiro foi na nuca e o outro no peito, com ângulo de cima para baixo, sendo que o relato é de que eles atiraram de frente”, disse o guarda.

    Ao fim do depoimento, veio o intervalo e foi anunciado o problema de saúde de uma jurada. O julgamento foi adiado para daqui quatro meses.

    Quanto a versão dos GCMs, o advogado Cláudio Márcio de Oliveira apontou à Ponte que a perícia não definiu a posição dos tiros, conforme a versão dada pelos réus: de que atiraram de frente e os projéteis entraram na nuca e o outro em posição de cima para baixo.

    “Quando pula um muro que é alto, a pessoa escala e depois, para descer, ela vira e está com o peito projetado do lado de fora. Se eventualmente um disparo partiu de fora, pode ter atingido o peito dessa pessoa. ‘Ah, Cláudio, mas você está me dizendo que a pessoa pode ter tomado um tiro na nunca enquanto escalava, aí virado e tomado outro?’ Estou dizendo o seguinte: a perícia não deu essa resposta”, sustenta o defensor.

    Terceiro promotor diferente

    Ao longo dos 15 anos da morte até hoje, três promotores diferentes estiveram à frente do processo para acusar os guardas Orlando e José. O atual é Marcelo Oliveira, responsável pelo julgamento que condenou três PMs e GCM de Barueri pela maior chacina da história de São Paulo, com 23 mortos em agosto de 2015 na cidade de Osasco. Os réus pegaram penas entre 100 e 255 anos de prisão. Para o promotor, a versão dos guardas sobre a morte de Leandro é claramente irreal.

    “O processo é complexo porque não mostra o que de fato ocorreu, ele mostra o que não ocorreu: o que eles contam. A versão é inverossímil e a própria Guarda concluiu na sindicância que não dava para acreditar no tiro na cabeça por trás. Essa é uma prova contundente da inverdade”, analisa.

    Marcelo Oliveira ocupou a vaga de acusação deixada por promotor Thomás Mohyico Yabiku. Em abril deste ano, ele obteve adiamento do julgamento ao pedir diligências atrás de uma nova testemunha. Para Oliveira, uma busca que não era necessária em relação às provas já apresentadas. A defesa tentou usar a tese de Mohyico para adiar novamente, pedido negado pelo juiz do caso.

    Maria Aparecida, mãe de Leandro, espera há 15 anos por justiça | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    A troca do promotor do caso se deveu a uma divisão interna na Promotoria de Justiça do 3º Tribunal do Júri, instalado no Fórum Criminal da Barra Funda, zona oeste de São Paulo. Nem sempre o promotor que acusa durante o processo é o mesmo que atua no julgamento por possibilidade de problema de datas. Assim, na promotoria do 3º Tribunal, há uma escala das audiências e julgamentos por dia. “Em outros tribunais, funciona diferente. Cada promotor faz o seu processo. Mas isso acarreta uma série de dificuldade”, explica Marcelo.

    No caso do adiamento envolvendo o julgamentos dos GMCs Orlando Sérgio dos Santos e José Donizeti de Freitas pelo homicídio de Leandro Machado, o terceiro promotor aponta que deve ser o responsável pela acusação no dia 26 de fevereiro de 2019. “Quando ocorre de eu estudar o julgamento e ele, por alguma razão não sair, eu tenho o hábito de já deixar avisado que é para marcar para mim. É comigo, há menos que haja um imprevisto”, explica. Caso não seja Oliveira, um dos sete outros promotores do 3º Tribunal assumiria a acusação no júri.

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