“Reduzir maioridade é péssimo”, diz presidente da ex-Febem

    “Se mandarmos os jovens para o sistema prisional, a recuperação deles vai ser bem mais difícil”, afirma Berenice Gianella, presidente da Fundação Casa
    Berenice Giannella Foto: Eliel Nascimento /Fundação Casa
    Foto: Eliel Nascimento /Fundação Casa

    Reduzir a maioridade penal e mandar jovens de 16 anos para presídios superlotados é uma ideia “péssima”, ataca a presidente da Fundação Casa (antiga Febem), Berenice Gianella. “Se estes jovem têm uma chance de se recuperar, é no sistema socioeducativo. Se nós os mandarmos para o sistema prisional, a recuperação vai ser bem mais difícil”, afirma Berenice em entrevista à Ponte.

    Embora trabalhe com adolescentes em conflito com a lei há oito anos, desde que assumiu a presidência da Fundação, a procuradora Berenice Gianella descreve uma realidade bem diferente daquela que costuma aparecer na fala indignada dos âncoras dos programas policiais. Segundo Berenice, o exército de menores assassinos e a Justiça benevolente que surgem a toda hora nesse noticiário têm pouca relação com a situação real dos adolescentes autores de ato infracional.

    Para começar, os assassinos são poucos. Dos cerca de 10 mil jovens internados na Fundação, apenas 3% cometeram crimes hediondos, como homicídios, latrocínios e estupro. Também não é verdade que os adolescentes contem com uma Justiça boazinha. Ao contrário: no caso do tráfico de drogas, muitos juízes costumam contrariar o ECA (Estatuto da Criança e Adolescente) e ordenar a internação de adolescentes sem passagens anteriores pela polícia. “Se tem uma lei, ela tem que ser cumprida”, lamenta.

    Acompanhando o debate sobre a maioridade penal, a gente tem a impressão de que o menor infrator é o grande problema da criminalidade no Brasil atual. Isso corresponde à verdade?

    Berenice Gianella – Não. Na verdade, uma pequena parcela dos crimes é que são praticados pelos jovens. Se olhar as estatísticas da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, de cada 100 presos, 13 são adolescentes.

    Quantos dos detidos na Fundação Casa praticaram crimes hediondos?

    Berenice Gianella – Hoje temos em torno de 10 mil jovens, entre internos e semiliberdade. Somando todos os crimes hediondos (latrocínio, homicídio, estupro), não chegamos a 3% da população.

    Não se inclui aí o tráfico de drogas?

    Berenice Gianella – Não, porque o tráfico é equiparado a crime hediondo, não é taxado efetivamente assim. O tráfico responde por 39% das internações.

    Tem havido um exagero da Justiça de determinar a internação na Fundação de jovens condenados por tráfico?

    Berenice Gianella – Sim. O ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] permite a internação por tráfico desde que seja reincidente. Quando é a primeira ou segunda infração, o ECA recomenda outras medidas, como a semiliberdade ou liberdade assistida. O que a gente nota, especialmente no interior do Estado, é que os juízes aplicam, mesmo na primeira passagem, a medida de internação.

    E qual a consequência disso, considerando que os jovens envolvidos com o tráfico nem sempre praticam violência?

    Berenice Gianella – A consequência é esse pequeno excesso de lotação que a gente tem hoje na Fundação. Estamos trabalhando um pouco acima da nossa capacidade. Acho que isso “desresponsabiliza” as outras políticas públicas. Se praticou tráfico, põe na Fundação. Acaba não tendo, por exemplo, atendimento de saúde adequado, mesmo que às vezes o problema desse jovem envolvido com o tráfico seja o fato de que ele também é usuário.

    A fronteira entre usuário e traficante não é tão simples?

    Berenice Gianella – Temos alguns que vendem e não usam, ou usam recreativamente. Temos outros que têm problemas de dependência e vendem para sustentar o vício. Cada caso é um caso. Mas, se tem uma lei, ela tem que ser cumprida. Se o ECA diz que não é para internar se não for caso de violência ou grave ameaça à pessoa, o tráfico não deve gerar internação. Até porque, se 39% dos internos da Fundação são por tráfico, o sistema prisional deve ter 40% pelo mesmo crime, e mesmo assim o tráfico continua grassando. Como disse o presidente Fernando Henrique Cardoso, precisamos discutir seriamente essa questão do tráfico, porque o mundo inteiro já percebeu que a guerra policial contra as drogas não tem resolvido.

    Qual seria a consequência da redução da maioridade nos termos em que é discutida hoje no Congresso?

    Berenice Gianella – Eu acho péssimo. Vai jogar na vala comum jovens que praticaram crimes de menor potencial com outros que praticaram crimes graves. Acho que a proposta que o governador Geraldo Alckmin apresentou, no sentido de aumentar o tempo de internação para os casos de crimes hediondos (que, repito, são poucos), seria mais efetiva. Nós daríamos uma resposta para a sociedade, daríamos uma punição maior para o adolescente, teríamos mais tempo para trabalhar com ele e evitaríamos um corte drástico que poderia levar aos presídios os jovens envolvidos, por exemplo, com o tráfico, como acontece hoje.

    A redução da maioridade não ajudaria na recuperação desses jovens?

    Berenice Gianella – Acho pior, porque as cadeias no Brasil estão muito lotadas. O trabalho de socialização, portanto, é menor e não atinge a população toda, até porque temos unidades para 800 presos que trabalham com 2.500. Se estes jovem têm uma chance de se recuperar, é no sistema socioeducativo. Se nós os mandarmos para o sistema prisional, a recuperação vai ser bem mais difícil.

    Uma vez conversei com um músico que dava aulas na Fundação Casa e ele comentou que a Fundação tinha uma estrutura imensa de professores dando aulas de todo tipo de atividades artísticas, mas quando o interno sai da unidade e volta para sua realidade, ele já não tem acesso a mais nada disso. Como se lida com essa questão?

    Berenice Gianella – É o mesmo problema do “antes”. Da mesma forma que o jovem não tem quando sai, também não tinha antes.

    O jovem só tem acesso na Fundação Casa. É curioso.

    Berenice Gianella – É curioso mesmo. Eu sempre falo que se o jovem tivesse acesso, antes de entrar na Fundação, ao que eles têm lá, que é arte e cultura para todo mundo, frequência obrigatória na escola, uma proposta pedagógica adequada, talvez eles não tivessem incidido na criminalidade. A questão do egresso cai nessa questão também da insuficiência de política pública para todos os casos. Estamos agora, aqui em São Paulo, junto com a Secretaria de Desenvolvimento Social, conversando com as prefeituras para ver se conseguimos desenvolver um programa de acompanhamento do egresso. É importante que durante um tempo ele tenha este acompanhamento, porque acontece isso mesmo. O jovem está lá na Fundação, acorda todo dia às seis da manhã, estuda, faz curso, tem atendimento psicológico e, quando sai, volta para a mesma família desestruturada, e às vezes a escola também o expulsa novamente. Ele precisa ser muito forte, muito resiliente para não incidir no crime. Talvez, se ele tivesse um acompanhamento um pouco melhor, a gente conseguiria reduzir ainda mais os índices de reincidência.

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