Refletindo a Liberdade | Fabrício: ‘Ex-presidiário tem muita dificuldade de fazer nova história’

“O que me motiva a continuar lutando é calar a boca da sociedade. Todo mundo falou que quando eu saísse da cadeia, voltaria a traficar, que não tinha mais jeito. Através da minha história quero ajudar outros jovens também a largar o crime”

Ilustração: Rafael Coutinho

A série Refletindo a Liberdade é uma produção da ONG Reflexões da Liberdade, que, desde 2017, gera impacto social fazendo com que a sociedade repense os processos que enchem as prisões, ressignificando os territórios e desenvolvendo a comunidade para que reivindiquem a vivência das políticas públicas. A série traz os depoimentos de cinco egressos com diferentes histórias de vida, e será publicada ao longo desta semana, até o dia 1/4.

Eu sou Fabrício*, tenho 28 anos, natural do Rio de Janeiro. Aos 14 anos já estava envolvido com o crime. 

Minha mãe sempre trabalhou muito, tenho essa memória desde cedo. Por esse motivo, passava mais tempo com a minha avó. Na infância, morávamos eu, minha avó, meu avô, minha mãe e meus dois tios no município de Itaboraí (RJ). A infância foi muito difícil. 

A questão é que para um morador de comunidade tudo é mais complicado. 

Na favela sempre havia guerras de facções. Nós morávamos na parte alta. Quem era da parte alta, mesmo sendo morador, não podia descer para parte baixa. E vice-versa. Era tiroteio diariamente: polícia entrando e saindo, invadindo as casas para procurar drogas. 

Isso me revoltava.

Sempre quis ser uma pessoa independente. Queria ter coisas que só o trabalho não me ofereciam. Meu primo já estava envolvido com tráfico. Foi então que eu pedi para ele me deixar entrar. Ele resistiu, mas eu voltei a insistir: ‘Sou dono das minhas próprias escolhas’, disse. 

Eu era muito imaturo e o crime é muito sedutor para quem não tem nada: você vê outras pessoas comprando carro, moto e você, ali, sempre no perrengue. No começo, cheguei a ganhar de R$500 a mil reais por semana; uma grana que nunca tinha visto.

Comecei vendendo. Era o tal do ‘vapor’, apelido comum aqui no Rio. Pegava as cargas de drogas e ficava no meu ponto fixo. Carregava uma arma, um rádio transmissor e passava ali 12 horas de plantão. Todos os dias eram assim.

Mas não era simples. O medo fazia parte da rotina, sempre tinha alguém sendo morto ou sendo preso. Perdi amigos assim.

E no tráfico fui crescendo.

https://ponte.org/refletindo-a-liberdade-emerson-ferreira-do-carcere-a-faculdade-de-psicologia/

Com meu cunhado e irmão de criação, Eduardo*, abri um pequeno negócio de venda e isso acendeu o alerta dos policiais da área.

Até que um dia um policial foi até a minha casa e disse para a minha família que se ele me visse, ia me matar. Todos entraram em desespero e eu acabei me mudando para Macaé. 

Estava com 17 anos.

Não tinha a intenção de seguir no crime em Macaé. Queria mesmo era arrumar um trabalho e ficar tranquilo. Mas pensa: cidade nova, sem conhecer ninguém. Começaram a vir as necessidades.

Um novo começo?

Apesar disso, sempre procurei estudar, buscava alguma forma me esquivar da vida do crime, mas era sempre puxado de volta.

Já morando em Macaé, fui para o centro com um calhamaço de currículos. Tinha apenas o dinheiro da ida, e não sabia como iria voltar. Era uma distância de 12 km de casa. Por volta das 16h, já não tinha mais currículos em mãos, estava com fome, sem almoçar, e decidi voltar para rodoviária. Pensei que teria que voltar caminhando.

Até que desceu um senhor de um ônibus. Ele estava chegando da Bahia e me pediu ajuda para colocar a mala dentro de um táxi. Fiz isso e ele me retribuiu com R$ 20. 

Quando cheguei em casa, abri minha geladeira, só tinha água. Abri meu armário, só tinha farinha. Foi quando um amigo me ofereceu uma oportunidade no tráfico mais uma vez. Voltei decidido a fazer um pouco de dinheiro e logo sair. 

https://ponte.org/refletindo-a-liberdade-diego-a-maior-dificuldade-e-enfrentar-o-preconceito/

Retomei os negócios, mas em pouco tempo me chamaram para ficar de gerente da boca de fumo. Nessa época, eu conheci o Vitinho. Ele já era nascido e criado ali no Lagomar (bairro em Macaé). 

Éramos responsáveis pela logística da distribuição e venda da cocaína e da maconha. Não cuidávamos mais da venda, apenas recolhíamos os quilos [de drogas], embalávamos o que seria encaminhado para o comércio.

Comecei a ganhar mais dinheiro, e o meu nome voltou a circular pela cidade. Com isso, fiquei mais visado pela polícia. Era muita referência minha na delegacia, até imagens. Falavam que eu era traficante do Rio de Janeiro, que tinha ido para a cidade de Macaé para assumir o tráfico. 

Para me cuidar, fazia o que era possível, ficava o mínimo na rua. Lá em Macaé eram muitas guerras de facções, então tinha que estar preparado a todo momento para quando o bicho pegasse. 

O trabalho parecia menos perigoso porque eu não precisava mais dar a cara a tapa na rua vendendo. Mas era apenas impressão.

Veio a cana

O momento mais difícil da minha vida foi durante a prisão. 

Fui preso numa quarta-feira de 2013. Não esqueço: era jogo do Flamengo, então havia muita demanda. Dois dos meninos que trabalhavam não puderam ir nesse dia ficar no plantão vendendo, então fiquei responsável pela venda para o negócio não parar. Por volta das 19h já tinha acumulado uma margem boa de lucro. Decidi que era hora de ir embora.

Aí o Vitor me chamou para buscar maconha em uma casa de uma conhecida. Eu não queria ir, quase como um pressentimento de algo ruim que poderia acontecer. Mas ele ficou insistindo.

Fiquei 5 minutos nessa casa, quando estava saindo pelo portão, vi uma mão com luva segurando uma pistola 45 preta. 

Na mesma hora, peguei e dei uma porrada no portão, o portão deu aquela batida e a arma caiu. O cara deixou a arma cair no chão. Aí como o portão fechou, ficou metade da arma para dentro e metade para fora. Só que eu não imaginei que fosse a polícia. Pensei que fosse um sujeito de outra facção e como eu estava desarmado naquele momento, tentei pegar a arma do chão. Aí me joguei no chão, empurrei o portão de volta para ele abrir, olhei para cima, o policial que deixou ela cair estava na minha frente de braços cruzados, a uma distância de dois a três metros. Outro policial já estava ajoelhado com o fuzil apontado. E na outra ponta, mais um policial ajoelhado, com mais um fuzil. 

Não tinha jeito.

Me rendi, e logo me algemaram. Entraram na casa e pegaram o Vitor também. Começaram a pegar as drogas que estavam ali. Aí que veio o meu medo maior. 

https://ponte.org/refletindo-a-liberdade-delfio-em-busca-da-memoria-e-da-cidadania/

Eles queriam uma quantidade alta de dinheiro para liberar a gente e as drogas. Pediram R$ 150 mil. A boca de fumo não ia pagar isso tudo. Se fosse um valor mais baixo, dava para conversar. Ofereci R$20 mil, que era o que eu tinha. “Tenho 20 mil para soltar eu, ele e as drogas”, falei aos policiais.

Um deles topou, os outros dois não. E disseram assim: “Vamos pegar e vender esses caras que a gente consegue muito mais dinheiro”. Lá em Macaé, eles têm essa prática de tentar arrumar dinheiro. Se não conseguem, vendem o cara para outra facção. Aí já sabe: o cara é morto.

Fiquei desesperado e comecei a gritar para juntar moradores ali. Fiz o maior escândalo para nego ver que eu estava saindo dali. Se eu não chegasse na delegacia, era porque algo tinha dado errado.

Conversa daqui, conversa de lá, fomos para delegacia.

Uma vida na prisão

Fui preso e condenado por tráfico de drogas: 25 anos; 15 no tráfico; 5 por associação [ao tráfico]; mais 5 pelo porte de armas. Não vou dizer que era inocente, mas acredito que não merecia tanto tempo. 

Com a ajuda de um advogado, consegui reduzir a minha pena. Dessa vez, foram 9 anos de condenação; desses, fiquei cinco no fechado. E agora estou em regime de liberdade condicional. Há três anos estou na rua. 

Minha condenação termina no fim deste ano.

Cheguei em Macaé em 2011 e fui preso em 2014. Fiquei cerca de três anos nessa prática.

Na delegacia rolou o seguinte: chegamos lá, tinha mais de 15 repórteres esperando. A polícia não ganhou dinheiro vendendo a gente para outra facção, mas ganhou a premiação porque foi um prato cheio para imprensa. Droga era lixo, câncer da sociedade, que espalhava tráfico de drogas pela cidade de Macaé. Aí efetuaram a prisão.

Nesse momento fui separado do Vitor, ele foi para uma prisão e eu fui para outra. Cheguei num galpão, me perguntaram qual era o meu artigo (o tipo penal) e se eu pertencia a alguma facção. 

O primeiro momento foi meio surpreendente porque fui para uma cadeia no Bangu C, numa cela em que cabiam 80 pessoas, mas tinham 160. 

Dormi no chão por muitos dias. A comida era intragável. Mas o período mais difícil de todos foi quando eu recebi a minha carta de sentença e soube dos meus 25 anos. Pensei que minha vida tinha acabado.

Dali foi ladeira abaixo: entrei em depressão, fiquei doente, tive tuberculose e minha ex-mulher me abandonou.

Foto: Alice Vergueiro / IDDD

Por uma sorte, acabei caindo na mesma cadeia que o Vitor. Isso me tranquilizou, e finalmente conseguir equilibrar meu psicológico. 

A gente conseguia se comunicar por escrito, às vezes no banho de sol. Lá tinha um monopólio que a gente pagava R$100 para o funcionário, e ele mudava a gente de cela. 

Rodei muitas cadeias. Uma das maiores dificuldades era a adaptação porque eu ficava um tempo em um lugar e logo era transferido. Rodei quase todas as cadeias do Rio nesses cinco anos. Quando eu começava a me estabilizar em alguma coisa, era transferido para outra. Nesse tempo não pude estudar, nem trabalhar.

A rua, a liberdade

Quando ganhei liberdade, meus amigos foram me buscar e me levaram direto para a casa da minha avó. Saí totalmente perdido. Cinco anos na cadeia, o mundo tinha mudado bastante. Saí meio que sem direção. 

Eu consegui sair, já o Vitinho experimentou pouco a liberdade. Depois que eu saí, ele ficou mais uns seis meses preso, depois ganhou a rua. Ele morreu tem um ano e alguns meses. Morreu de tuberculose.

Quando fui embora da prisão, não sabia o que fazer da vida e os pensamentos do crime voltaram a me assombrar. Começou a vir muita oportunidade porque eu conheci muita gente na cadeia, muito chefe de boca de fumo, muitos matutos de drogas de outros estados. 

Fiz o que podia para me manter na linha. Até que um dia soube dos trabalhos de uma organização que dá a oportunidade a egressos do sistema.  No mesmo dia, fui até esse lugar, conversei com um rapaz, contei a minha história. No dia seguinte, ele disse para eu ir até uma estação de tratamento de água, que era a antiga Cedae no RJ.

Fui, me apresentei, passei por uma entrevista com a psicóloga e o RH da empresa e no mesmo dia comecei a trabalhar.

Hoje, sou agente de saneamento básico, do tratamento de água e tratamento de lodo de uma estação que abastece a água da cidade de Itaboraí. Nesse meio tempo, conheci a Marcele e com ela vivo até hoje.

Dia após dia

O melhor momento da minha vida foi quando recebi a notícia que sairia em liberdade.

Ainda tenho muitos nós para desatar, não posso ter título de eleitor e ainda tenho uma multa para pagar como parte da condenação. Mas quando saí da prisão, criei uma perspectiva de vida, queria uma mudança. Tentei ficar longe de tudo que achava ser errado. 

Tenho vontade de fazer uma faculdade na área em que trabalho.

https://ponte.org/condenados-pobres-que-ja-foram-presos-podem-ser-isentos-de-pagar-multa-decide-stj/

A vida continua difícil. Admito que é tentador voltar [para o tráfico]. Recebo R$1200 por mês para sustentar minha família. O inimigo é cabuloso, mas botei na mente que o crime não me deu nada, só tirou. Tudo que tinha, perdi. Eu sofri muito na cadeia.

Nunca mais vou ser o mesmo devido à prisão. Não durmo bem e tenho depressão.

Desde então, botei na minha mente que se eu for conseguir algo na minha vida, vai ser trabalhando e estudando. Não quero mais que seja de outra maneira.

O que me motiva a continuar lutando é calar a boca da sociedade. Todo mundo falou que quando eu saísse da cadeia, voltaria a traficar, que não tinha mais jeito para mim. E através da minha história, quero ajudar outros jovens também a largar a vida do crime.

As favelas precisam ser cuidadas, precisam de investimento, de educação, de cultura. Muitos jovens são seduzidos para o crime pela falta de escolha. Mas o que precisam é a garantia de uma alimentação, de uma moradia melhor e também de qualidade de vida, de lazer. O Brasil, invés de construir mais cadeias, tinha que construir mais escolas, mais quadras de esporte. Cortar o mal pela raiz. 

Ajude a Ponte!

O Brasil é fábrica de fazer bandido. Todos que eu conheço [que foram presos], voltaram para o crime. E não são poucos. O cara sai numa situação e descobre um verdadeiro deserto: ninguém dá oportunidade.

O ex-presidiário tem muita dificuldade de fazer uma nova história, uma nova vida. 

*O nome foi alterado para preservar a identidade do entrevistado.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude

mais lidas