Refletindo a Liberdade | Iraci: ‘Algumas mulheres não chegam ao fim da prisão’

“A prisão é uma lavagem cerebral. Você entra e vê outro mundo. Ou melhor, parece que você está em outro mundo e a realidade, tal como a gente conhece, deixa de existir”

Ilustração: Rafael Coutinho

A série Refletindo a Liberdade é uma produção da ONG Reflexões da Liberdade, que, desde 2017, gera impacto social fazendo com que a sociedade repense os processos que enchem as prisões, ressignificando os territórios e desenvolvendo a comunidade para que reivindiquem a vivência das políticas públicas. A série traz os depoimentos de cinco egressos com diferentes histórias de vida, e será publicada ao longo desta semana, até o dia 1º/4.

Eu não costumo falar muito sobre a minha história. Tentei esquecê-la, pois pensar nela me traz uma angústia que pensei ter superado. Me chamo Iraci*, tenho 39 anos. Digo que tenho muita sorte e me sinto abençoada pelos encontros que tive na vida e pela oportunidade de achar um caminho que me tirasse de uma realidade complexa e cheia de sofrimento.

Sou nascida e criada na Rocinha, no Rio de Janeiro. Meu pai, já falecido, era traficante. Ele comandava uma região que é extensão da Rocinha, a favela do Parque da Cidade. Ele era o dono dali.

Em casa, era eu, minha irmã mais nova, e meus dois irmãos mais velhos. Sou uma das filhas do meio. Vivíamos bem. Nosso pai sempre teve a preocupação de nos oferecer conforto, educação e lazer. Ele mesmo não tinha tanta disponibilidade, mas sempre pagava para que outros nos levassem para passear. A gente já possuía coisas distantes da realidade daquela comunidade, iguais pessoas de classe alta.

Minha mãe era menos presente do que nosso pai, mas também era carinhosa conosco. Muitas vezes ela sumia e meu pai arranjava alguém para cuidar de nós. Quando pequena, eu dizia ao meu pai que quando crescesse queria ser advogada para poder defendê-lo. Eu achava que ele era o certo dentro daquela vida. Ele era meu herói

Naquela época dizia que minha mãe era do “pisa”, mas hoje em dia se fala 155, 157, os artigos de furto e roubo. Já adulta, soube que ela cometeu crimes piores. Meu pai, como todo homem poderoso, tinha seus caprichos e não se limitava ao básico. Isso se estendia em sua vida amorosa.

Ele teve muitas amantes, minha mãe soube de ao menos uma dela. E não deixou barato: mandou executá-la.

Certo dia, teve uma operação na comunidade, conhecida por “Mosaico”. Lembro como se fosse hoje, minha mãe agarrada em mim, assustada, repetindo “minha filha, minha filha”. Eu tinha 6 anos. Os policiais chegaram atirando, passou um tiro de raspão em mim. Soubemos que os policiais pegaram meu pai e colocaram ele preso em outro lugar. Exigiram dinheiro para o resgate, mais do que a gente tinha.

A saída que minha mãe encontrou foi ir atrás de um conhecido do meu pai que estava devendo uma grana para ele. Fomos eu, minha irmã mais nova e a minha mãe até o Morro do Vidigal conversar com esse homem. Havia, entretanto, um fator surpresa que mudou radicalmente nossas vidas. Esse homem, a quem chamarei de Márcio, era apaixonado pela mesma mulher que minha mãe mandou matar. Aquela amante de meu pai.

Quando chegamos, ele me tratou super bem, deu brinquedos para mim e para minha irmã e pediu que nós esperássemos perto de uma barraca. Em seguida, chegou uma amiga da minha mãe. Na sequência, apareceram alguns capangas para chamar a minha mãe.

Sempre fui muito observadora, desde criança. Eu disse: “mãe, deixa eu ir com a senhora”. Aí o rapaz, que era branco e bem magrinho, coçou a cabeça e ficou vermelho. Eu não esqueço. A minha mãe, sempre muito alegre e esperta, falou “não, filha, fica aí que eu já volto”. 

Essa foi a última vez que eu vi minha mãe.

Ficamos ali chorando por horas, sem saber o que estava acontecendo. A amiga da minha mãe voltou, disse para irmos embora, e que encontraríamos com a minha mãe na parte de baixo do Vidigal. Chegando lá, nada dela. A moça pediu um táxi. Eu bati o pé dizendo que não entraria sem a minha mãe. Ela disse que minha mãe tinha sido presa. Eu não sabia o que isso significava.

Pegamos o táxi até o Parque da Cidade. Meu pai já havia sido solto. Até hoje não sei como ele conseguiu se libertar. Quando ainda tinha ele presente, eu era muito nova para conectar os pontos e poder formular alguma pergunta. Hoje, tenho várias. 

Lembro que, durante algum tempo, ele pedia para algumas pessoas irem procurar a minha mãe nas delegacias, mas nunca encontravam.

Nisso se passou um tempo e até hoje não tenho uma resposta definitiva. Depois de alguns anos, eu já muito mais entendida sobre a vida, soube por rumores que esse cara matou a minha mãe por vingança, após ela matar a mulher que ele amava.

Não demorou nem um ano, acredito, e meu pai começou a sentir uma dor muito forte no peito. Nossa casa era muito grande e tinha uma edícula.  Era um quarto com um banheiro próprio. Meu pai escolheu ficar recolhido lá enquanto estava doente. Lembro de pegar vinagre e botar no peito dele. Pedia a Deus para aliviar a sua dor.

No momento em que eu estava rezando, chegaram os advogados dele, acompanhados de algumas mulheres. De repente, como se tivesse esquecido da dor, meu pai levantou, tomou banho e saiu. Foram ao show da Jovelina Pérola Negra.

Na manhã seguinte, acordo com a minha madrinha contando que meu pai tinha morrido na noite anterior e que ele teve uma overdose num quarto de hotel.

Daí então, a vida mudou completamente para nós. Passamos de casa em casa, fomos acolhidas por pessoas desconhecidas. Não havia um lugar certo. Eu era sempre a última a dormir e a primeira acordar. 

Nossa madrinha ficou com a casa do meu pai e, por algum tempo, ela nos acolheu. Até certo dia que ela nos avisou que não poderia mais ficar com a gente e que a minha irmã era muito desobediente. Ela nos mandou embora. Na Rocinha, busquei a dona Elisa, uma líder comunitária.

Descobri que meu pai, 15 dias antes de morrer, falou com ela e disse “eu tenho a senhora como minha mãezinha, cuida das minhas filhas, os meninos conseguem se virar”. 

Pela falta do meu próprio espaço, hoje eu prezo muito pelo meu cantinho, de poder abrir uma geladeira sem ter medo do que vão pensar, e de não me sentir uma intrusa. Pensava que, a qualquer momento, seríamos empurradas para outro lugar, pois era isso que, eventualmente, acontecia. Por ser mais velha, com uma irmã debaixo do braço, eu sempre tentava protegê-la.

Meus irmãos, ainda crianças, seguiram a vida do crime. 

O mais novo assumiu os negócios no Parque da Cidade, em sociedade com outros rapazes. Ele, no entanto, era apenas uma criança. 

A convivência com Dona Elisa sempre foi ótima, até hoje tenho ela como uma mãezona, mas meu irmão do meio foi nos buscar e nos levou para morar com ele na Cidade de Deus. Essa nova vida durou muito pouco. Eu lembro estar dentro de casa e escutei tiros do lado de fora. Eu saí desesperada e vi dois policiais carregando o corpo do meu irmão, já sem vida. Um segurava os braços e o outro, as pernas. Jogaram ele numa caçamba e disseram que estavam socorrendo ele. 

Eu estava com 13 anos. Precisei ir até o hospital reconhecer o corpo. A imagem que me vem é dele ainda com os olhos abertos. Meu irmão mais velho estava preso, o do meio estava morto. 

Já o mais novo comandava a boca de fumo no Parque da Cidade. Seu método chamava muita atenção dos policiais e causava desconforto entre os moradores e também entre os traficantes. Ele gostava de tocar o terror e botava o pessoal para andar armado. Eu, já mais velha, sempre era chamada para acalmar a situação diante das reclamações. Até que um dia não teve mais jeito.

Um dos líderes, que conhecia o meu pai, e sempre respeitou a minha família, me fez um alerta: ‘Teu pai deixou aquilo lá para vocês e o seu irmão não honra o que tem entre as pernas e só causa problemas para nós. Você é mulher, mas você é de atitude’. Ele sugeriu que eu desse as ordens no Parque da Cidade. Na época, estava trabalhando como auxiliar de escritório e, logo, me vi no meio dessa vida do crime. Larguei tudo e fui.

Não demorou muito até que o meu irmão mais velho entrasse em conflito com o vapor (pessoa que cuida da venda das drogas) nessa mesma comunidade, após tentar dar o bote nesse cara atrás de drogas. Não deu outra: o segurança do vapor interferiu e acabou baleando meu irmão. Ele foi socorrido e levado até um hospital, mas não resistiu. Era 2009.

Eu fui presa na Rocinha, dentro da minha casa, em 2012. Estava com meu filho recém-nascido no colo. Meu filho mais velho estava com 10 anos. 

Eu vivia em cárcere privado, escondida, pois a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) já tinha entrado lá em 2011. Ninguém sabia onde estávamos. Mas meu filho mais velho era conhecido nas redondezas e isso facilitou que nos encontrassem. 

Chegou o momento. O mais difícil foi deixar meus filhos. Os policiais tentaram derrubar a porta, mas não conseguiram. Então, finalmente, eu abri. De lá não tinha para onde ir.

Eu não sabia o que seria da minha vida. Passei pelo Bangu 8, que costumava ser a porta de entrada. Minha comadre buscou meus filhos que ficaram sozinhos em casa.

Foi muito dura a vida no cárcere. Eu não tenho inimigos, mas mesmo se tivesse, não desejaria que passassem por aquele lugar. 

No começo, na penitenciária federal, fiquei sozinha dentro de uma cela. Depois fui para Bangu 7. Lá, eram 72 mulheres num cubículo. Não havia sequer espaço no chão para deitarmos. Por sorte, já conhecia algumas delas e tive um convívio tranquilo. Elas me ajudaram arrumar um cantinho que a gente chamava de “quieto”, entre uma cama e outra.

A prisão é uma lavagem cerebral. Você entra e vê outro mundo. Ou melhor, parece que você está em outro mundo e a realidade, tal como a gente conhece, deixa de existir.

Recebi apenas uma visita dos meus filhos nesse tempo. Foi assustador, pois não reconhecia o mais novo. O mais velho também havia se transformado, já era um homem, mas tinha traços que eu conseguia reconhecer. O mais novo, não. Isso me deixou arrasada. 

Vi algumas pessoas definharem lá dentro. E outras que traziam histórias verdadeiras que me comoveram demais. 

O sofrimento é a regra e algumas mulheres não aguentam chegar ao fim da prisão. 

Foi duro, eu pedia a Deus que me colocasse numa situação vegetativa, que ocorresse um apagão na minha mente e eu não lembrasse de nada, nem de ninguém. Queria esquecer até mesmo a minha origem porque eu não aguentava de saudades.

Os anos passaram, toda vez que eu tentava um benefício por bom comportamento, o Ministério Público indeferia. Já não tinha mais esperanças.

Precisei buscar alguma tranquilidade, até que uma colega me emprestou um livro que me trouxe um pouco mais de paz. Eu gostei da experiência e comecei a ler outros. Virou um hábito. Era minha forma de viajar, sair daqueles pensamentos. 

No final de 2016, ganhei um benefício para trabalhar. No primeiro dia de serviço, minha irmã estava me esperando com os meus filhos. Parecia que eu estava em outro planeta. Os dois estavam enormes. Senti tudo ao mesmo tempo: alegria, tristeza, angústia e euforia. 

Após algumas horas de trabalho, voltei para a prisão. Minha irmã foi comigo. Chegando na porta, tive uma crise de pânico, entrei em desespero e disse que não ia entrar. Minha irmã, muito esperta, não deu margem para o meu surto. Ela simplesmente apertou a campainha e me empurrou lá dentro. Eu não teria conseguido entrar sozinha. 

Eu saía às 5h e voltava às 20h para Penitenciária. Todas as oportunidades que surgiam, eu pegava. Logo comecei a fazer um curso de computação. Nos dias de curso, eu saía às 5h e voltava meia-noite. Tínhamos duas horas para fazer o percurso de volta. Sair para rua era como respirar após tanto tempo vivendo sufocada. 

Em abril de 2017, ganhei o semiaberto. Voltei para Rocinha. Foi um alvoroço, havia uma expectativa de estourar uma guerra entre facções. Eu não quis parar de trabalhar para não voltar para aquela vida de antes. Trabalhava com faxina e fui me encontrando.

Decidi largar mão do tráfico. Vi que o mundo era muito maior e não queria mais aquilo. Muitos apostaram até quando eu iria aguentar. Muitos familiares deixaram de falar comigo. 

Foi muito difícil, não vou mentir. Pensei várias vezes em voltar, pois não via outras condições de pagar o aluguel e criar meus dois filhos sozinha.

Até que em 2018 estourou a guerra entre facções. Eu comecei a trabalhar em Niterói, voltava quase de madrugada. 

O pai do mais velho me entregou meu filho. Eu não queria levar ele para Rocinha em meio àquela guerra, mas não teve jeito. O mais novo ficou com uma tia de consideração. 

Nesse tempo, fiz o que pude, mas também tive muita ajuda de pessoas que cruzaram o meu caminho.

As coisas foram se acertando com o tempo. Conheci o projeto Educação que Liberta, que é uma preparação para o Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos) para concluir o Ensino Médio.

Comecei a assistir às aulas e no ano passado prestei o exame. Passei com boas notas e esse projetou foi como uma ponte para que eu alcançasse um sonho que achava impossível: cursar a faculdade.

Hoje, estudo o segundo período de Psicologia. É a maior felicidade, é como se eu estivesse vivendo um sonho. 

Minha irmã se mudou da Rocinha, hoje já é avó. Trabalha de carteira assinada, meus sobrinhos mais novos estão estudando, meu filho está com 23. Descobri que minha nora está grávida, então logo serei avó.

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Passei por pouca e boas, perdi meus pais e irmãos. Apesar de tudo, sinto uma alegria imensa quando entro na sala de aula. Parece que todo o cansaço e preocupação que estavam comigo, ficam para fora. Estar ali me fortalece. 

E hoje sigo um dia de cada vez, e com Deus em todos eles, costumo dizer.

*O nome foi alterado para preservar a identidade da entrevistada.

Entrevistas e depoimentos por Humberto Maruchel Tozze e edição por Thiago Ansel

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