Reintegração de posse leva caos e sofrimento ao centro de SP

    Trabalhadores sem-teto que ocupavam desde fevereiro um prédio, no centro de São Paulo, foram desalojados pela polícia nesta terça-feira, 16/09, numa reintegração de posse que provocou revolta e confrontos nas ruas da cidade

    Cerca de 800 pessoas sem-teto com suas crianças, algumas recém-nascidas; famílias inteiras, mulheres ainda de resguardo, que deram à luz recentemente, idosos. Foi essa gente que enfrentou na manhã de terça-feira, 16 de setembro, a tropa de choque, a Rota, a Força Tática, a Guarda Civil Metropolitana e os motociclistas da Rocam — um contingente estimado em pelo menos 250 homens, armados com cassetetes, bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo, balas de borracha.

    Logo, todo o centro de São Paulo estaria transformado em praça de guerra, com um ônibus articulado incendiado bem na frente do Theatro Municipal, vários focos de incêndio espalhados por todo o centro financeiro, a polícia arremessando bombas de gás lacrimogêneo em tudo o que se movesse, os escritórios fechando as portas às 11h, em um feriado improvisado, e os trabalhadores saindo às carreiras e chorando como bebês — efeito do gás.

    O exército dos miseráveis, entre os quais contavam-se imigrantes africanos, bolivianos e peruanos, equipou-se com as armas do improviso. De uma lanchonete vizinha, pegaram, no lixo, centenas de cocos verdes sem água, que levaram para o primeiro andar; de caçambas de entulho, tomaram sofás velhos, carcaças de televisores, restos de geladeiras e de aparelhos de ar-condicionado, para serem arremessados do alto do prédio contra a tropa de soldados. Também havia latas de tinta branca e rojões, para serem transformados em projéteis.

    O cruzamento das avenidas Ipiranga com São João não teve espaço para a dura poesia concreta, ocupado que estava com contingente policial preparando-se para despejar à força os sem-tetos que se haviam trancado dentro do edifício de número 605 da avenida São João. Tratou-se de uma ação de reintegração de posse, ordenada por uma juíza, Maria Fernanda Belli, da 25ª Vara Cível de São Paulo, a pedido do proprietário do imóvel, o empresário Ricardo Pimenta.

    O portentoso prédio com 23 andares, construído para ser o hotel Aquarius, estava fechado há 10 anos e foi ocupado pelos sem-teto em luta pela moradia desde fevereiro.

    Para os sem-teto, a ocupação do imóvel foi uma folia. “No Carnaval deste ano, a gente se disfarçou de bloco de rua para fazer a ocupação”, lembrou Antonia Nascimento, 43 anos, uma das coordenadores do MSTRU (Movimento Sem Teto pela Reforma Urbana), que executou a ocupação ao lado da FLM (Frente de Luta por Moradia) e do MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro).

    Não restava, contudo, mais nada de clima festivo na manhã desta terça-feira, data escolhida pela PM para executar a reintegração de posse do imóvel. Os sem-teto haviam anunciado que pretendiam resistir à ação dos policiais. “Eu não vou sair”, gritaram os ocupantes, batendo em panelas e jogando papel picado das janelas, pouco antes das 6h, quando a Polícia Militar chegou. Militantes de outras ocupações foram ao prédio para participar da resistência. Mesmo prevendo o choque com a PM, os sem-teto decidiram manter mulheres, inclusive grávidas, e crianças dentro do prédio, reunidas no primeiro andar.

    Bem em frente à entrada da ocupação, junto a aproximadamente 30 pessoas, estava a operadora de telemarketing Priscila, 28 anos, seu marido Hozanio, 29, e o filhos Fernando, 7, e Letícia, 1. “Viemos dar apoio. Somos de outra ocupação e isso pode acontecer com a gente. Quem não luta, está morto”, disse com um sorriso.

    A tensão toda começou às 5h30, quando os primeiros carros de bombeiros adentraram na avenida. “Entra, entra! Ou sai, sai! Quem quiser entra, quem não quiser, até breve, se Deus quiser”, gritou Antônio, 23, um negro forte e musculoso, espécie de faz-tudo para os comerciantes do centro. “Hoje, deixarei meus clientes na mão”, disse ele, atualmente exercendo as funções de pintor em um boteco no vizinho Anhangabaú. Antônio não teve coragem de ir trabalhar largando a mãe — faxineira — para trás.

    A Ponte entrou. Foi o único órgão de imprensa a acompanhar de dentro da ocupacão os embates entre a polícia e os sem-teto, até a rendição desses últimos. Nossos jornalistas estavam também do lado de fora, acompanhando a ação dos policiais e todo o movimento no centro de São Paulo.

    Portaria principal do prédio lacrada, camas desmontadas, sofás, fogões e geladeiras foram transformados em barricadas, bloqueando a passagem. Ninguém mais podia sair.

    Crianças com olhos arregalados esperavam a entrada da tropa no prédio. Outras, pequenininhas, dormiam, inocentes. Ninguém tomou café da manhã. Foi de jejum mesmo que a turma esperou a chegada dos soldados.

    A ordem da principal líder dos sem-teto, a Nete (Ivaneti Araújo), era que a turma se espalhasse por todos os andares, a fim de dificultar a ação da PM. Mas o pessoal preferiu reunir-se nos 2 primeiros andares. Logo ficou claro que a resistência ficaria a cargo do pessoal pendurado nas janelas. Do alto de seus postos de observação, a soldadesca pobre calçava sandálias havaianas, e usava camisetas e shorts. E tinha ao seu lado os cocos que seriam arremessados, além das demais “armas”…

    Às 7h27, o tenente Weisshaupt, da Força Tática do 7º Batalhão, e um grupo de aproximadamente 10 PMs, usando capacetes e armados com escopetas e escudos, avançaram em direção ao prédio. Foram recebidos por uma chuva de objetos atirados pelos sem-teto, que fez os policiais recuarem. Os sem-teto começaram jogando cocos, paus, pedras e tijolos, depois passaram para vasos, camas, televisores e sofás.

    A PM reagiu com o arremesso maciço de bombas de gás lacrimogêneo pelas janelas do prédio, além de invólucros de efeito moral e balas de borracha.

    Logo chegaram equipes de batalhões próximos, como o 13° e o 11°. O helicóptero Águia 15 foi enviado, mas os focos de confrontos e as barricadas de fogo atingiram o Largo Paissandu, a Praça da República e a avenida São João com a rua Timbiras, o que fez com que o 3º Batalhão do Choque, chamado apenas em casos de distúrbios, fosse acionado. (Veja o mapa no final do texto)

    Dentro do prédio, a atmosfera ficou irrespirável. Cauã, de 9 anos, chorava e tremia todo de medo. Chorava pelo gás lacrimogêneo e pelo terror. A avó dele não conseguia consolá-lo. Estava desesperada por ter perdido a filha na correria insana escada acima, que se seguiu ao ataque.

    A boliviana Juanita, com um bebê de dois meses no colo (“nasceu na ocupação”), ainda ilegal no país e sem documentos, de repente esqueceu o pouco português que falava ainda há pouco. O aymara (mesmo idioma nativo do presidente Evo Morales) afirmou-se como a sua língua do medo. Só dava para entender o “Dios, Dios, Dios y Madre mia”, que vinha ritmado como um mantra.

    Quando ficou claro que o navio estava mesmo afundando, um dos organizadores da ocupação gritou: “Tem saída pelo prédio ao lado. Primeiro as mulheres, as crianças e os idosos. Os homens ficam.” Uma fila indiana de desespero, choro e solidariedade se formou, para ajudar os mais frágeis a subir no telhado vizinho, transpor um abismo de andaimes e subir as escadas que os levariam ao prédio vizinho, que está em obras de restauro. Os jovens ajudavam a içar as pessoas com dificuldades de movimentos.”

    “Tive que pular 3 prédios, com minha filha no colo, para vir até aqui. Ela tem bronquite e desmaiou com a fumaça”, contou Carla Batista Araújo, 22 anos, segurando a filha de 1 ano e meio na avenida Ipiranga. “Tem criança lá dentro, pelo amor de Deus”, gritou várias vezes para os policiais. “Eu tenho mais 3 filhos que estão lá dentro e meu marido não conseguiu
    trazer”, chorou. A Tropa de Choque chegou em seguida.

    Por volta das 8h da manhã, 2 caminhões blindados da Tropa de Choque, conhecidos como Centurion, se aproximaram do prédio. À medida em que o choque ameaçava invadir a ocupação, a tensão crescia e os moradores reagiam. Objetos eram arremessados do prédio em direção aos policiais, que revidavam com disparos de bomba em direção à ocupação. Até que um dos veículos blindados forçou a entrada do prédio e derrubou a porta. Outro arrancou uma palmeira imperial da avenida São João. Às 9h17, cerca de 20 homens da Tropa de Choque da PM invadiram a ocupação São João. Bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo explodiam dentro e fora do edifício.

    Lá dentro, cerca de 50 remanescentes insistiam na resistência, inclusive algumas mulheres e crianças, e uma jovem de 16 anos, grávida. O grupo subiu a pé até o último andar do prédio, e ali aguardou a chegada do choque.

    Todos começaram a procurar pela reportagem da Ponte, a única presente no interior, pedindo que intercedesse junto ao comando da tropa policial. Queriam passar a mensagem de sua rendição, que não mais resistiriam e nem atacariam os PMs. Só queriam sair, mas não conseguiam. Era impossível descer com os policiais jogando bombas através das janelas.

    Outra repórter da Ponte, do lado de fora, em contato com o comando da tropa, transmitiu a notícia de que o choque garantia que não haveria violência.

    Policiais gritavam de um lado para que os manifestantes se afastassem, dando ordens ora de encostar na parede, ora de deitar no chão (alagado) e outra de ir para a parede oposta. Os ocupantes do outro lado gritavam que não iam resistir e pediam para tirar as pessoas que estavam passando mal.

    Começaram então a descer — primeiro os que estavam passando mal, principalmente gestantes, depois as demais mulheres e crianças. Por fim, os homens.

    Acabava a ocupação São João.

    De repente, contudo, o conflito se alastrou para muito além do antigo hotel Aquarius. A Tropa de Choque avançou pelas ruas próximas, disparando bombas e balas de borracha. Além da República, o conflito chegou ao largo do Paissandu e à Praça Ramos de Azevedo, onde um ônibus foi incendiado.

    Os policiais miravam em qualquer pessoa que estivesse passando pela rua, mesmo quem não estivesse praticando violência. O único critério parecia ser o de esvaziar as vias, usando tiro, porrada e bomba. Logo apareceram adeptos da tática black bloc, apedrejando os policiais com as camisetas enroladas no rosto. “Nunca vi a polícia adotar uma ação tão violenta nas ruas, nem nas jornadas de junho”, disse o redator Josias Rodrigues Vianna Filho, 41 anos, observador legal dos Advogados Ativistas.

    No largo do Paissandu, um grupo de pessoas invadiu três ônibus e fugiu levando as chaves dos veículos. “Eles disseram: não temos nada contra vocês, só queremos as chaves”, contou um motorista. Protegidos atrás dos veículos parados, o grupo aproveitou para incendiar a cabine de uma empresa de ônibus e jogar mais pedras contra os policiais. A Igreja Senhora do Rosário, em frente, trancou as portas com cadeado.

    Três homens em roupas rasgadas comemoraram o conflito no centro de São Paulo. “Vamos lá tentar pegar uns tênis naquela loja. Ela ficou aberta”, comentou um deles. As bombas da polícia fizeram o grupo recuar antes de chegar à loja. Acabaram se contentando em remexer nos restos carbonizados da cabine da empresa de ônibus. Encontraram um relógio e algum dinheiro chamuscados e saíram sorrindo.

    Outro que sorriu com a guerra no centro de São Paulo foi o vendedor ambulante Genésio dos Santos — os amigos o chamam de Kassab, por ter atirado um saco de gelo no então prefeito Gilberto Kassab, em 2010, numa vingança contra os fiscais da prefeitura que haviam apreendido sua mercadorias. Diante do ônibus pegando fogo na Praça Ramos de Azevedo, em frente ao Theatro Municipal, o senhor de 51 anos, com um guarda-sol vermelho e branco acoplado na careca, corria de um lado para outro vendendo suas garrafas de água a dois reais, ignorando o trovão das bombas e o cheiro do gás lacrimogêneo como se não existissem. “Eu vendo a minha água gostosa para acalmar o povo. O povo anda muito nervoso.”

    Reportagem: Fausto Salvadori Filho, Laura Capriglione,  Maria Carolina Trevisan, Paulo Eduardo Dias / Imagens : Caio Palazzo e Rafael Bonifácio

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    marcio ramos
    marcio ramos
    9 anos atrás

    Boa!

    Regina
    Regina
    9 anos atrás

    Belíssima matéria.

    Laura
    Laura
    9 anos atrás

    Sugestão de pauta: como e porquê essas famílias foram parar aí? Qual a reivindicação delas? Porquê não são ouvidas? Acho que detalhar a história dessas pessoas sofridas ajudaria e muito a abrir a cabeça de muita gente que não sabe o que pensar a respeito, mas tende a achar um absurdo a ação desmesurada da PM (como de fato).

    Gisele
    9 anos atrás

    Bela reportagem, humanizada, mostrando quem são essas pessoas e por que ocupam, fugindo dos clichês da mídia tradicional que só sabe rotular de “vândalo” quem luta por direitos básicos.

    Luiz Vieira
    Luiz Vieira
    9 anos atrás
    Responder a  Gisele

    Leva alguns para morar na sua casa. Principalmente os imigrantes africanos, bolivianos e peruanos, etc.

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    walace
    walace
    9 anos atrás

    Carlos seu comentario eh pertinente, se nao fosse fruto de uma mente morta pra realidade, uma mente domesticada, e alienada pelo sistema, com pessoas com pensamentos pre moldados iguais aos seus nao discuto, pois seria impossivel, mas este comentario e pra quem leu o seu e ficou na duvida…nem sempre seguir oque se manda, ainda que seja uma lei significa fazer oque,eh,justo e correto, hitler nao matou 1 milhao de judeus se muitas mentes alienadas e vazias nao o tivessem obedecido, um sem numero de indios nao teria sido exterminado se um exercito de homens sem raciocinio nao tivesse obedecido ordens de monstros gananciosos….apenas alguns exemplos dentre muitos outros…o ladrao que mata friamente em nada difere do homem que age sem refletir sobre suas acoes…..reflita sobre seu mundo….ele pode ser muito mais podre e falso do que vc imagina

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