Relatório expõe fracasso policial com dispersão da Cracolândia e propõe soluções integradas

    Documento do Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre a região, que será lançado hoje (27/6) na Câmara Municipal de São Paulo, aponta que presença policial na região é ineficaz sem articulação com políticas sociais e de saúde

    Ação de GCMs da IOPE no fluxo da “Cracolândia” em junho de 2022 | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    A dispersão de viventes da Cracolândia se mostrou uma tática fracassada das forças de segurança — que ainda são a principal presença do poder público na região e atuam desarticuladas de políticas de saúde e de assistência. A conclusão pertence ao “Relatório do Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre a região conhecida como Cracolândia”, que será lançado na Câmara Municipal em uma cerimônia às 18h30 desta sexta-feira (27/6). O documento foi adiantado à Ponte.

    A estratégia de deslocamentos forçados, descreve o relatório, prejudica o atendimento social das pessoas e cria novas cenas de uso aberto, já que elas voltam a se agrupar em outros espaços, por não terem para onde ir. A conduta também perpetua práticas de tortura, piora a segurança para moradores e comerciantes, e atende a um projeto higienista de especuladores imobiliários no Centro de São Paulo.

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    O Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre a região conhecida como Cracolândia surgiu em 2021, articulado pelos então vereadores paulistanos Eduardo Suplicy (PT) e Erika Hilton (PSOL), hoje deputada federal, e lançou um primeiro relatório no ano seguinte. O novo parecer foi produzido agora a partir de trabalhos dos últimos dois anos, após o GTI ter tido continuidade por iniciativa novamente de Suplicy, hoje deputado estadual, e da vereadora Luna Zarattini (PT).

    O relatório foi produzido a partir de uma visita ao território e relatos feitos em sete reuniões, com a participação de 82 pessoas. Nos encontros, foram ouvidos moradores e comerciantes da região, conviventes da cena de uso aberto de drogas, pesquisadores e ativistas de organizações da sociedade civil, além de representantes das secretarias municipais e estaduais, membros de conselhos e comitês que tratam do tema, e servidores de órgãos do sistema de Justiça.

    Ele traz, junto dos relatos, uma série de recomendações para a formulação de políticas públicas para a Cracolândia. Elas tratam não apenas de segurança pública, mas também de medidas situadas em outros seis eixos: assistência social e saúde; trabalho e renda; moradia e acolhimento; combate ao racismo; transparência e participação social; e educação, cultura e prevenção. As propostas se dedicam a atender dependentes químicos, profissionais que ali atuam, comerciantes e moradores do entorno.

    Presença de forças de segurança ainda é a principal iniciativa do poder público na Cracolândia | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Ciclos de repressão sem resultados concretos

    O documento narra que a primeira grande ação policial de dispersão — intitulada, sintomaticamente, de “Operação Dor e Sofrimento” — ocorreu em 2012, sob a gestão do então prefeito Gilberto Kassab (PSD), hoje secretário de Governo e Relações Institucionais do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).

    Desde então, a região ganhou uma nova escala política e midiática, com ciclos de repressão que se repetem e têm se intensificado, o que se viu de novo neste ano, na gestão Ricardo Nunes (MDB), com pessoas sendo espalhadas sob violência pelo Centro, enquanto a prefeitura propagandeava o suposto “fim da Cracolândia” com o esvaziamento do fluxo na Rua dos Protestantes, na Santa Ifigênia.

    Nas reuniões do GTI, foi exposto que essas ações repressivas fracassam tanto em atender aos usuários, por romper vínculos que teriam no espaço com profissionais de saúde e de assistência social, quanto em controlar a circulação de drogas, já que o policiamento ostensivo não atinge o tráfico em larga escala. “Foi apontado que a questão do crime organizado é de extrema gravidade e deve ser enfrentada no âmbito de uma política pública pautada na inteligência, com foco na identificação e responsabilização dos grandes traficantes por meio de ações de inteligência e articulação entre as esferas de poder público (federal, estadual e municipal) — e não por meio de confrontos ostensivos”, registra o relatório.

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    “Foi denunciado que as ações de dispersão da população em situação de rua e a repressão no centro visam abrir caminho para projetos de especulação imobiliária e ‘revitalização’ do centro que visam ‘limpar’ a região para projetos de valorização urbana voltados para as classes mais ricas”, aponta ainda.

    O relatório narra também que a rotina de repressão policial se assemelha a práticas prisionais, com revistas de usuários, especialmente à noite: “Foi descrito que a tática de abordagem inclui fazer os indivíduos sentarem no chão, rememorando práticas de violência histórica como as do Carandiru”. O trabalho policial tem resultado em prisões arbitrárias, especialmente de pessoas negras e pobres, sofrimento psíquico dos próprios agentes de segurança e desamparo dos moradores do entorno, que, em meio às dispersões, veem a violência diária se agravar, com episódios de agressões e furtos.

    Guardas civis metropolitanos revistam pessoas na região da ‘Cracolândia’, no centro de SP, em 14 de junho de 2022 | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    ‘Máquina de internações’ também fracassa

    O documento também mostra que, paralelamente às ações repressivas, o poder público tem apostado progressivamente em internações sistemáticas e obrigatórias de dependentes químicos em serviços de saúde e comunidades terapêuticas. A imposição da abstinência sem a presença de políticas de habitação e trabalho, no entanto, acaba sendo ineficaz e apenas impulsiona uma “máquina de internações”.

    Esse modelo, diz o relatório, “impede um cuidado em liberdade e contribui para a rápida reinserção das pessoas em ciclos de uso problemático e retornos recorrentes ao serviço, sem efetividade terapêutica”. “Foi denunciado que comunidades terapêuticas — para as quais muitas pessoas que frequentam a ‘Cracolândia’ são levadas — são amplamente conhecidas por práticas de tortura e por aplicarem terapias não reconhecidas cientificamente, praticando violações de direitos humanos, impondo trabalho forçado, castigos, ‘conversão de gênero’ e métodos religiosos de tratamento, mesmo sendo financiadas pelo poder público”, afirma o relatório.

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    “Relatou-se que há falhas graves de articulação entre serviços públicos de saúde e assistência, ator que agrava a fragmentação do território e impede o trabalho de reinserção social das pessoas com uso problemático de álcool e outras drogas.”

    O parecer também traz relatos de profissionais de saúde no sentido de que a entrega de equipamentos públicos de saúde para a gestão de organizações sociais (OSs) também fragiliza o atendimento a dependentes químicos. Esses trabalhadores são expostos ao cotidiano da Cracolândia sem suporte adequado e com baixos salários. “Foi relatado que as OSs utilizam critérios políticos para o desligamento dos trabalhadores, principalmente aqueles que se alinham aos princípios do SUS [Sistema Único de Saúde] e resistem às práticas conservadoras e autoritárias.”

    Homem em situação de rua com crise de asma é atendido por agentes de saúde na região da Cracolândia | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

    Investimento em políticas integradas

    Nas recomendações elencadas ao final do relatório, para serem encaminhadas às autoridades competentes, o GTI propõe, entre outras coisas, o fim da tática de dispersão da Cracolândia, o uso de câmeras corporais com gravação ininterrupta pela Polícia Militar paulista (PM-SP) e pela Guarda Civil Metropolitana (GCM) na região, maiores investimentos em inteligência policial contra o crime organizado e a apuração das alegações de tortura.

    O documento também pede o fortalecimento de políticas públicas de moradia e de trabalho para pessoas com uso problemático de álcool e de outras drogas; um maior suporte a profissionais de saúde e de assistência social, com a promoção de políticas de redução de danos e a avaliação contínua de entidades privadas que oferecem tratamento a usuários; e o fomento de iniciativas que incentivem uma convivência cidadã e estimulem a economia na região, como crédito facilitado e isenção fiscal a comerciantes.

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    A ideia com as recomendações é garantir o diálogo entre as diferentes partes afetadas pela Cracolândia e garantir políticas eficazes, diz o relatório, que pretende fomentar uma articulação real entre os serviços da saúde, assistência, cultura, educação e habitação, trabalho e renda e segurança pública.

    “Essas diretrizes não apenas refletem a escuta qualificada dos múltiplos sujeitos que participaram do GTI, mas também se orientam por um conjunto de princípios constitucionais, legais e ético-políticos que fundamentam a construção de políticas públicas comprometidas com os direitos humanos”, aponta o relatório. “Elas expressam, portanto, a convicção de que a superação dos problemas históricos da região exige o compromisso coordenado dos entes federativos, impondo aos Governos Municipal, Estadual e Federal o dever solidário de formular e implementar políticas públicas integradas.”

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