Resolução do CFM sobre uso de maconha medicinal é ‘mordaça’, diz juiz que usa óleo para artrite

Roberto Corcioli, do TJSP, passou a usar derivados da cannabis neste ano para doença e aponta que guerra às drogas criminaliza uso medicinal; norma de conselho restringe prescrição de canabidiol apenas para epilepsia em crianças

O juiz e conselheiro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) Roberto Corcioli Filho em reunião da Comissão de Direitos Humanos do Senado sobre a regulamentação do uso recreativo, medicinal e industrial da maconha, em 2014 | Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Neste ano, o juiz Roberto Luiz Corcioli Filho, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), passou a utilizar óleo de canabidiol (CBD) e de tetrahidrocanabinol (THC), dois componentes derivados da maconha, para um tratamento de artrite depois que o uso de corticoides não se mostrou eficiente e ainda gerou efeitos colaterais, como insônia. “Em poucos dias, duas semanas, ajustando a dose, teve um impacto avassalador. Não foi sutil, dia após dia foi melhorando no que diz respeito ao controle da dor e até da inflamação”, conta.

O THC e a artrite não aparecem na Resolução 2.324, publicada em 11 de outubro, pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que passou a restringir o uso do medicamento. A norma prevê que médicos podem prescrever apenas o canabidiol, sem outros derivados, para ser usado unicamente para o tratamento de “epilepsias da criança e do adolescente refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa”.

O texto, que revoga a resolução de 2014, proíbe a prescrição para outros tratamentos, embora a maconha medicinal seja recomendada para mais de 20 condições de saúde, que vão de casos de doença de Parkinson à depressão. Além disso, o CFM veda que médicos ministrem “palestras e cursos sobre uso do canabidiol e/ou produtos derivados de Cannabis fora do ambiente científico, bem como fazer divulgação publicitária”. O conselho aponta como ambiente científico “congresso nacional realizado por Sociedade de Especialidade vinculada à Associação Médica Brasileira (AMB)”.

Médicos e associações afirmam que vão continuar prescrevendo o uso, mesmo com o veto. O que, de acordo com o magistrado, já acontecia em relação à normativa de 2014, mas reforça uma insegurança jurídica para quem precisa fazer o uso e também para quem vende produtos derivados. Em março, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) definiu critérios e procedimentos para a importação de produtos derivados de cannabis para pessoa física, mediante prescrição médica, para tratamento de saúde.

Para Corcioli toda a questão está relacionada ao proibicionismo e a guerra às drogas. “Pelo o que eu percebo, há uma ideia de, ao ter aversão a essa planta medicinal, apenas aceitá-la quando não há mais outra alternativa minimamente eficaz”, aponta. “As drogas sempre são utilizadas dentro dessa linha de interesse econômico de um lado e um mecanismo se atingir politicamente determinada parcela da população, de outro, que é tida como indesejável. É uma maneira de se forjar um inimigo também” critica.

Em entrevista à Ponte, o juiz, cuja dissertação de mestrado trata da Lei de Crimes Hediondos e da Lei de Drogas de 2006 como representantes do punitivismo, explica por que algumas drogas são mais aceitas do que outras, o papel do judiciário nesse tema, a sua experiência com a maconha medicinal e a revisão de uma punição disciplinar no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) quando foi acusado de “soltar demais” e ser “garantista demais” em suas decisões.

Ponte — Em um artigo de agosto que escreveu para a Folha, você disse que o debate sobre as drogas precisa ser amadurecido. Qual o tipo de debate feito hoje e o que precisa ser amadurecido?

Roberto Luiz Corcioli Filho — Eu acho que tem uma coisa muito enviesada, que vem de décadas e décadas do proibicionismo, e não há espaço para argumentos racionais que vão colocar dados sociais, como os prejuízos da guerra às drogas na própria contenção da violência. É uma coisa absolutamente contraproducente. E até de questões mais básicas, ligadas a direitos individuais, à autonomia do indivíduo sobre o próprio corpo, passando por questões mais específicas, mas também igualmente importantes, de se entender se de fato tem sentido todo esse pânico relacionado às drogas criado dentro da lógica dessa política proibicionista, a ideia de vício, como que funciona, do que é o típico, o normal.

O que ocorre, por exemplo, com uma droga amplamente aceita, legalizada, como álcool? É só ver os dados demonstrando a questão tanto de impacto social, incluindo violência doméstica, violência no trânsito, violência nas ruas em razão de uma certa potencialização por conta de consumo abusivo, mas também de aspectos de saúde individual. Isso quer dizer que pesquisas vêm demonstrando que o consumo abusivo do álcool é gravíssimo se comparado, por exemplo, com a cannabis, com a maconha.

Por que o pânico continua focado na maconha? Por que o discurso proibicionista olha para a maconha e não faz esse outro olhar? Por conta dessas décadas em que o discurso proibicionista foi incutido na mentalidade das pessoas em geral. Esse pânico moral das drogas tem todo um viés político para vincular o consumo da maconha a determinada parcela da população e também gerar um rancor e uma aversão a essa parcela da população.

Isso acontece no Brasil, aconteceu nos Estados Unidos e, se for olhar a história do proibicionismo num âmbito mundial, você vai ver acontecer também na China, em diversos lugares. As drogas sempre são utilizadas dentro dessa linha de interesse econômico de um lado e um mecanismo se atingir politicamente determinada parcela da população, de outro, que é tida como indesejável. É uma maneira de se forjar um inimigo também.

Ponte — A legalização das drogas tem sido usada pela campanha do presidente Jair Bolsonaro (PL) nesse sentido de se atribuir como um perigo caso o ex-presidente Lula (PT) seja eleito, embora não seja uma proposta no plano de governo dele.

Roberto Luiz Corcioli Filho — Você vê, né? Dá para fazer um paralelo muito forte com a questão do aborto. Como se aqueles que advogassem, defendessem o direito ao aborto, à legalização das drogas etc. estariam fazendo apologia à essas práticas, incentivassem essas práticas. Quando, na verdade, se você tem um pé na racionalidade, você tem como objetivo, por exemplo, diminuir o número de abortamentos no Brasil.

Quando você olha para dados de países que avançaram nessa pauta, você pode perceber que a proibição e a criminalização acabam favorecendo essa prática, ao contrário de políticas de inclusão e de aceitação em que a usuária do sistema de saúde ao procurar uma unidade para fazer um aborto legal passe por todo um acolhimento profissional e que possa até levar, embora não seja esse o objetivo do acolhimento, a outra alternativa que não leve adiante o procedimento. A própria legalização, a descriminalização, vem ao lado de políticas de saúde reprodutiva que também vão favorecer uma melhor abordagem desse problema.

É assim também em relação às drogas. Se dizem “vai legalizar, e os filhos vão ter acesso”. Espera aí, o álcool é uma droga legalizada, regulamentada, e criança nenhuma, adolescente nenhum, consegue ir em um mercado comprar. Só se contar com um adulto para isso. E aí são burlas do sistema, mas adolescente não chega num bar, num mercado, e consegue adquirir uma bebida alcoólica. Agora, ele em qualquer cidade do país consegue ter acesso a uma droga ilegal porque não tem controle, não tem regulamentação.

E, de novo, dados de países que avançaram nessa pauta demonstram que, ainda que em alguns aspectos possa até haver um aumento de consumo de drogas tidas como leves, como a maconha, você pode pensar que ao legalizá-la as pessoas não estariam dispostas a adquirir de um traficante, teriam aquele senso moral de estão fazendo a coisa certa. Mas, de outro lado, estariam dispostas a experimentar, a fazer uso eventual que seja dessa droga, num ambiente legalizado, pode se incentivar de fato a ter contato com ela.

No entanto, certamente você diminui, no geral, aqueles que experimentam consequências deletérias, o tal consumo abusivo. Isso por quê? Porque você legaliza, você descriminaliza, e, ao lado disso, vêm políticas públicas de educação, de melhorar a abordagem a questões problemáticas com o uso abusivo.

Se o objetivo de fato é evitar que nossos filhos tenham acesso, em primeiro lugar você tem que ter em mente o seguinte: o acesso, sendo proibido, sendo permitido, sempre teve e sempre continuará tendo e isso é uma guerra fadada ao insucesso nesse ponto. Em segundo lugar, é o acesso problemático. Porque se um sujeito faz uso que não gera consequências danosas a si e aos outros, como de uma bebida alcoólica, o famigerado uso social que é amplamente aceito e divulgado, também pode fazer isso em relação à outras drogas.

Se o objetivo é evitar o consumo problemático, o cenário da criminalização é o pior dos mundos porque não combate esse uso abusivo. Dados empíricos de países que avançaram nessa pauta mostram que políticas de redução de danos, de regulamentação, de acolhimento de saúde mental, que vêm junto de uma política de legalização, fazem frente a esse uso abusivo e trazem um resultado muito melhor do que essa insana guerra às drogas.

Ponte — Inclusive, em alguns planos de governo de presidenciáveis que analisamos antes do primeiro turno, alguns candidatos traziam essa pauta, mas não eram tão competitivos, e outros que não tocaram no assunto dessa forma, trazendo como “revisão da política atual”, são mais aceitos. Por quê?

Roberto Luiz Corcioli Filho — É muito difícil você abordar um tema complexo na era dos memes, na era da fake news, na era de gritaria, ainda mais num pleito como esse. É mais fácil realmente chegar o candidato e dizer “o meu oponente é favorável às drogas” que é mentira. E aí o oponente fica numa situação superdifícil. Ele vai dizer o quê? “Não, eu não sou favorável, tem questão disso e daquilo”. Ele vai demorar 20 minutos para explicar uma coisa com fundamento, com argumento racional. Agora, o público, o eleitor está disposto a esperar, digerir essa informação e fazer uma reflexão? Infelizmente, a gente tem visto que não. Fica difícil avançar politicamente nessas pautas.

Aliás, cada vez mais estou convencido do papel importantíssimo do judiciário como o poder contramajoritário. Pauta de política de drogas, pauta de aborto, se a gente for esperar o Legislativo avançar, a sociedade avançar racionalmente sobre essas questões, é mais ou menos como esperar pelo fim da escravidão.

Vamos fazer esse paralelo de que se esperasse que a sociedade amadurecesse a ideia de que aquilo tudo era um absurdo, se a gente tivesse, por exemplo, aqui supondo uma figura do judiciário na época com a possibilidade de dizer “não, espera aí, isso aqui vai contra os direitos humanos e nós somos um poder instituído num estado democrático de direito, numa democracia como aquele responsável por fazer prevalecer os direitos humanos” ainda que, circunstancialmente, a gente tenha um cenário em que uma maioria da população diria “não, eu sou a favor da manutenção do sistema escravagista”.

Ponte — Qual a diferença entre legalização e descriminalização?

Roberto Luiz Corcioli Filho — A descriminalização, como diz o nome, vai tirar o caráter criminal da conduta relacionada: o porte, o consumo de drogas. Você tira isso da ilegalidade no que diz respeito ao consumidor. Mas ele vai comprar isso de quem? Ele vai comprar de alguém que esteja disposto a vender e se você não regulamenta esse outro lado, você tem um mercado ainda ilegal.

A legalização, por outro lado, vai avançar exatamente nesse ponto. Além de não ser crime a aquisição, não é crime a venda. A venda vai ser regulamentada como se dá no mercado de tabaco, no mercado de álcool, com regras que vão proteger a infância, a juventude, evidentemente, com campanhas educativas, com previsão inclusive tributária nesse sentido. E também para eventual enfrentamento das situações problemáticas, que não são a regra.

Você vê que existe aquele pensamento de “ah, mas gente destina o dinheiro arrecadado para o tratamento dos usuários”. Ou um sistema como o do Brasil em que a pessoa que estava com uma substância é levada a um juiz e recebe uma advertência dos efeitos maléficos. Em certos lugares dos Estados Unidos, o usuário tem como alternativa à prisão participar de programas com caráter regenerador. Mas por que o usuário de vinho não precisa ficar ouvindo palestras sobre efeito negativo do vinho? Aliás, ouve-se palestra muito sobre os efeitos positivos, né?

A questão do enfrentamento deve-se focar no uso problemático. Se o sujeito adulto faz uso de substância de modo responsável, não coloca em risco a sua vida e das pessoas, se faz mal para a saúde é um problema dele, não cabe ao Estado interferir.

Ponte — Como começa a sua relação com as drogas e a sua experiência com uso de cannabis?

Roberto Luiz Corcioli Filho — O início da minha atuação profissional na área jurídica foi ligada à área criminal e, na área criminal, a gente tem vivido nas últimas décadas um foco imenso na questão das drogas. A partir daí veio o meu interesse, acabei fazendo especialização em política de drogas, fiz um mestrado. E quanto à cannabis em si, recentemente, no ano passado, eu tive um quadro súbito de artrite. Chegou uma época do tratamento que a coisa não estava evoluindo ou evoluindo muito pouco. Por orientação médica, eu comecei a diminuir o consumo de corticoide que aplacava um pouco a dor, mas voltou pior.

Eu tinha lido a respeito do uso da maconha medicinal, procurei saber mais sobre isso e me consultei com uma reumatologista que faz prescrição de cannabis. A minha própria reumatologista concordou com o tratamento e tudo é feito de modo muito responsável. Eu mantive o tratamento com o medicamento de fundo conjugando com a cannabis.

Em poucos dias, duas semanas, ajustando a dose, teve um impacto avassalador. Não foi sutil, dia após dia foi melhorando no que diz respeito ao controle da dor e até da inflamação. Eu estava acordando todas as noites com dor, uma dor neuropática, por questão de compressão do punho, em razão da inflamação da artrite no punho. E com o uso da maconha medicinal, com o óleo, foi aliviando e eu estou tendo uma melhora incrível. Por hora, não consigo me imaginar sem.

Ponte — E agora com a resolução do Conselho Federal de Medicina, que restringiu a prescrição para determinados transtornos, como fica essa questão para você?

Roberto Luiz Corcioli Filho — Na verdade, desde 2014, quando surgiu a regulamentação pelo Conselho Federal de Medicina, a norma já era nessa linha. Aliás, mais restritiva ainda. Apenas psiquiatras e neurologistas podiam prescrever para episódio de epilepsia refratária na infância, para crianças e adolescentes. Por que que eu consegui uma prescrição de uma reumatologista e para uma condição médica que não diz respeito ao que estava previsto no Conselho Federal de Medicina? Porque os médicos praticavam uma espécie de desobediência civil.

Não fazia o menor sentido o conselho restringir isso porque o conselho não restringe a aplicação de todos os medicamentos para tais doenças. É muito comum haver aplicação fora da bula de medicamentos dentro da autonomia da liberdade profissional médica calcada, claro, na ciência. Inclusive, o que foi defendido na época da pandemia pelo próprio Conselho Federal de Medicina no que toca a algo absolutamente esdrúxulo que era o uso de uma substância comprovadamente ineficaz [contra a Covid-19] que era a cloroquina.

O que essa nova resolução trouxe, talvez de uma forma simbólica, é “a gente estava tolerando não vamos tolerar mais”. Isso gerou um certo pânico na classe médica. Eu tenho acompanhado isso nas discussões que tenho participado e ela [resolução] também trouxe vedação ali de se falar a respeito do tema [fora de congresso nacional realizado por Sociedade de Especialidade vinculada à Associação Médica Brasileira].

É uma mordaça. É nesse sentido que gerou um grande celeuma, mas achar que o problema está apenas nessa resolução não é a questão, porque a resolução anterior também era péssima. Acontece que, passados oito anos, o mínimo do que se deveria esperar é que houvesse uma atualização científica por parte do conselho, porque ao longo desses oito anos foram publicados diversos estudos atestando, cada vez mais e de modo mais amplo, a validade do uso da maconha para diversas condições. É inconteste que ela tem um efeito analgésico, neuroprotetora e anti-inflamatório para outras condições.

Imaginar que ela não pode ser usada para qualquer condição de, por exemplo, dor crônica que se beneficie dessa propriedade, é negar um fato colocado, um fato posto. É uma planta usada como planta medicinal há milênios na história da humanidade. Inclusive no Brasil. No final do século 19, início do século 20, havia um uso muito tranquilo na população, assim no fundo de quintal da casa de um casal de idosos, por exemplo, tinha lá um pé de maconha que o pessoal fazia chá eventualmente numa noite com uma maior dificuldade de dormir.

A questão é que [a resolução] reforça a insegurança jurídica por parte da classe médica e trouxe, sem dúvida nenhuma, uma ansiedade, uma insegurança para os pacientes que não estão informados de todo esse cenário, nem imaginavam que os médicos prescreviam ali numa espécie de desobediência civil, e agora estão imaginando que não vão ter mais acesso. Traz insegurança também para os dispensários, para as associações que produzem o óleo e fornecem para os associados, do ponto de vista legal.

Também tem de se pensar se faz sentido o Conselho Federal de Medicina se imiscuir nessa questão se há uma agência de vigilância sanitária [Anvisa] que é responsável por de fato pensar nos produtos que possam ser colocados à disposição dos pacientes no mercado no âmbito da saúde. Focar em qual doença vai ser aplicada, por qual especialista médico vai poder prescrever, sendo que em outras plantas medicinais essa não é a preocupação, não faz sentido. E por que isso existe em relação à cannabis? Por causa do proibicionismo.

Ponte — Por que, na sua visão, o uso de cannabis é mais aceito para um tratamento de epilepsia do que uma artrite, como no seu caso, que não está mencionada na resolução do CFM?

Roberto Luiz Corcioli Filho — Pelo o que eu percebo, há uma ideia de, ao ter aversão a essa planta medicinal, apenas aceitá-la quando não há mais outra alternativa minimamente eficaz. Tendo isso como critério, se pensou, num primeiro momento, na condição da epilepsia refratária em crianças e adolescentes e também em outras duas condições nessa linha. É direito do paciente participar desse processo de escolha do seu tratamento.

Por que eu sou obrigado a usar uma droga vendida na farmácia com potenciais e reais efeitos colaterais, como no meu caso o corticoide, se eu posso me valer de uma planta medicinal? É um fitoterápico com um benefício muito maior do que o uso da alopatia tradicional e sem os efeitos colaterais horríveis que são esperados no meu caso.

Ponte — A Anvisa regulamentou, em março deste ano, a importação de produtos derivados de cannabis para tratamento de saúde. Como funcionava antes? Era preciso entrar com ação judicial?

Roberto Luiz Corcioli Filho — Eu não sou especialista na área regulatória, mas a Anvisa vem ampliando a possibilidade de importação de medicamentos à base de princípios da cannabis, a importação também do próprio fitoterápico, dos óleos, aqueles chamados full spectron em que se extraem todos os canabinóides da planta, sejam aqueles focados em CBD, THC, canabigerol, canabinol, são vários. Tem permitido esse avanço nacional, mas com uma trava muito forte, do ponto de vista ilegal — que não compete à Anvisa esse debate —, mas de não se permitir o cultivo aqui no próprio país para fins de produção de medicamento.

Se o agente econômico aqui no Brasil queira produzir o óleo e foi aprovado um produto seu para fornecimento numa farmácia, por exemplo, teria que comprar, adquirir a matéria-prima do exterior, sendo que a gente teria todas as condições de produzir a maconha no país [famílias têm entrado na justiça para ter a autorização para esse tipo de cultivo].

Isso ooderia diminuir esses custos, esse agente econômico teria mais opções, inclusive, pela ótica do livre mercado que é tão cara à parcela da classe política e da classe econômica. E também evitar o risco de cair nas garras dessas grandes farmacêuticas, que vão querer pegar e isolar molécula de CBD e patentear procedimentos, quando outros óleos podem ser manipulados por farmácias de manipulação ou até mesmo associações que já existem, são certificadas e têm controle de qualidade e poderiam extrair outros canabinóides.

Ponte — Existe também uma questão na Lei de Drogas de 2006 sobre separar quem é usuário de traficante.

Roberto Luiz Corcioli Filho — Esse é um ponto problemático, porque deixar vaga e imprecisa uma questão dessa torna um terreno muito propício a práticas racistas. Há dados e dados demonstrando um viés da aplicação dessa lei também pelo recorte de classe. Como não há um limite de quantidade, você pode pensar que determinada pessoa pega com 100 gramas de maconha nos Jardins [bairro rico de São Paulo] não estava vendendo para ninguém enquanto uma pessoa com 100 gramas parado na esquina de uma favela está ali para vender, ainda que não se tenha observado nenhum ato de traficância.

A guerra às drogas fomentou um esgarçamento dos direitos e garantias, inclusive em outros âmbitos da esfera criminal, porque fica aquela ideia de que os fins justificam os meios. O fim é a guerra às drogas, acabar com as drogas, essa coisa paranoica e irreal, e que é preciso atingir o traficante. E assim não se exige que se demonstre que há realmente uma atividade de venda remunerada daquela droga, o que foi verificado pela polícia, um testemunho isento a respeito disso. Não. Passa-se por cima de garantias como a inviabilidade de domicílio, a própria questão da busca pessoal [enquadro] sem ser calcada em fundados motivos, ou seja, a pessoa é parada numa blitz sem qualquer razão, com todos os reflexos da violência policial.

Ponte — Você conseguiu a revisão de uma punição disciplinar no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por ser “garantista demais”, “soltar demais” e ter decisões “com viés ideológico” no ano passado. Como foi essa situação?

Roberto Luiz Corcioli Filho — Tem total relação com esse tema que a gente está tratando, da guerra às drogas, desse pânico moral e social. E, de novo, de que os fins justificam os meios. Não se admite, dentro de um cenário de guerra às drogas, que na verdade é uma guerra contra uma parcela da população, que haja juízes que resistam à aplicação irracional das normas punitivas. É assim que eu leio o que aconteceu.

Ponte – O que é um juiz que prega o garantismo penal?

Roberto Luiz Corcioli Filho – Nada mais é do pregar um legalismo. Às vezes é colocada como a questão de um dos pólos de dois extremos: de um lado, o punitivismo, de outro, o garantismo. Claro que existe uma polarização nesse debate, mas o garantismo nada mais é do que uma doutrina processual penal, constitucional, e está vinculada à uma ideia de legalidade a partir de um sistema que tem a Constituição como ápice. É simples assim.

A Constituição define uma série de direitos e garantias. Um juiz legalista ou garantista vai estar atento a isso e não vai se dobrar à ideia de que os fins justificam os meios. Os fins não justificam os meios e é por isso que existe um Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito, para colocar freios a um poder punitivo irracional e que, se não for controlado, acaba se demonstrando uma tendência ilimitada.

Ponte — E por que o judiciário acaba reforçando uma lógica punitivista se é a instância de freios e contrapesos?

Roberto Luiz Corcioli Filho — Porque não é consenso dentro dos membros da instituição. A instituição só existe a partir dos seus membros. É uma falácia acreditar nesse discurso de que instituições funcionam. Elas funcionam quando os membros dessas instituições aderem a um consenso do seu papel constitucional. Para mim e para diversos juízes e juízas, é muito claro o papel constitucional nesse sentido que eu mencionei. Agora, para diversos outros membros não é, e às vezes são membros que socialmente e tradicionalmente vêm ocupando cúpulas de tribunais.

É necessária uma forte autocrítica do Judiciário que não é nada fomentada e até suscita reações bem incisivas em relação a qualquer pretensão de uma autocrítica, de repensar seu papel em relação à Constituição, de ser um poder contramajoritário, focado na garantia dos direitos humanos.

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O papel de promotor criminal não é o papel do Judiciário. O combate à criminalidade não é o papel do Judiciário. O Judiciário tem o papel de promover julgamentos imparciais e assegurar direitos e garantias daqueles que se vêm numa persecução criminal [processo], por exemplo. É o papel da pacificação social.

Ponte — Se a questão da descriminalização e da legalização dependem de uma discussão no Legislativo para ser aprovada, como trazer esse debate a curto prazo?

Roberto Luiz Corcioli Filho — Eu acredito que existe um papel a ser desempenhado pelo Poder Judiciário como um poder contra majoritário, na garantia de direitos humanos, esse é um ponto. A pauta precisa avançar no Judiciário. Temos vistos alguns avanços importantes, a própria jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem deixado claro, por exemplo, a questão da maconha medicinal. Isso não deveria gerar nenhuma celeuma, mas é preciso avançar na ideia de inconstitucionalidade da criminalização.

Passou do momento do Judiciário avançar nisso em razão dos direitos e garantias fundamentais e constitucionais, da questão da autonomia do próprio corpo etc. e, com isso, o tema é jogado de novo na sociedade através da mídia. Amplia-se o debate frente a essa ideia e a gente tenta desmistificar todas as falácias que a guerra às drogas, por décadas e a cada geração, foram incutindo na sociedade.

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