Segundo PM a depor contra Rafael Braga contradiz colega

    Em nova audiência, mais um PM cai em contradição sobre a ocorrência que levou Rafael Braga, primeiro e único condenado preso no contexto das manifestações de junho de 2013, à prisão pela segunda vez no início do ano

     

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    Rafael Braga em 2015, no Escritório de Advocacia João Tancredo, onde trabalhava como auxiliar de serviços gerais. Foto: Luiza Sansão

     

    Na segunda audiência de instrução e julgamento do ex-catador de latas Rafael Braga Vieira, de 27 anos, realizada ontem (11/05) no TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), a segunda testemunha de acusação ouvida contradisse versão do colega, que depôs no dia 12 de abril.

    As duas testemunhas de acusação estão entre os seis policiais militares da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da Penha que, na manhã do dia 12 de janeiro último, abordaram violentamente Rafael, quando ele se dirigia à padaria próxima da casa de sua mãe, na comunidade Vila Cruzeiro, na Penha, zona norte do Rio de Janeiro. Os dois PMs foram os que registraram a ocorrência na 22ª Delegacia de Polícia, no mesmo bairro.

    Segundo depoimento de Rafael, no registro da ocorrência, eles o torturaram, o ameaçaram de estupro e de “jogar arma e droga na conta” dele caso ele não delatasse traficantes da região. A única testemunha do momento em que o jovem foi abordado, que não será identificada nesta reportagem para sua segurança, relatou, quando depôs à Justiça em abril, que viu quando os policiais o agrediram e destacou a violência de um PM “alto, branco e de nariz fino”, que, segundo ela, foi o que mais o agrediu, com socos e chutes.

    Preso injustamente durante a grande manifestação de junho de 2013, Rafael cumpria pena em regime aberto e usava tornozeleira eletrônica desde 1º de dezembro de 2015. Ele trabalhava como auxiliar de serviços gerais no Escritório de Advocacia João Tancredo, no Centro do Rio, até ser preso pela segunda vez. Hoje, ele se encontra na Penitenciária de Bangu (Cadeia Pública Paulo Roberto Rocha), na zona oeste do Rio.

    Na primeira audiência, foi ouvido pela Justiça um dos PMs que participaram da prisão do ex-catador de latas, Pablo Vinícius Cabral, que apresentou contradições em relação ao depoimento dado na 22ª Delegacia de Polícia (Penha) na ocasião da prisão de Rafael, e a testemunha de defesa, que afirmou ainda que o jovem não tinha nada nas mãos quando foi detido, ao contrário do que afirmam os policiais que o prenderam.


    Contradições no depoimento do segundo PM

    Na audiência de ontem (11/05), que a Ponte acompanhou com exclusividade, o policial Victor Hugo Lago afirmou que eles estavam “fazendo a segurança de uma equipe de engenharia” que trabalhava na comunidade naquela manhã, quando foram avisados, por um soldado chamado Lopes, de que “havia venda de drogas na Rua 29” (localidade conhecida como “Sem Terra”) e se dirigiram para o local. Assim como o colega Cabral, ele afirmou não saber qual era a firma de engenharia que estava na comunidade na ocasião.

    Cabral havia dito que, antes de ser conduzido à 22ª DP, Rafael fora levado à sede da UPP local, da Penha, versão que consta no registro da ocorrência. Já Lago afirmou que eles o levaram diretamente para a delegacia, sem parar na UPP. Além disso, o primeiro policial afirmou que Rafael foi levado na caçamba da viatura, ao passo que o segundo disse que ele foi colocado no banco de trás.

    Ambos disseram que havia mais pessoas com Rafael e que essas pessoas correram quando viram a polícia, mas o primeiro afirmou que Rafael, único a ficar, carregava uma sacola contendo “drogas e um ou dois morteiros”, largou a sacola no chão e permaneceu parado, próximo a ela. Já o segundo disse que ele largou a sacola e continuou andando – na direção dos policiais.

    “Quando avistei o acusado, ele estava numa curva com um pessoal, soltou a sacola, os outros fugiram e ele continuou andando”, afirmou Lago, que disse ter visto o jovem a uma distância de aproximadamente 50 metros. Indagado pela defesa sobre a direção em que Rafael caminhava, ele respondeu que na direção de onde estavam os policiais.

    Lago também contradisse Cabral ao afirmar que o local onde Rafael foi detido era uma “boca de fumo”. Seu colega havia dito, na audiência anterior, que não era uma “boca” (local de comercialização de drogas), segundo um dos advogados de defesa de Rafael, Ednardo Mota, do DDH (Instituto de Defensores de Direitos Humanos), em entrevista à Ponte após a audiência.

    Lago alegou ainda que ele e Cabral foram os policiais que revistaram Rafael. Cabral, entretanto, afirmou, na primeira audiência, que a revista fora feita por outra equipe, lembrou Mota, ao apontar algumas das contradições no depoimento dos policiais.

    Apesar de ter dito que ele mesmo pegara a sacola, Lago não soube precisar o material entorpecente supostamente encontrado com o ex-catador de latas. Quando perguntado sobre isso pela defesa, apenas dizia, de forma vaga e evasiva, que Rafael carregava uma sacola contendo “drogas e fogos”. Questionado pelos advogados sobre que drogas encontrou, ele afirmou não se lembrar bem, devido ao número de prisões que efetua no dia a dia, só que “tinha cocaína”.

    Ele também afirmou não se lembrar da roupa que Rafael usava, da cor da sacola e nem se havia encontrado dinheiro com o ex-catador de latas, que afirmou, na ocasião, que levava consigo apenas os três reais que usaria para comprar pães na padaria para onde se dirigia, a pedido de sua mãe.


    Mais policiais serão ouvidos, a pedido da defesa de Rafael

    “É muito importante ouvirmos os demais policiais para explorar melhor essas contradições. Nós temos a convicção de Rafael é inocente e de que esse flagrante foi forjado contra ele”, afirma Ednardo Mota.

    O advogado Carlos Eduardo Martins, do DDH, também apontou contradições nos depoimentos dos policiais. “Houve algumas contradições na fala dessa testemunha [Lago] em relação à outra [Cabral], não só sobre a condução de Rafael direto para a delegacia, como ao fato de um ter alegado que o local era uma boca de fumo, enquanto o outro não, entre outras questões”, diz.

    O Juízo acatou o pedido da defesa de que sejam ouvidos os demais policiais militares que participaram da abordagem a Rafael: soldado Faustino e os cabos Farley e Pimentel. Havia ainda o PM Rodrigues, que faleceu. Os advogados solicitaram ainda que seja convocado a depor o soldado conhecido como Lopes, que, segundo Lago, o teria notificado sobre a denúncia anônima de um morador e pedido que ele fosse ao local indicado por estar mais próximo do mesmo.

    Além disso, a defesa enfatizou a diligência de que a UPP da Penha seja questionada sobre qual firma de engenharia realizava obras na comunidade no dia em que o acusado foi detido, feita na primeira audiência, em abril, e ainda não atendida. A próxima audiência foi agendada para o dia 7 de junho.

     

    Sarau na porta do TJ-RJ

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    Ativistas da Campanha Pela Liberdade de Rafael Braga fazem roda de capoeira durante ato-sarau na frente do TJ-RJ. Foto: Luiza Sansão

    Dezenas de pessoas se reuniram, mais uma vez, na frente do TJ-RJ, para um ato em defesa de Rafael, organizado pelos ativistas da Campanha Pela Liberdade de Rafael Braga, que, há três anos, desde que o ex-catador de latas foi preso pela primeira vez, se reúnem semanalmente para recolher doações, mantimentos a serem levados a Rafael por sua mãe, na prisão.

    No ato-sarau, teve até roda de capoeira, além de palavras de ordem entoadas em um megafone e as já tradicionais faixas fazendo referência ao racismo, à criminalização da pobreza e a seletividade do sistema penal.

    “A gente sempre marca os atos nas datas das audiências, sobretudo para mostrar para o Rafael que ele não está sozinho, mas também para o Poder Judiciário saber que ele não está sozinho”, diz o teólogo Ronilso Pacheco, um dos ativistas idealizadores da campanha, antes da audiência.

    “O caso do Rafael continua sendo esse caso emblemático que, independente de tudo o que acontece, de todas as pressões, é um jovem negro, pobre, com uma história de injustiça absurda, que continua preso”, completa.

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    Manifestantes em frente à sede da ONU (Organização das Nações Unidas), em Genebra, na Suíça, pedem a liberdade de Rafael.

    Na terça-feira (10/05), um dia antes da audiência, os ativistas visitaram a Escola Municipal Herbert de Souza – uma das dezenas de escolas ocupadas no Rio por estudantes em luta por melhorias em infraestrutura nos colégios –, no bairro Rio Comprido, para discutir a seletividade do sistema penal a partir do caso Rafael Braga. Vários dos estudantes que participaram do debate se uniram aos ativistas no ato-sarau na porta do TJ-RJ.

    Cada vez mais pessoas manifestam seu apoio a Rafael – como os rappers Criolo, que postou em uma rede social uma foto em que segura um cartaz pedindo a liberdade de Rafael, e Emicida, que gravou um vídeo manifestando seu apoio ao ex-catador de latas, antes da audiência de ontem. Em outros países, pessoas aderiram à causa e também postam em redes sociais fotos com os dizeres “Libertem Rafael Braga”.


    As algemas de Rafael

    Ao chegar, algemado, à sala onde foi realizada a audiência, Rafael encontrava-se visivelmente abatido. Sua pele negra traz um tom amarelado – um amarelo-prisão. Os advogados de defesa pediram ao Juízo que suas algemas fossem retiradas, uma vez que o jovem jamais apresentou comportamento violento ou representou qualquer risco às pessoas à sua volta. Mas as algemas não foram retiradas. Não desta vez. Talvez na próxima audiência, deu a entender o Juízo, diante da diligência apresentada pelos advogados e da própria postura do jovem.

    Apesar de mais magro e pálido, após três anos vivendo a saga que tornou seu rosto conhecido em diversos países, a estampar muros em toda a cidade do Rio de Janeiro, Rafael ainda aparenta leveza e carrega no semblante a mesma paz e ingenuidade genuínas que podiam ser vistas em seus olhos meses atrás, quando ele disse à Ponte como se sentia feliz ao voltar a trabalhar no Escritório de Advocacia João Tancredo. É como o olhar daquele que se sabe inocente e acredita que, em algum momento, terá sua redenção.

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    Adriana Braga, mãe de Rafael, com dois de seus filhos e o ativista Ronilso Pacheco, da Campanha Pela Liberdade de Rafael Braga, durante ato na frente do TJ-RJ. Foto: Luiza Sansão

    Ele não se rebela, não dá o menor sinal de agressividade. Ele apenas se senta, olha timidamente quem está na sala. Quando seus olhos encontram os da mãe, Adriana Braga, ou até os desta repórter, ele ergue as mãos para acenar positivamente, mas encontra o limite imposto pelas algemas, e baixa de volta as mãos calmas. Mesmo assim, ele sorri – um sorriso sincero, de paz.

    A mãe, que não pode abraçá-lo nem para se despedir, resigna-se – no olhar, a mesma dor de quando relatou à Ponte, há quase um ano, o quanto seu filho mais velho é afetuoso e a ajudava com o dinheiro que ganhava vendendo as latas recolhidas nas ruas. “Nem abraçar ele eu posso”, murmura ela, baixinho, saindo da sala à qual sabe que terá que voltar outras vezes. Porque a saga de Rafael é a sua própria.

     

     

    Outro lado

    No registro da ocorrência, os PMs Pablo Vinícius Cabral e Victor Hugo Lago afirmaram que: por volta das 9h da manhã do dia 12 de janeiro, “estavam em operação à favela Vila Cruzeiro, Penha, com objetivo de ocuparem-na, quando um morador não identificado informou que havia um indivíduo a poucos metros do local onde se encontravam com material entorpecente, a fim de comercializá-lo. Em ato contínuo, foram até o local informado e encontraram Rafael Braga Vieira segurando um saco plástico contendo material assemelhado a entorpecente e 01 (um) morteiro de fogos de artifício”.

    Os dois soldados da UPP da Penha alegaram ainda que Rafael “tentou se livrar do referido material que estava em sua posse, jogando-o no chão” quando percebeu a aproximação dos policiais, e “que todo o material apresentado” na Delegacia de Polícia “estava em poder de Rafael” – 0,6 g de maconha, 9,3 g de cocaína e um rojão –, levando Rafael a ser autuado por tráfico de drogas, associação para o tráfico e colaboração com o tráfico.

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