Jovem cega por bala de borracha se confundiu ao identificar policiais, segundo PM

    Reconhecimento foi feito por foto, método que contraria o Código de Processo Penal e pode induzir a falsas memórias, segundo especialista

    Gabriella Talhaferro, vítima de bala de borracha | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    A Polícia Militar de São Paulo nega que os dois policiais reconhecidos por uma adolescente tenham atuado na ação em que ela ficou cega, ao ser atingida por uma bala de borracha.

    A estudante Gabriella Talhaferro, 17 anos, perdeu a visão do olho esquerdo em 10 de novembro do ano passado, quando ia para um baile funk em Guaianases, zona leste da cidade de São Paulo. Um mês após o crime, Gabriella esteve na sede da Corregedoria da Polícia Militar, onde reconheceu, por meio de fotografias, dois policiais que teriam participado da ação.

    Em nota enviada à Ponte somente nesta sexta-feira (14/2), a assessoria de imprensa da PM afirma que nenhum dos dois PMs apontados pela adolescente poderiam ter participado da ação que mutilou a estudante.

    O tenente Evandro Reche Nogueira, que, segundo Gabriella, teria sido o policial que riu dela ao vê-la baleada e se recusou a socorrê-la, nem ao menos estava trabalhando naquela noite: o oficial estava de licença para tratamento de saúde entre 17 de outubro e 18 de novembro.

    Tenente estava de licença médica no dia em que Gabriella foi baleada e não poderia estar envolvido na ação que a cegou | Foto: Reprodução/Facebook

    Já o cabo Jefferson Silva de Rossi, apontado pela vítima como autor do disparo de bala de borracha que a acertou, estava atuando como sentinela entre as 18h15 de 9 de novembro e 6h30 do dia 10, na sede da Força Tática do 28º BPM/M (Batalhão de Polícia Militar Metropolitano), que fica na Rua Ernesto Gould, em Cidade Tiradentes — a 7 quilômetros do local onde Gabriella foi baleada, por volta das 2h.

    Reconhecimento fora dos padrões

    O reconhecimento feito na sede da Corregedoria não seguiu as normas do artigo 226 do Código de Processo Penal, que determina a presença física dos suspeitos, ao lado de outras pessoas parecidas com eles. Reconhecimentos feitos por fotografia, como o que o que foi oferecido pela PM a Gabriella, são apontados como a principal causa de condenação de inocentes nos EUA, porque podem facilmente induzir à criação de falsas memórias, segundo Gustavo Noronha de Ávila, doutor e mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) e um dos principais especialistas brasileiros em psicologia do testemunho, autor do livro Falsas memórias e sistema penal: a prova testemunhal em xeque (Lumen Juris, 2013).

    Gabriella e sua mãe, a manicure Kelly Talhaferro, 33 anos, ficaram surpresas ao serem avisadas pela Ponte de que um dos PMs estaria afastado e o outro trabalhando internamente em um batalhão no dia do ocorrido.

    “Eu acho engraçado que no dia em que eles me mostraram a foto eles pegaram um lista com os nomes de policiais daquele batalhão que estavam de serviço naquela noite. Como eles falam agora que não está?”, questionou a vítima.

    A mãe da jovem disse não acreditar que sua filha tenha se equivocado ao reconhecer a dupla de policiais. “Eu só acho estranho que se o Reche e o Rossi não estavam, como que a Gabriella e o amigo dela [presente no dia do fato e também na Corregedoria] reconhecerem eles mesmo realizando o reconhecimento separado?”, questiona. “Para eles é fácil. A gente sabe que é muito fácil conseguir um atestado médico. O Reche sendo tenente quem vai contrariar ele?”.

    Para Kelly, passados mais de três meses desde que sua filha perdeu a visão do olho esquerdo, há pouca esperança de justiça. “Que eles vão ficar impunes e sair ileso eu tinha certeza, como acontece em vários outros casos de violência policial, em que o inocente se torna culpado e os policiais ficam impunes”, completou.

    Ouvido pela Ponte, o advogado criminalista e coordenador do Laboratório de Ciências Criminais do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) André Lozano Andrade, disse que a foto do tenente Reche não deveria ter sido apresentada entre os PMs a serem reconhecidos. “No caso do primeiro, que estava de atestado, me parece que houve um erro ao mostrar fotos de pessoas que não estariam prestando serviço naquele dia. Isso parece ser uma forma de induzir a pessoa ao erro”, afirmou.

    Já sobre o cabo que estaria como sentinela, Lozano acredita que é necessária uma apuração mais rígida: “É preciso verificar se ele não se ausentou do local. É comum que policiais usem o argumento de que estariam de guarda como álibi para fazerem algo ilegal e não serem responsabilizados”.

    O crime

    Gabriella perdeu a visão do olho esquerdo ao ser atingida por uma bala de borracha enquanto estava em frente a uma adega na Estrada Itaquera Guaianases. Ela havia saído com um grupo de amigos de Itaquaquecetuba, cidade na Grande São Paulo, onde mora com a mãe e uma irmã mais nova, para curtir o baile funk conhecido como Beira Rio.

    No entanto, ao chegar ao local, o evento havia sido cancelado horas antes devido à uma operação policial. Sem ter como voltar para casa pela ausência de transporte público, ela e os amigos decidiram esperar a abertura da estação Guaianases, da linha Linha 11-Coral da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), em frente ao estabelecimento, momento em que recebeu o disparo.

    A menina afirmou à Ponte que o autor do tiro sequer desceu da viatura ao mirar a escopeta na altura de seu rosto e atirar.

    O caso é apurado por um inquérito policial militar conduzido pela Corregedoria, que apura a responsabilidade administrativa dos policiais. Já o 44º DP (Guaianases), da Polícia Civil, é responsável pelo inquérito criminal.

    A Ponte solicitou entrevista com o cabo e o tenente mencionados na investigação, mas a Secretaria da Segurança Pública e a Polícia Militar não responderam ao pedido.

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