A série de reportagens “Segurança é Pública”, parceria da Ponte com a Fundação Friedrich Ebert Stiftung – Brasil, vai registrar o que movimentos sociais e grupos periféricos de todo o país desejam para a segurança pública no futuro

Imagine ser impedido de entrar na sua própria casa. O povo que paga impostos para manter a “Casa do Povo” em pé, se organiza para participar das decisões, mas não é ouvido por seus representantes.
Foi assim que movimentos sociais foram recebidos na porta da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), em 2017. Naquele ano, o país alcançava a terrível marca de 64.079 pessoas mortas de forma violenta, o maior número na série histórica desde 2011, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Grupos periféricos, os mais interessados na discussão de políticas de segurança pública em seus territórios, desejavam participar dos debates, mas não puderam.
“A gente levou cruzes de madeira para a Assembleia Legislativa, faixas falando da quantidade de mortos e a gente foi barrado”, lembra Edna Jatobá, coordenadora-executiva do Gabinete de Assessoria Jurídica Organizações Populares (Gajop). Pernambuco tinha computado no mesmo ano 5.427 vidas perdidas. Quando a casa do povo não recebe o povo que o elegeu, o que se faz? “A gente fez uma audiência pública do lado de fora”, me respondeu Edna. Surgia ali o Fórum Popular de Segurança Pública de Pernambuco.
Histórias como esta têm acontecido nos mais diferentes cantos do Brasil. A série de reportagens “A Segurança é Pública”, da Ponte em parceria com a Fundação Friedrich Ebert Stiftung Brasil (FES), vai registrar, a partir de junho de 2025, o que movimentos sociais e grupos periféricos de todo o país têm formulado como propostas para a segurança pública do país.

Ainda que a Constituição de 1988 estabeleça que a vida, a saúde, a educação, a segurança pública são direitos sociais, ou seja, fundamentais para a garantia do bem-estar da população e que todos são iguais perante a lei independentemente das suas diferenças de cor, gênero, credo e classe social, o número de pessoas que tiveram as vidas ceifadas demonstram que o Estado não está cumprindo seu dever.
“A estratégia sempre foi construída a partir, majoritariamente, de homens, brancos, militares ou policiais dentro dos gabinetes, impondo, imprimindo a sua visão sobre segurança”, critica Edna. Para ela, é fundamental ter em vista que parte dessas mortes são praticadas pela polícia e que os homicídios não atingem de forma homogênea todas as camadas sociais.
A criação desses fóruns sinaliza que os espaços eletivos e representativos da sociedade não estão de fato a representando como um todo. “O fórum popular nasce para mostrar que as comunidades e os territórios populares que sofrem a violência na ponta, que convivem com esse fenômeno todos os dias, têm capacidade de observação e elaboração, que é subvalorizada pelo poder público”, sustenta a coordenadora do Gajop.

Do diagnóstico à solução
Um dos problemas iniciais era o próprio diagnóstico desses problemas, especialmente o acesso a informações qualificadas sobre o perfil das vítimas. Com esse objetivo, o Fórum de Pernambuco lançou um banco de dados de violência letal a fim de pressionar o governo a melhorar sua sistematização.
Outra vertente são os protestos e atividades de formação nas comunidades, como a de Peixinhos, bairro na divisa de Recife e Olinda, que chegou a ter um centro cultural e desportivo chamado Nascedouro, onde antes funcionara um antigo matadouro abandonado pelo poder público. “A comunidade sempre reivindicou como um espaço que poderia ser um grande território de proteção da violência, de projetos de prevenção da violência e criminalidade”, lembra Edna.
No mesmo ano que Pernambuco criou seu fórum, o Ceará também inaugurou o seu: o estado era o terceiro com a maior taxa (59,1) de homicídios em 2017. Apesar das especificidades de cada um, esses movimentos sociais têm buscado se unir e se fortalecer, se articulando com estados vizinhos.
Em 2019, organizaram uma conferência regional e instituíram o Fórum Popular de Segurança Pública do Nordeste, que já reúne todos os estados da região. Em 2023, houve uma segunda conferência, desta vez no Piauí. Nos encontros, reúnem-se movimentos sociais, familiares de vítimas, representantes de universidades, coletivos e organizações não-governamentais — todos buscando dar visibilidade não somente ao diagnóstico da violência, mas às melhores políticas para a sua solução.

Prevenção primária da violência
O grupo tem um caderno de quase 200 propostas divididas em nove eixos. “A gente quer pensar numa visão de prevenção primária da segurança, que é aquela do cuidado com o território, as praças, as ruas, a iluminação pública, o transporte coletivo, a atenção às mulheres no transporte”, exemplifica Edna.
“Queremos mobilizar os territórios de favelas e periferias do Rio de Janeiro e produzir incidência política”, reforça Fransérgio Goulart, coordenador executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR). No estado, a criação de um Fórum Popular de Segurança Pública se deu em 2022, depois de uma reflexão de que a coalização dos movimentos no tema não poderia se reduzir à ADPF das Favelas — como ficou conhecida a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 365, que restringiu em 2021 as operações policiais em comunidades durante a pandemia de Covid-19 e se desdobrou para a perspectiva de um julgamento sobre letalidade policial no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF).
Uma das principais atividades desse fórum foi a campanha “Acorda, MP”, a fim de cobrar uma atuação mais firme do Ministério Público no controle externo da atividade policial — sua atribuição. No Rio de Janeiro, especificamente, o grupo especializado dentro do órgão foi extinto.
Outra foi a discussão do orçamento da segurança pública, que consome a maior fatia (15,8%) dos recursos públicos no governo carioca, o equivalente a R$ 17,8 bilhões, sendo gastos com saúde e educação ocupam 9,4% e 8,7%, respectivamente.
Em 2022, por meio de articulação com parlamentares, foi possível diminuir os valores destinados via emendas para compra de caveirões, comumente usados em operações em favelas. Cinco foram adquiridos por essa via, em detrimento do plano original que previa a aquisição de 10. Também houve aumento de valores para a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial. “A política de Igualdade Racial que teria 100 mil reais, a gente conseguiu subir para 250 mil”, aponta Fransérgio.

União e busca de financiamento
Uma das perspectivas que o coordenador da IDMJR tem é ampliar o debate sobre desinvestimento das polícias. “Eu não estou falando de desinvestimento com relação à questão de tirar dinheiro dos policiais, como salários, benefícios, nada disso. Mas retirar recursos de política de morte, como compras de arsenais bélicos, para realocar em políticas sociais e em pastas esvaziadas, como a da Igualdade Racial ou a dos Direitos Humanos”, explica.
Esse horizonte de focar o debate da segurança pública em iniciativas de prevenção também fomentou a criação do Fórum Popular de Segurança Pública e Política de Drogas de São Paulo. É o mais recente entre os citados por ter sido anunciado em agosto, embora já estivesse sendo gestado desde 2023 devido às ações policiais, especialmente na Baixada Santista que deixaram 56 e 28 mortos, respectivamente, nas Operações Verão e Escudo — compreendidas pelas comunidades como chacinas de vingança por terem sido deflagradas logo após os assassinatos de policiais.
“O fórum nasce exatamente dessa inconformidade com as políticas adotadas pelo atual governador que, pudemos observar, está reforçando a violência no estado de São Paulo”, afirma Michael Dantas, diretor executivo da Rede Reforma. “Foi para a gente discutir, buscar recursos e fazer contrapeso a essa política do Estado que a gente se organizou através de fórum popular — que é de segurança pública e com viés também de acompanhar a política sobre drogas, porque é o maior mecanismo de encarceramento e de tortura da população mais vulnerável”, defende.
A articulação ainda não foi lançada oficialmente — a perspectiva é para 2025 —, pois ainda está estruturando setores de atuação, como o de comunicação, pesquisa e cruzamento de dados, além do de advocacy, por exemplo. Assim como os demais fóruns, também há a busca de financiamento das atividades. No caso de São Paulo, o apoio está sendo realizado pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos e pela Fundação Friedrich Ebert – Brasil.
Michael pontua que a atuação em fórum garante uma pluralidade maior visões. “A gente consegue atingir mais coisas do que conseguiríamos individualmente, cada organização por sua conta. É a união de forças para realmente fazer um enfrentamento, uma contrapartida a essas políticas”, afirma.
“O que a gente quer é a construção de uma política baseada na ciência, nos direitos humanos e na escuta dos agentes mais atingidos pela atual política de drogas e pelo o sistema de segurança pública.”