‘Ser ativista no Brasil sempre foi perigoso’, diz diretora da Anistia Internacional

Em entrevista à Ponte, Jurema Werneck fala sobre principais desafios do país para os direitos humanos em ano de eleição: “o estrago que a gente tem no Brasil hoje é trabalho para décadas”

Jurema Werneck no Cogresso Nacional durante a CPI da Pandemia | Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Ser ativista pelos direitos humanos no Brasil nunca foi uma tarefa fácil, afirma a Diretora-Executiva da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck. O que ocorre atualmente no Brasil, sob o comando de Jair Bolsonaro (PL), é que há uma perseguição governamental contra aqueles que lutam por direitos de trabalhadores do campo, causas ambientais e indígenas, proteção de minorias, entre outros temas que são totalmente contrários ao fundamentalismo de extrema-direita do presidente e seu grupo.

Em entrevista à Ponte, Jurema comenta a falta de respostas sobre a morte de Marielle Franco, que, segundo ela, só não caiu no esquecimento graças à pressão feita quase diariamente por ativistas. Depois de quatro anos, não se ter o nome dos mandantes do crime que vitimou a vereadora carioca e motorista Anderson Gomes demonstram, de acordo com Jurema, perante a comunidade internacional, que o Brasil não faz nenhum esforço em combater a violência contra ativistas dos direitos humanos.

Se mesmo com toda a repercussão que o caso Marielle ainda tem dentro da sociedade não houve até hoje uma resolução do crime, Jurema Werneck lembra que a situação é bem pior para quem milita no interior do país. Defensores de direitos no campo e na floresta sofrem perseguições contínuas e cada vez mais graves nos rincões do país. Ela enfatiza ainda que o tema dos direitos humanos deve ser um tópico prioritário dentre os candidatos que participarão da eleições deste ano e que, independentemente de quem governe o Brasil a partir de 2023, o novo presidente precisará dar maior atenção para as causas das minorias.

Ponte – O que siginifica quatro anos sem saber que são os mandantes da morte de Marielle Franco?

Jurema Weneck – Esse é o retrato do país da impunidade que é o Brasil. É um dos países que mais mata ativistas no mundo. A maioria dos ativistas assassinados são ambientalistas, indígenas e gente que está lutando por terra e território. Mas mata também ativistas das cidades. O assassinato de Marielle, infelizmente, faz parte desse contexto, onde se mata muito e as autoridades não não demonstram seja interesse ou competência para garantir que os responsáveis sejam encontrados, apontados e levados à Justiça. No caso de Marielle, o que tem de diferente, e nem é tão diferente assim, é o fato de que a sociedade civil não abre mão. Como não abriu mão de Chico Mendes, não abriu mão Dorothy Stang, não abre mão de Zé Cláudio e a esposa [casal extrativista Maria do Espírito Santo e José Cláudio Ribeiro assassinados em 2011 em Nova Ipixuna, sudeste do Pará], e não abrem mão de tanta gente. A gente não abre mão de continuar lutando.

A Anistia Internacional esteve lá na cena do crime, observando para ver, para documentar e garantir que as coisas pudessem ocorrer da melhor forma possível. Eu acho que o Brasil ainda pode virar a página, informar, descobrir e levar à Justiça os responsáveis pelo assassinato de Marielle e Anderson. Isso vai ser uma importante sinalização de que o Brasil vai estar no caminho de virar a página. Mas quatro anos depois não é. Quatro anos depois, é lamentável que a gente ainda esteja lamentando não saber quem são os mandantes do crime.

Ponte – Como é que a comunidade internacional vê o Brasil diante do caso Marielle?

Jurema Werneck – A comunidade internacional vê com preocupação o fato de o Brasil passar essa mensagem terrível de impunidade. Vê com preocupação, particularmente, à medida que a gente tem vivido nos últimos anos a liderança nacional contrária aos direitos humanos, cuja a narrativa retórica, e também as ações políticas, acabam influenciando um ambiente de violência contra ativistas. Isso num país onde a desigualdade só cresce junto com a fome. É o segundo país do mundo em número de mortes por Covid-19. Ou seja, a comunidade internacional segue muito preocupada com o Brasil, mas apostando na sociedade brasileira, na ação, na pressão que a sociedade brasileira está fazendo para que o quanto antes a gente faça justiça.

Ponte – Como tem sido atuar na defesa dos direitos humanos durante o governo Jair Bolsonaro?

Jurema Werneck – Ser ativista no Brasil sempre foi perigoso. Ao longo de décadas, somos um dos países mais perigosos do mundo para ativistas. A diferença do governo Bolsonaro é que antes as autoridades nacionais na pós-ditadura – veja bem, na ditadura militar o Estado perseguiu, torturou e matou ativistas – mas depois da Constituição de 88, Bolsonaro é o único líder e que aprofunda esse risco, não apenas nos discursos, na retórica, mas na desmontagem das políticas públicas de garantia do ativismo e da proteção ao ativismo. Ele desmonta e ataca ainda na campanha de 2018. Ele disse lá no Acre que, se eleito fosse, ele acabaria com o ativismo. Cabe assinalar que acabar com o ativismo não é possível. Ele não acabou com o ativismo, não acabará com o ativismo, mas certamente ampliou os riscos desse exercício do nosso direito a protestar, porque o direito ao protesto é um direito humano fundamental.

Ponte – Quais os principais desafios para quem milita pelos direitos humanos no interior do país?

Jurema Werneck – Ele surge e se fortalece num ambiente extremamente inóspito. Essas pessoas se mobilizam porque violações graves de direitos humanos estão acontecendo nos seus territórios. E essas essas violações atingem também esses ativistas, esses grupos de ambientalistas, de trabalhadores rurais e sem terra, de indígenas e quilombolas. Onde a gente vê as maiores taxas de aumento da violência? A Comissão Pastoral da Terra fez um relatório em 2020. Se eu não me engano, de janeiro a novembro houve aumento de 30% na violência contra as famílias que vivem no ambiente do campo. E um aumento expressivo também da violência contra indígenas. A maioria das famílias atingidas pela violência nas comunidades tradicionais eram indígenas. A gente está conversando aqui exatamente enquanto acontece em Brasília o acampamento Terra Livre e a mobilização indígena. Há de se lembrar que indígenas, quilombolas, trabalhadores rurais sem terra e ambientalistas já estão mobilizados, estão exercendo o seu ativismo e sua luta por direitos.

Apesar de tudo, o que é importante de nossa parte – nós que não somos quilombolas, indígenas, trabalhadores, trabalhadoras rurais, sem teto, sem terra –  o que importa é que a gente se coloque ao lado desses grupos, acompanhe as suas pautas e responda ao seu chamado de adesão. Às suas lutas é que a gente precisa constituir não apenas um cinturão de proteção, mas também uma força auxiliar para pressionar autoridades para garantir a vida e o direito de protesto dessas pessoas. É isso que a gente precisa fazer. Eu acho que esses movimentos estão fortes e potentes, e estão apresentando suas pautas e suas lutas, apesar da violência que experimentam. Então, cabe a nós  agir junto com eles para que essa questão da violência cesse e que o próprio Estado brasileiro garanta aquilo que eles têm direito.

Ponte – É possível fazer uma comparação entre Brasil e Colômbia como os dois países mais perigosos do continente para defensores dos direitos humanos?

Jurema Werneck – A Colômbia segue sendo o país mais perigoso do mundo para o ativismo. A comparação que se pode fazer é que nas Américas estão os países mais perigosos. Apesar dos esforços das sociedades, a gente ainda tem um longo caminho pela frente, inclusive nas escolhas adequadas eleitorais, nos processos políticos, para que o ativismo seja compreendido, e percebido, como uma potência da sociedade e não uma ameaça, como alguns líderes e alguns grupos de certas ideologias querem fazer acreditar.

Ponte – Como você tem visto a assimilação desse discurso contrário aos direitos humanos por uma parcela da sociedade?

Jurema Werneck – O Brasil nunca foi um país de exercício pleno dos direitos humanos. O que eu quero dizer com isso? Parte da população não tem apreço pelos direitos humanos por razões específicas. Isso porque não experimenta. O Brasil é um país violentamente desigual. Então, o que significa “direitos humanos”? Na realidade, as pessoas não experimentam a outra parte. A outra parte, que se sabe que experimenta os privilégios, também não quer que os direitos humanos percam significância. Significa distribuição de renda, de riqueza, de exercício pleno de direitos para todo mundo e, por consequência, o fim dos privilégios. Então, eu acho que o que vai fazer a sociedade aderir aos direitos humanos é a compreensão dos direitos humanos como ferramenta para alcançar a dignidade, alcançar a vida boa, a vida adequada que todo mundo tem direito. É por isso que a gente luta, porque, por enquanto, os direitos humanos para a maioria da população brasileira são um marco teórico que não se vê na realidade. À medida que nos países onde os direitos humanos são percebidos como um bem de todo mundo, esses países já fizeram um longo trabalho e sua população experimenta de fato esses direitos que a gente defende.

Ponte – Alguns discursos, que tempos atrás seriam dados como absurdos, estão sendo utilizados atualmente sob prerrogativa da liberdade de expressão. Recentemente a gente viu um podcaster defendendo o nazismo ao lado de um parlamentar. Como você vê um direito como a liberdade de expressão, que custou muito a ser conquistado, sendo deturpado desta forma?

Jurema Werneck – Isso é parte da estratégia desse grupo extremista de direita de tentar forçar forçar a derrubada dos limites que a lei e o direito impõem. O que é preciso destacar o que aquele podcaster que diz é uma prerrogativa de experimento, na realidade, a mensagem concreta de que não há prerrogativa liberdade de expressão não se confunde com licença para cometer um crime, uma licença para violação de direitos humanos. Existe uma tentativa de diferentes segmentos extremistas de empurrar os limites, mas a lei é o limite. Entender que daqui não passa. É importante notar que houve uma resposta das empresas e até das instituições estatais e é preciso que elas continuem cumprindo seu papel. Não pode ser leniente. Não podemos abrir mão de romper um pacto minimamente civilizatório, de respeito à lei e de respeito ao direito. Tivemos um parlamentar [o deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil-SP)] que também participou dessa conversa sobre o nazismo sendo leniente. Há outro parlamentar que agora está sendo obrigado a usar tornozeleira eletrônica porque quer também confundir cometimento de crime com a liberdade de expressão. Eles estão recebendo a mensagem necessária e eu espero que o resto da sociedade, inclusive a parte extremista da sociedade, entenda a mensagem que está sendo passada. Porque não se confunde liberdade de expressão com cometimento de crime e violação de direitos humanos.

Ponte – Como mostrar à população que esses atos de comunicadores e parlamentares são crimes e não apenas liberdade de expressão?

Jurema Werneck – Fica mais claro à medida que a gente faz essas afirmações públicas, mas principalmente quando as instituições cumprem seu dever. É o sistema de justiça, é a realização das políticas de direitos, políticas para a população negra, a política de enfrentamento ao racismo, políticas para a população LGBT, de enfrentamento às fobias. Com a ação que a gente enfrenta de fato. Se todo mundo fizer o seu papel, todo mundo fizer o que determina o direito internacional de direitos humanos e a Constituição Brasileira, a gente avança.

Ponte – Como é que você tem visto, até o momento, o debate dos direitos humanos dentre aqueles que se colocam atualmente como pré-candidatos à presidência da República? Como você espera que o tema seja debatidos durante a campanha?

Jurema Werneck – Eu espero que eles sejam debatidos e que eles se tornem compromissos de campanha. Veja, nós temos 20 milhões de pessoas passando fome. Nós tivemos 660 mil mortos até agora por Covid-19 e um número ainda incógnito de pessoas com sequelas da chamada “covid longa”, demandando o sistema de saúde que está desmontado. A gente tem profissionais de saúde que foram extremamente espoliados para responder à Covid-19 e agora precisam de condições melhores para descansar para se recuperar e para trabalhar. Nós temos um déficit de moradia. Nós temos visto nessas últimas semanas a força da tragédia climática que o Brasil já está experimentando. Nós estamos vendo o desemprego que se movimenta, mas temos uma quantidade enorme de pessoas que não vai conseguir entrar no mercado de trabalho. O grande debate dos aplicativos mostra o grau de exploração do trabalho no lugar do direito ao trabalho.

A gente tem esses descalabros que estão acontecendo na educação. Durante dois anos, a maioria das crianças brasileiras e adolescentes e jovens não tiveram o seu direito à educação respeitado. As notícias falam mais de corrupção do Ministério da Educação do que ações concretas para resolver o problema que foi e foi instituído pelo governo. Até o momento, eu não vi no processo eleitoral o tema do direito emergir como deve, mas a nossa expectativa é que ele apareça e que ele esteja no debate central. Não esses debates que beneficiam a retórica extremista, mas mais os debates que beneficiem a construção de caminho de uma recuperação justa para o Brasil e para a população brasileira.

Ponte – Caso Bolsanaro não consiga ser reeleito, o que esperar, do ponto de vista dos direitos, do Brasil de 2023 em diante?

Jurema Werneck – A origem do bolsonarismo está em uma parcela da população brasileira que se aferra a visões extremistas de eliminação do diferente, ou seja, que se apóia no racismo, nas fobias a LGBTs, no sexismo, no rechaço ao pobre e à pobreza, na criminalização de negros e indígenas, na perseguição ao ativismo. O que estou tentando dizer com isso? O que a gente chama de bolsonarismo é um nome dado para um movimento que já existia na sociedade faz tempo. O que acontece com a chegada de Bolsonaro? O que tem de novo são as novas ferramentas, o uso dos algoritmos em benefício próprio, as redes sociais já beneficiam esse tipo de coisa e eles operam isso em seu benefício. E esse é o resultado que a gente vê. Lembrando que essa camada extremista ainda é minoritária.

Ajude a Ponte!

Eu espero que a maioria atue para recolocar a sociedade brasileira de relações sociais e políticas num patamar civilizatório adequado, de respeito aos direitos humanos. Eu espero que quem vencer assuma o espaço de autoridade dos governos nacional, estaduais, nos parlamentos. Quem quer que assuma, faça porque assumiu um compromisso de recuperar, de trabalhar nos próximos anos, porque nós temos o estrago no Brasil. O estrago que a gente experimenta no Brasil é um trabalho para décadas. Então, é preciso que quem quer que assuma o poder em 1º de janeiro de 2003 assuma com esse compromisso estabelecido e recompondo e propondo novas ferramentas em diálogo com a sociedade, para a gente superar isso e caminhar em uma outra direção. O Brasil precisa ser um país que respeite os direitos humanos e ele vai ser um dia.

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