‘Só queremos um lugar para viver’: Justiça suspende despejo de 350 famílias em SP

    Grupo composto por brasileiros e haitianos tem 30 grávidas e cinco deficientes morando em galpão na região do Ipiranga. “Ninguém veio nos ajudar, ninguém liga para nós”, diz morador

    Moradores comemoram anulação da reintegração de posse do imóvel em que vivem | Foto: Sérgio Silva / Ponte Jornalismo.

    Uma reintegração de posse, que iria despejar cerca de 350 famílias de um galpão localizado no bairro do Ipiranga, na zona sul da capital paulista, foi suspensa nesta quinta-feira (11/2). No local vivem 150 famílias brasileiras e 200 famiílias de imigrantes, principalmente haitianos, segundo representantes da ocupação, incluindo 300 crianças, cinco pessoas deficientes e 30 grávidas.

    A decisão pela desocupação expedida pelo juiz Luis Fernando Cirillo foi suspensa a partir de um agravo de instrumento protocolado pela Defensoria Pública de São Paulo e acatado pelo desembargador Jovino de Sylos. O proprietário do terreno pode contestar essa decisão em até 15 dias.

    Marcada para ocorrer às 5h30 da manhã desta quinta-feira (11/2), a ordem de despejo fez com que os moradores estendessem, logo no início do dia, faixas na fachada da ocupação. “Chega de omissão, queremos habitação!”, dizia uma delas, e outra perguntava “Para onde irão essas famílias?”.

    Do lado de dentro do galpão deteriorado, rostos aflitos compunham o cenário de angústia diante da possibilidade de ficarem sem um lugar para morar, em meio à pandemia do novo coronavírus. “Essa noite não dormimos, ficou todo mundo preocupado com bomba de gás e spray de pimenta”, relatou Inaldo Ferreira Silva, 68, mecânico desempregado e vivendo na ocupação desde novembro.

    “Não tenho como pagar aluguel. Os últimos meses têm sido de pressão para sairmos daqui, o proprietário manda recadinhos na porta, ameaça as pessoas. Ninguém veio nos ajudar, a assistência social, a prefeitura, ninguém liga para nós”, relata Inaldo ainda preocupado com a possível reintegração de posse.

    O haitiano Sonel Santini, de 32 anos, conta que abandonar a ocupação por conta do policiamento intenso não era uma opção. Santini vive no Brasil há seis anos e deixou Porto Príncipe em razão das sucessivas crises políticas e da violência de Estado. “O país vivia um conflito e muita miséria, a maioria das pessoas estão desempregadas até hoje. Quando começamos a nos manifestar fomos agredidos. Lá no Haiti, morei em favelas, onde havia muita violência de haitianos contra haitianos. Tive que me mudar várias vezes de casa. Quando cheguei fui morar na Liberdade de aluguel, fiquei três anos, depois fiquei desempregado. Eu gosto do Brasil, só queremos um lugar para viver”.

    Em meados de 2014 o Haiti passou por um período de crise política, quando a oposição ia às ruas diariamente para cobrar a renúncia do ex-presidente Michel Martelly e do ex-primeiro-ministro Laurent Lamothe, acusados de liderar um governo corrupto. A população haitiana também pedia a liberdade imediata de vários líderes opositores detidos durante protestos de anos anteriores.

    A motogirl Rosimeire Lima de Souza, de 38 anos, também está há três meses na ocupação devido ao desemprego. “Meu filho estava pagando R$ 900 de aluguel no Jardim Colorado, não tem como. Precisamos de moradia, não estamos aqui de brincadeira. As autoridades não olham para nós. Essa é a única maneira de reivindicarmos moradia. Muitas pessoas estão passando fome, não tem roupa, não tem dinheiro para comprar um remédio que precisa. A situação é precária”, lamenta.

    Moradores de um terreno ocupado no bairro do Ipiranga, zona sul de São Paulo, esperando tentativa de reintegração de posse. | Foto: Sérgio Silva / Ponte Jornalismo.

    Avó de dois netos, Rosimeire mostrou a área onde pretende construir um barraco. “Em janeiro teve uma enchente, eu perdi meu colchão. Aqui um ajuda o outro, nós somos unidos. Quando não chove eu durmo aqui fora mesmo. Na ocupação nos dividimos na limpeza e temos recebido muitas doações de alimentos”, disse ela, ainda aflita com o grande contingente da Polícia Militar presente na Avenida do Estado, por volta das 7h da manhã.

    Rosimeire mostra a área onde vive.

    Logo a agonia de Rosimeire transformou-se em felicidade, ao saber poucos minutos depois que a reintegração de posse havia sido suspensa. A comemoração foi às ruas, aos gritos de “Moradia!” e “O povo unido jamais será vencido”. Os ocupantes seguiram em protesto até a Secretaria Estadual de Habitação, localizada na região central de São Paulo.

    O imóvel ocupado, localizado entre a Avenida do Estado e a Rua Hipólito Soares, é alvo de uma disputa entre a construtora St. Raphael Empreendimentos Imobiliários e o proprietário Sérgio Gomes Ayala.

    Na decisão em que a desocupação foi autorizada, o juiz Luis Fernando Cirillo não reconheceu as famílias como partes do processo, “uma vez que invadiram o imóvel objeto da lide já no curso da demanda”.

    O juiz ainda alegou que o despejo não acarretaria em risco à saúde das famílias. “A invasão foi perpetrada em novembro de 2020, ou seja, quando já grassava a pandemia de Covid-19. Se os riscos (…) não impediram os protagonistas da invasão de praticá-la, não se vê por que tais aspectos devam agora ter relevância para impedir a desocupação”.

    Policiais deixam o local | Foto: Sérgio Silva / Ponte Jornalismo.

    Cirillo também considerou que não cabia ao Judiciário pensar nesse caso em questões como direito à vida e saúde: “São outros os Poderes da República que têm o dever de promover as políticas públicas destinadas à satisfação dessas necessidades”.

    Na visão do advogado que representa os moradores da ocupação, André Araújo, há um interesse especulativo no imóvel, demarcado como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) – 3.

    Esse tipo de categoria obriga o atendimento das famílias pelo poder público, como determina o Plano Diretor Municipal. “Essa área seria para moradia de interesse social para baixa renda, está há 20 anos parada, foi uma fábrica de indústria bélica. Está acontecendo um desvirtuamento das zonas de interesse social. A construtora St. Raphael Empreendimentos Imobiliários está querendo construir imóveis para a classe média”, argumenta.

    Em 22 de janeiro, a Defensoria Pública de São Paulo, junto ao advogado, pediu a suspensão da reintegração de posse que ocorreria nesta quinta-feira (11). A decisão do desembargador, no entanto, saiu somente à 1h da manhã desta quinta-feira. O documento aponta que, tendo em vista a situação atual da Covid-19 e a falta de assistência às famílias, a reintegração foi suspensa até o julgamento do recurso de agravo de instrumento.

    Mauro Roberto Preto, advogado da St. Raphael Empreendimentos Imobiliários, afirmou que deverá recorrer e pedir novamente a reintegração de posse. “Nós vamos apresentar a contraminuta no agravo ainda hoje, pedindo a revogação dessa decisão. Desde dezembro, nós sabemos da situação deles, mas o poder público foi acionado e ninguém tomou nenhuma providência. O poder público não pode transferir essa responsabilidade para o particular”.

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    Ainda de acordo com André Araújo, no local 70% dos moradores são haitianos e nenhum órgão governamental prestou assistência às pessoas. “Essa decisão é uma vitória na conservação da dignidade da pessoa humana e cidadania. Queremos que a municipalidade e o Estado venham atender as famílias para cumprir a obrigação no atendimento e assistência delas. Até agora não foi feito nada. Inclusive nós pedimos que a Embaixada do Haiti entrasse em contato conosco de forma urgente”.

    Procuradas pela Ponte, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social e a Prefeitura de São Paulo não responderam aos questionamentos enviados até a publicação desta reportagem.

    Após a publicação da reportagem, contrariando o que disseram os moradores da ocupação, em nota, a Prefeitura de São Paulo afirmou que organizou um mutirão de atendimento com urgência antes da possível reintegração, em que apenas 65 pessoas foram atendidas. “Através do Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (CRAI) foram atendidos 48 imigrantes com a unidade móvel indo ao local, além do agendamento de atendimento a 17 pessoas na sede do serviço, na região central. As famílias também foram encaminhadas para o CRAS Ipiranga, para cadastro em benefícios sociais”.

    O órgão ainda apontou que os ocupantes não se enquadraram nos critérios para atendimento habitacional provisório previstos na Portaria nº Sehab 131/2015. “Não é uma área de risco e a ocupação tinha menos de um ano. Para as famílias, foi ofertado o cadastro nos programas habitacionais do município”. A Prefeitura não respondeu como irá prosseguir diante da situação dos ocupantes.

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