‘Só saio morta. Não vou para rua com meus filhos’, diz moradora de ocupação ameaçada

    Moradores do Caveirão, em São Paulo, dizem que PMs ameaçam tirá-los do local, mesmo sem decisão judicial; laudo da Prefeitura aponta “risco iminente” no local

    Ocupação tem condição insalubre e tem recentes invasões da PM | Foto: Arthur Stabile/Ponte

    Elisangela Neves, desempregada de 39 anos, vive no centro da cidade de São Paulo há cinco. Está a aproximadamente 200 metros da catedral da Sé, próximo ao marco zero da cidade de São Paulo. Não sabe, contudo, até quando permanecerá na Rua do Carmo, número 102. Isso porque o prédio onde vive é alvo de dois processos judiciais, um movido pelo seu proprietário, pedindo a reintegração de posse, e outro da Prefeitura, pedindo a demolição.

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    A situação piora por causa de ameaças recorrentes de policiais militares, segundo contam Elisangela e outros moradores do Caveirão, como é conhecido o prédio em condições insalubres de habitação.

    Nesta semana, contam, ao menos duas vezes tiveram a “visita” de PMs uniformizados. A tropa, relembra, entrou em casas quebrando portas e deixaram um recado: devem sair dali. Por bem ou por mal.

    Caveirão fica no centro de SP e tem uma árvore em seus andares superiores | Foto: Arthur Stabile/Ponte

    “Eu só saio morta daqui. Não vou para rua com meus filhos. Morar com eles na calçada? Não!”, desabafa Elisangela. Ela tem três filhos que moram na ocupação.

    Outras famílias também revelam o medo de não ter para onde ir caso sejam expulsos do local. “Meu problema não é só a polícia, é ir para a rua com meu filho cadeirante”, diz Valéria da Silva Nascimento, 42 anos.

    Ela estava na entrada do prédio na terça-feira (23/6), primeiro dia em que os policiais teriam entrado no Caveirão. Comenta ter sido abordada com truculência.

    | Foto: Arthur Stabile/Ponte

    “Estava mexendo no celular, chegaram perguntando se eu tava filmando. Disse que não e o PM, ainda assim, jogou o aparelho no chão. Fez o mesmo com meu filho”, afirma.

    João Paulo Santos, 23 anos, puxador de cargas na Rua 25 de Março, descreve a ação: “Entraram correndo com a arma na mão, batendo de porta em porta. Disseram que tínhamos até 14h do dia seguinte para sair. Se vissem morador, iriam pegar tudo e vai queimar”.

    No processo judicial, ainda há nenhuma decisão prevendo a remoção das famílias, como teria sido argumentado pelos PMs.

    Moradores debatiam o que poderia ser feito para evitar a retirada | Foto: Arthur Stabile/Ponte

    “Não sabemos quem exatamente é que está fazendo esse tipo de ameaça, mas é difícil. Triste ver um órgão público, que deveria ser para defender usando de forma arbitrária esse ônus público”, afirma a advogada Fabiana Alves Rodrigues, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos,

    Os moradores contam que estavam no prédio há cerca de dez anos quando, em maio de 2018, ocorreu a queda do edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, também na região central.

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    Após a queda do edifício, a Prefeitura realizou vistorias nas ocupações da cidade. O Caveirão foi avaliado na época e acabou interditado no mês seguinte por “risco iminente” às 79 famílias que ocupavam o local, conforme relatório divulgado na época.

    Por um ano, segundo os moradores, as famílias receberam R$ 400 de auxílio aluguel, mas o pagamento teria sido cortado. No ano passado, em outubro, parte das famílias reocupou o Caveirão por não ter onde morar.

    Vista da parte traseira do prédio | Foto: Arthur Stabile/Ponte

    “Estava vazio e a gente sem dinheiro, prestes a morar na rua. Preferimos voltar para cá”, conta um morador, que pediu para não ser identificado. “É melhor do que viver na rua com sua esposa”, completa.

    Abandonado há pelo menos 10 anos

    No mesmo ano em que interditou o edifício, a Prefeitura entrou com um processo contra o dono do imóvel, o empresário Rivaldo Sant’anna, apontando que desde 2012 o imóvel estava abandonado e que a estrutura poderia ruir por conta da deterioração, conforme avaliação do engenheiro Merinio C. Salles Jr., podendo “vir a entrar em colapso causando grave acidente na região”.

    A administração, no processo, argumenta que como o imóvel não cumpria sua função social, ou seja, que não atendia aos interesses da população que vive na região, o que é previsto na Constituição Federal e é regularizado pelo Plano Diretor, notificou o empresário para dar um destino ao prédio. Conforme o Plano Diretor de 2014, o dono tem um ano de prazo para dar uma função ao imóvel ocioso após ser notificado. Como não houve resposta, a Prefeitura passou a cobrar o IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) progressivo nos anos de 2016 e 2017 como medida prevista para forçar o proprietário a dar um destino ao prédio.

    Como o dono não deu destino nem realizou obras para reforma e o retorno das ocupações no local era frequente, a Prefeitura pediu na Justiça a demolição do prédio. Esse processo ainda está em tramitação.

    Por outro lado, o empresário entrou com pedido de reintegração de posse, que ainda não teve uma decisão no Tribunal de Justiça. Em janeiro deste ano, Rivaldo deu uma entrevista à Revista Veja afirmando que comprou o imóvel em 2009 e alega que, por conta das cobranças dos impostos, não consegue terminar a obra com que pretende transformar o local num prédio comercial. “Como o meu prédio é ocioso se eu peço há anos que o alvará autorizando a obra seja emitido?”, declarou à revista.

    A Ponte procurou o empresário Rivaldo Sant’anna, mas não obteve resposta.

    Também procuramos a assessoria de imprensa da Prefeitura de São Paulo e não houve retorno.

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