‘Não tem como não chorar’, diz sobrevivente de ação policial no Ceará

    José Lima acabou refém ao sair de casa por causa da quantidade de tiros que ouviu, situação totalmente atípica; população critica ação da polícia que teve desfecho trágico

    Refém conta que teve que se segurar no capô e que em determinado momento saltou | Foto: Josi Gonçalves/Ponte Jornalismo

    Por Josi Gonçalves

    O aposentado José Lima de Souza, 67 anos, morador de Milagres, região do Cariri, Ceará, teve uma nova chance de viver. Ele estava em casa na madrugada de sexta-feira (7/12), quando ouviu vários disparos próximos ao local em que mora. Mesmo com os pedidos insistentes da mulher para que não abrisse o portão, resolveu verificar o que ocorria. Acabou virando refém e por pouco não entrou nas estatísticas do trágico desfecho da ação policial que terminou com 14 pessoas mortas.

    “Quando eu coloquei a cabeça pra fora de casa, uns amigos meus disseram: Zé, tira, tem um assalto aí no banco. Aí os bandidos vinham num carro, mas eu sabia lá que eram bandidos? Aí eu pensei: esse pessoal vai passar bem onde estão atirando. Quando eu vi, eles colocaram a arma em cima de mim”. De acordo com o relato do sobrevivente, os homens usavam capuz. José topou falar com a Ponte, mas preferiu não ser fotografo por medo.

    Um dos carros usados na ação de onde José saiu depois de ter sido feito refém | Foto: Josi Gonçalves/Ponte Jornalismo

    O aposentado foi obrigado a entrar no carro. Ficou ao lado de dois reféns. “Me colocaram perto de uma senhora, essa que morreu [Francisca Edneide da Cruz Santos], e ela olhou pra mim querendo me dizer alguma coisa. E eu pensei que fosse pessoa deles”, contou. Por pouco a mulher dele não foi levada junto. “Pegaram minha mulher e puxaram pra ir. Ela chorou e disse: não vou, não vou, não vou. Então um dos bandidos disse: deixe a tia, deixe a tia”.

    Em determinado momento, José Lima conta que foi obrigado a fica em cima do capô do veículo, mas, ao perceberem o cerco policial, os suspeitos resolveram recuar. “Comigo em cima! Meu Deus do céu, minha Nossa Senhora! Vinha uma carreta e quase passa em cima de nós, porque ele entrou de vez pra pegar a BR. Perto do foto-sensor ele encostou e disse: pula, pula. Eu não acreditei numa bondade dessa. Tive medo de pular e ele atirar em mim. Mas fiquei esperando a bala nas costas”, disse.

    Emocionado, José Lima conta que passou o dia à base de calmantes. “Mas não tem jeito de não chorar quando lembro”, desabafa. Durante a entrevista vários moradores da pequena cidade de pouco mais de 26 mil habitantes pararam na calçada da rua onde ele falava com a Ponte e que teve um destino diferente dos outros reféns.

    Marca no vidro de um dos veículos usados na ação e que ainda não foi periciado | Foto: Josi Gonçalves/Ponte Jornalismo

    Neste sábado, a SSPSD (Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social) confirmou a identidade dos 6 reféns que morreram na ação: João Batista Campos Magalhães, 49 anos, o filho dele, Vinícius de Souza Magalhães, 14, Cícero Tenório dos Santos, 60, a mulher dele, Claudineide Campos de Souza, 41, o filho do casal, Gustavo Tenório dos Santos, 13, e Francisca Edneide da Cruz Santos, 49. Ainda de acordo com a pasta, 8 mortos são suspeitos de pertenceram a quadrilha e, até o momento, dois foram identificados: Mackson Junior Serafim da Silva, 26, e Lucas Torquato Loiola Reis, 18, respectivamente natural de Sergipe e Alagoas.

    Moradores questionam a ação

    Rua em Milagres ainda com marcas de sangue | Foto: Josi Gonçalves/Ponte Jornalismo

    Moradores das duas cidades, Milagres, onde aconteceu a tragédia, e Serra Talhada, no interior pernambucano, têm questionado o resultado da operação policial. Uma cidade está com medo, a outra de luto com a morte de 5 pessoas da mesma família. Pai e filho, João Batista e Vinícius Magalhães foram sepultados na manhã deste sábado sob forte comoção de familiares e amigos. O cunhado de João, a mulher e o sobrinho foram enterrados em Carmo, em São José do Belmonte.

    As informações com relação à dinâmica da ação policial ainda são desencontradas. A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará diz ter monitorado a ação criminosa do bando através de seus órgãos de inteligência. Mesmo assim, não foi capaz de prever que havia reféns, entre eles dois adolescentes, nem evitar que morressem.

    “Acredito que a operação foi errada. Talvez não seja a hora de achar culpado nesse momento, mas acredito que houve um grande erro de operação geral. Seis vidas foram ceifadas de forma brutal e são seis inocentes, né?”, aponta o empresário João Daniel Neto, que conta ter ido até Milagres, momentos após a tragédia. “A cidade estava toda cercada. Ninguém podia ver nada. Aquilo era um cenário de guerra”, lamentou. João Neto destaca que a lógica de “matar bandidos” não é raro na polícia cearense: “Se tiver assalto aqui, se houver troca de tiro, o assaltante morre”.

    A visão leiga de João é corroborada com a do especialista em segurança pública que, a pedido da Ponte, analisou os possíveis erros na ação policial. “O governo do Ceará escolheu a violência policial para resolver o problema da segurança, mas não se deu conta de que alguns problemas são muito maiores do que simplesmente atirar em bandidos”, criticou Luiz Fábio Paiva, professor de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV).

    Radialista da cidade de Serra Talhada, Marcus Dantas adotou um discurso mais ameno, embora também acredite que houve despreparo. “A polícia vai pra um confronto desses sabendo que o bandido tem o dobro da potência em armamento, e que vai enfrentar alguém muito mais forte. Não era pra ser assim, mas é e dá nisso que deu. Acho que a polícia não teve nem tempo de parar pra pensar e já foi logo abrindo fogo. Podia um policial desses, inclusive, ter atirado no próprio filho que tivesse ali como refém sem ele saber. Nós perdemos vidas por causa de atitudes impensadas”, opinou.

    Para o corretor de imóveis Mário Olímpio, amigo de João Magalhães, morto no confronto, faltou serenidade à polícia. “Eu acredito que num momento como esse tem de ter um preparo emocional para perceber que há vítimas, que tem pessoas sequestradas e tornadas escudo. Eu acredito que se deva ter um pouco mais de calma nas ações”, afirmou.

    Comerciante Laércio Macedonio cedeu imagens para a polícia | Foto: Josi Gonçalves/Ponte Jornalismo

    Talvez as imagens de ao menos seis câmeras de segurança instaladas em comércios, agências bancárias, farmácias próximas ao local da tragédia possam dar um norte sobre o que aconteceu de fato. “Logo cedo a polícia esteve aqui recolhendo o HD (arquivo com imagens) no meu comércio”, informou o comerciante Laércio Macedo Landim, dono de um supermercado localizado ao lado de uma das agências bancárias que sofreu tentativa de assalto. Na frente do comércio dele, estão duas câmeras de vigilância eletrônica bem posicionadas, que podem ajudar na elucidação do caso.

    A Ponte esteve no estacionamento das polícias Civil e Militar de Milagres onde estavam os carros utilizados pelo bando. Até o final da tarde de sábado (08/12), um dos veículos utilizados permanecia sem perícia. No interior do carro, modelo popular, havia muito sangue, um celular quebrado, adereços femininos e estilhaços.

    As autoridade, tanto estaduais quanto federais, têm dado declarações sobre o caso no sentido de enaltecer o trabalho da polícia, apesar das mortes. “O fato é que estavam preparados para assaltar dois bancos e não conseguiram assaltar nenhum”, chegou a declarar o governador do Ceará, Camilo Santana (PT).

    Já o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, optou, ainda na sexta-feira, por um discurso fatalista. “Tragédias como essas acontecem. À medida que a gente possa antecipar e evitar, sem sombra de dúvidas, a sociedade agradece e a gente poupa vidas, que é o bem mais importante que a gente tem que proteger”, afirmou.

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